Sala de visitas, bem mobiliada, em casa de João Ramos. Três portas ao fundo, dando para o jardim. Uma porta à direita comunicando com a sala de jantar e outra à esquerda, dando para os dormitórios. À esquerda uma mesa com álbuns, porta-cartões, etc. À direita um sofá. Consolo ao fundo. Piano. Cadeiras.

CENA I

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JOÃO RAMOS (Só.)

[RAMOS (Só.)] — O almoço com certeza vai custar-me
Uns duzentos mil réis, afora os vinhos;
Mas se caso a Ambrosina, ainda é barato,
Porque muito me custa a senhorita.
Das minhas rendas a metade vai-se
Em vestidos, chapéus, leques e luvas,
Espetáculos, bailes e concertos;
Ela casada, cessam tais despesas;
É preciso, porém, que o noivo seja
Um rapaz sério e não nenhum pelintra
Que deseje viver à minha custa:
Pior seria a emenda que o soneto.
Mas não são as despesas que me ralam;
Não sou unhas-de-fome, Deus louvado;
Rala-me a idéia de bater a bota,
E deixar a pequena sem marido,
Exposta sabe Deus a que perigos!
Dirão que meto minha filha à cara
Dos pretendentes; ora adeus! que o digam!
A Ambrosina já fez vinte e dois anos:
É tempo de arranjar-lhe casamento.

CENA II

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JOÃO RAMOS, DONA ANGÉLICA, o COZINHEIRO

ANGÉLICA — Ora aqui tens o nosso cozinheiro.
Desejavas ouvi-lo: aqui to trago.
Entra, Fabrício.

(O cozinheiro entra.)

Quer saber teu amo
O que arranjaste para o almoço. Fala.

O COZINHEIRO — Não pode ser melhor o meu cardápio.

RAMOS — Cardápio? Não conheço essa palavra!

O COZINHEIRO — Foi arranjada pelo Castro Lopes.
Eu não digo menu, que é francesismo.

RAMOS — Temos um cozinheiro literato!

O COZINHEIRO — Literato não sou, mas sou purista;
Embirro com palavras estrangeiras.
Hoje, que tudo se nacionaliza,
Nacionalize-se a cozinha!

RAMOS — Bravo!

O COZINHEIRO — Eu, diante do fogão, diante do forno,
Sou até jacobino!

RAMOS — Jacobino?
Lá como cozinheiro pode sê-lo,
Mas tão somente como cozinheiro,
Pois, conquanto eu viesse com dez anos
Para o Brasil, sou português, entende?
Jacobinos dispenso em minha casa!

O COZINHEIRO — Sou jacobino apenas cozinhando.

RAMOS — Pois cozinhando não devia sê-lo:
Você é um artista!

O COZINHEIRO — Eu, um artista?

RAMOS — Sim, um artista da arte culinária,
E a arte não tem pátria! Porém,
vamos...
Diga lá o que temos para o almoço.

O COZINHEIRO — Em primeiro lugar os acepipes.
Hors-d’oeuvres não direi nem que me
rachem!
Temos uma salada de lagostas.

RAMOS — Muito boa lembrança. Que mais temos?

O COZINHEIRO — Sardinhas, azeitonas, rabanetes,
Manteiga fresca...

RAMOS — E além dos acepipes?

O COZINHEIRO — Um enorme badejo.

ANGÉLICA — Que badejo!
Tão grande nunca vi!

RAMOS — E está bem fresco?

ANGÉLICA — Vivo à casa chegou.

O COZINHEIRO — Soltou, coitado,
Nas minhas mãos o derradeiro alento!
De camarões uma fritada temos,
Um primor culinário! Três galinhas
De cabidela. Espargos em manteiga.
E, para terminar, um bom churrasco.
Sorvetes de caju, frutas à ufa,
Queijo do reino, requeijão de Minas,
Baba de moça e doce de laranja.
Se não satisfizer este cardápio,
Que a espada de Vatel me arranque a
vida
À exceção dos espargos e do queijo,
O meu almoço é todo brasileiro!

RAMOS — Mas a vinhaça é toda portuguesa:
Bucelas para acompanhar o peixe,
Depois Colares da viúva Gomes,
Vinho do Porto para a sobremesa
E duas garrafinhas de Champanha
Da marca Assis Brasil.

O COZINHEIRO — Estou contente,
Pois vejo que o Brasil também figura
Muito embora num rótulo.

ANGÉLICA — E os licores?

RAMOS — Deve ter vindo do armazém do Castro
Uma garrafa de Beneditinos.

(Ao cozinheiro.)
Bom. Pode retirar-se, e se o almoço
Ao meu gosto estiver, conte comigo.

O COZINHEIRO — Nenhuma recompensa mais desejo
Que salvar os meus créditos de artista...

RAMOS — Da arte culinária. Vá s’embora.
(O cozinheiro vai se retirando.)
É verdade. Ouça cá. Diga ao copeiro
Que se apresente, pra servir a mesa,
Encasacado e de gravata branca.

(O Cozinheiro sai.)

CENA III

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JOÃO RAMOS, DONA ANGÉLICA

ANGÉLICA — Espero agora que afinal me contes
A história deste almoço.

RAMOS — É muito simples.
Lembras-te que no baile do Cassino,
O César Santos, moço encaminhado,
Com porcentagem numa casa forte,
Namorou nossa filha à rédea solta?

ANGÉLICA — E depois desse baile, muito embora
Nós moremos tão longe da cidade,
Muitas vezes nos passa pela porta,
E até parado fica ali na esquina.

RAMOS — Muito bem. Dize mais: não te recordas
Que, quando fomos ao Teatro Lírico,
Ao benefício da Maragliano,
O Benjamin Ferraz, que é moço rico,
Estava na platéia e não tirava
Do nosso camarote os olhos lânguidos?
E acabado o espetáculo, correndo
Postou-se à porta pela qual saímos,
E suspirou quando passou por ele
Ambrosina?

ANGÉLICA — Um suspiro escandaloso,
De olhos voltados e de mão no peito!

RAMOS — E ele não passa pela nossa porta?

ANGÉLICA — Todas as tardes passa, embora chova.
O outro passa de bonde e este a cavalo.

RAMOS — Pois eu, sabendo dessas passeatas,
Embora tu não me dissesses nada,
Como os achei à mão, ambos, anteontem,
Por mero acaso, na confeitaria,
Fi-los sentar-se à mesa em que eu me
[achava,
Paguei-lhes o vermute, apresentei-os
Um ao outro, mostrei-me muito amável,
E lembrei-me afinal de convidá-los
Para almoçar conosco hoje, domingo.

ANGÉLICA — Porém com que intenções os convidaste?

RAMOS — Minha amiga, bem sabes que os bons
[noivos
Dificilmente conquistar-se podem
Vendo-os passar no bonde ou no cavalo;
É preciso atraí-los; casamentos,
É de portas a dentro que se arranjam.
Se teu pai não me houvesse convidado
Para jantar na casa dele um dia,
Por sinal que era o dia dos teus anos,
Talvez não nos casássemos tão cedo;
Mas convidou-me e, por cautela, à mesa,
Ao lado teu me fez ficar sentado.
Quando veio o peru, éramos noivos;
Tratavas-me por tu à sobremesa;
Um mês depois estávamos casados,
E dez meses depois éramos três!

ANGÉLICA — Mas meu pai convidou-te a ti somente.
E tu a dois convidas...

RAMOS — O que abunda
Não prejudica, diz o velho adágio.
Teu pai não era tolo, minha amiga,
Apesar de ter sido sapateiro,
E se não estava outro mancebo à mesa,
É que não tinhas outro namorado...

ANGÉLICA (Rindo.)
— Sabes tu lá se o tinha ou se o não tinha!

RAMOS — Com este almoço dois coelhos mato
De uma só cacheirada!

ANGÉLICA — És econômico!
Para dois namorados, dois almoços!

RAMOS — Se fossem vinte, vinte almoços? Boas!
Colocada a Ambrosina entre os dois
jovens,
Escolher poderá muito à vontade.

ANGÉLICA — Mas é preciso preveni-la disso.

RAMOS — Justamente ela aí vem. Vamos falar-lhe.

CENA IV

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RAMOS, DONA ANGÉLICA, AMBROSINA

AMBROSINA — A bênção, papai? Bom dia!

RAMOS — Deus te abençoe, minha filha.
Mas como tu vens casquilha!
Há muito que não te via
Tão enfeitada e catita!

AMBROSINA — Oh! Admira-se? Entretanto,
Ontem papai pediu tanto
Que me fizesse bonita!
Vê como estou imponente?
Que tal acha o meu vestido?

RAMOS — Muito espantado.

AMBROSINA — Duvido
Que papai diga o que sente.

RAMOS — De modas eu não entendo;
Sou ferragista, e asseguro
Que tenho juízo seguro
Sobre o que compro e o que vendo.
Quando alguém conhecer queira
A qualidade de um prego,
As minhas luzes não nego,
Posso falar de cadeira;
Mas quanto a farandulagens,
Fitinhas, laços, tetéias,
Sou muito curto de idéias!
Cá comigo é só ferragens!
Mas, minha filha, acredita,
Quando o contrário suponhas:
Com qualquer trapo que ponhas,
Acho-te sempre bonita.

(Dá-lhe um beijo.)

Bom. Temos que conversar
Sobre outro assunto, faceira.
Senta-te nesta cadeira;
Entre nós dois vais ficar.

(Coloca três cadeiras no proscênio; a do centro para Ambrosina, a da direita para Angélica, e da esquerda para si. Sentam-se todos três. Pausa.)

Fala, Angélica!

ANGÉLICA — Ora essa!
Fala tu!
RAMOS — Tu!

ANGÉLICA — Tu!

RAMOS — Mulher,
Olha que eu não sei sequer
Por onde é que é que se começa!

AMBROSINA — É coisa grave?

RAMOS — Oh! bem grave!

ANGÉLICA — Anda! é o princípio que custa!

AMBROSINA — Tanta hesitação me assusta!

RAMOS — Não é nada que te agrave:
Trata-se de casamento.

AMBROSINA — De casamento?

RAMOS — É verdade!
(Embaraçado e muito comovido.)
— Menina, chegaste à idade...
Chegaste ao feliz momento...
A felicidade tua
É o nosso constante fito,
E nós...
(Passando os dedos nos olhos.)
Lágrimas?... Bonito!...
(A Angélica.) Agora tu continua.

ANGÉLICA — Valha-te Deus! que maricas!
Por qualquer coisa tu choras!
Vamos! basta de demoras!

RAMOS —Eu... tu... eu...

ANGÉLICA — Vê em que ficas!
(Arremedando-o.)
Eu... tu... eu...

RAMOS — Então que queres?
Nem eu ouso, nem tu ousas!
Fala tu: para estas coisas
Têm mais talento as mulheres!

ANGÉLICA — Minha filhinha, teu pai
Convidou para um almoço
Aquele moço...

AMBROSINA — Que moço?

RAMOS — Dize-lhe o nome.

ANGÉLICA — Lá vai:
O César Santos?... Aquele
Que toda a tarde passeia
No bonde das cinco e meia?...

AMBROSINA — Sei quem é.

RAMOS — Tu gostas dele?

AMBROSINA — Eu não gosto nem desgosto...

ANGÉLICA — E foi também convidado
Aquele outro namorado?...
Quem é já sabes, aposto!

RAMOS — Dize o nome!

ANGÉLICA — Espera lá!
Ou falas tu ou eu falo!

RAMOS — Bom.

ANGÉLICA — Aquele do cavalo?

RAMOS (Fingindo que está montado a cavalo.)
— Hein? Patati, patatá!

AMBROSINA — O Benjamin?

ANGÉLICA — Justamente:
O Benjamin.

RAMOS — Desse gostas,
Ou não gostas nem desgostas?

AMBROSINA — Sim... não... É-me indiferente! ...
Ambos à casa hoje vêm,
Pra que eu escolha?...

RAMOS — Decerto.
Examina-os bem de perto;
Vê qual dos dois te convém.

AMBROSINA — Oh! nenhum deles me traz
À vida novos encantos...

RAMOS — Sim?

AMBROSINA — Nem o tal César Santos,
Nem o Benjamin Ferraz.

ANGÉLICA — Mas tu gostas de outro?

AMBROSINA — Não.
Não acho quem me cative;
Até hoje nunca tive
Cuidados no coração.
Quando o César Santos passa,
E eu estou acaso à janela,
Não fujo... não saio dela...
Ele sorri... Acho graça...
Faz mal que eu também sorria?...
Namoro?... talvez que o seja;
Mas nisso amor ninguém veja...
Quando muito é simpatia.

ANGÉLICA — Filha, lá disse o poeta:
“Simpatia é quase amor”...

RAMOS — Pois seja o poeta quem for,
Disse uma asneira completa!
Não foi Camões com certeza!

ANGÉLICA — Foi Casimiro de Abreu

RAMOS — Uma tolice escreveu;
Digo-o com toda a franqueza!

AMBROSINA — Quando passa o Benjamin,
Montado no seu cavalo,
E, sem tenção de esperá-lo,
Vejo-o sorrir para mim,
Eu lhe sorrio também...
Mas... que exprime este sorriso?
Que com ele simpatizo...
E papai diz muito bem:
Não é este sentimento
Um quase amor. Que esperança!
Minhalma livre descansa,
Descansa o meu pensamento!
Não me persegue o desejo
De os ver passar pela porta.
E quando os vejo, que importa?
Que importa quando os não vejo?
Se papai julga que devo
Desde já mudar de estado,
Antes que tenha falado
Meu coração, não me atrevo
A contrariá-lo, oh! não!...
Mas entre os dois pretendentes,
Ambos pessoas decentes,
Não faço a menor questão.

RAMOS (Erguendo-se.)
— Bravo!

(Ambrosina e Angélica também se erguem.)

AMBROSINA — Papai, se quiser,
Estude, examine, escolha;
Mas permita que eu me encolha...

RAMOS — Qualquer te serve?

AMBROSINA — Qualquer.

(Lucas entra como um raio. Surpresa geral. Alegria.)

CENA V

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JOÃO RAMOS, DONA ANGÉLICA, AMBROSINA, LUCAS

LUCAS — Que Deus esteja nesta casa!

TODOS (Contentes.) — O Lucas!

LUCAS — O Lucas, sim, que, sem mandar aviso,
Abalou de São Paulo ontem cedinho,
Passou parte da noite num teatro,
Dormiu no Grande Hotel, onde espichado
Na cama, refletiu: de manhã cedo
Tomo o meu banho, faço a minha barba
E ao palacete vou do velho Ramos
Causar uma surpresa àquela gente.
Como é domingo, encontro o velho em casa
E chego a tempo de papar-lhe o almoço.

RAMOS — Fizeste bem, rapaz, mas que diabo!

Devias começar por abraçar-nos...
(Abraçando Lucas.)
Assim! Aperta-me estes velhos ossos!

LUCAS — As saudades são tantas, que receio
Esmagá-lo!

RAMOS — Esmagar-me? Então tu julgas
Que assim se esmague um português valente?

ANGÉLICA (Abrindo os braços.)
— Eu também quero o meu abraço!

LUCAS — É justo.

ANGÉLICA — Mas vê lá: não me esmagues!

LUCAS — Oh!descanse!
Muito bem sei como se abraçam damas!
(Abraça-a.)

ANGÉLICA — Agora, abraça a tua irmã de leite.

LUCAS — Ambrosina! Meus Deus! nestes três anos
Que diferença fez!

RAMOS — Desenvolveu-se...
Deitou corpo... cresceu...

LUCAS — Que diferença!
Deixo um fedelho e encontro uma senhora,
E mais linda que um anjo! Isto é possível...

ANGÉLICA — Bem sabes que ela tem a tua idade!

RAMOS — Abraça-a, vamos!

LUCAS — Não! eu não me atrevo!
Na minha idade já se não abraçam
Moças da minha idade...

ANGÉLICA — Ora que tolo!

LUCAS — Só num jogo de prendas, por sentença!

AMBROSINA — Sou tua irmã.

LUCAS — És minha irmã de leite.
Essa irmandade não me impediria
De casar-me contigo...
(Comicamente cerimonioso.) Enfim, senhora,
Como de Vossa Excelência os pais ordenam,
Venha esse abraço!

AMBROSINA (Lançando-se nos braços dele.)
— E esmaga-me, se queres!
— Como está mamãezinha?

LUCAS — Boa e fera;
São seu único mal saudades tuas.
Mandou-te umas lembranças de São Paulo.

ANGÉLICA — É sempre a mesma tua mãe!

LUCAS — Coitada!
Não quis que eu viesse ao Rio de Janeiro,
Sem coisinhas trazer para Ambrosina;
E durante a viagem vim comprando
Tudo quanto se encontra no caminho:
Queijos de Itatiaia e Campo Belo,
E beijus de Belém. Essas lembranças
Lá estão no Grande Hotel.

RAMOS — Por que motivo
Não vieste hospedar-te em nossa casa?
Pois não sabes que é teu tudo que é nosso?

LUCAS — Bem sei, mas receava incomodá-los.

TODOS — Oh!

LUCAS — Demais, moram longe da cidade,
E eu a negócio vim, não a passeio.

RAMOS — E a casa como vai!

LUCAS — De vento em popa!
Se a coisa prosseguir como tem ido,
Eu serei, num futuro não remoto,
Quase tão rico como o velho Ramos!
(Dá uma pequena pancada no ventre de Ramos.)

RAMOS (Rindo.)
— O velho Ramos não é rico.

LUCAS — É rico;
Mas tem o sestro de dizer que é pobre,
Porque receia que lhe peçam chelpa.

RAMOS — Que grande malcriado me saíste!

LUCAS — Mas que me importa a mim o velho Ramos?
Bem se me dá que seja rico ou pobre!
(Tomando ambas as mãos de Ambrosina.)
Quem me interessa és tu, és tu somente,
Minha querida irmã, que tanto prezo!
(Com certa hesitação na voz.)
Então? quando se faz este casório?
Já deves ter um noivo, ou, pelo menos,
Um namorado, ou dois... Com esses olhos,
E essa boca de fada, e esta elegância,
E este pai, apesar de não ser rico,
Deves ter pretendentes aos cardumes!

AMBROSINA — Tenho dois namorados.

LUCAS (Com um sorriso forçado.) — Dois apenas?

AMBROSINA — Pode ser que outros haja, mas ignoro.

RAMOS — Não podias chegar mais a propósito:
Hoje vêm ambos almoçar conosco.

AMBROSINA — Convidou-os papai, para que eu possa,
Depois de examiná-los bem de perto,
Escolher o que deva ser meu noivo;
Mas eu já disse que nem de um nem de outro
Faço questão, e escolha qualquer deles.

LUCAS — Que singular filosofia a tua!
Mas quem são esses dois rivais famosos?

RAMOS — O Benjamin Ferraz e o César Santos.

LUCAS — Não conheço.

RAMOS Vais vê-los dentro em pouco.
São dois tipos um do outro bem diversos.
O César Santos, guarda-livros hábil,
Interessado está numa das casas
Mais importantes desta praça; é moço
Ajuizado, refletido e sério;
Tem feito economias, e de parte
Já pôs alguns vinténs; possui dois prédios.
O Benjamin Ferraz é muito rico:
Herdou dos pais e ainda há de herdar dos tios,
Que fazendeiros são. Monta a cavalo,
Veste-se muito bem, e desconfio,
Pela sua maneira de exprimir-se,
Que literato ele é nas horas vagas.

LUCAS — E nas que não são vagas esse moço
Em que se ocupa?

RAMOS — Ora essa é boa! ocupa-se
Em ter muito dinheiro. Eu não conheço
Melhor ocupação.

LUCAS — Prefiro o outro.
(Mudando de tom.)
E por amor do guarda-livros hábil
E do janota que tão bem se exprime,
Temos então almoço ajantarado?

RAMOS — Lagostas... um badejo... uma fritada...
Galinhas... um churrasco... espargos,
[frutas,
Sorvetes, queijos, doces e mais doces,
E Bucelas, Colares e Champanha!

LUCAS — Não há que ver: tirei a sorte grande!
Eu vim ao cheiro de uns modestos bifes,
E caio em plenas bodas de Camacho!
Não esperava tanto!

RAMOS — Vai, Angélica,
Dar uma vista de olhos à cozinha,
E manda pôr mais um talher à mesa,
E vê lá se o copeiro pôs casaca.

ANGÉLICA — E tu, anda buscar na adega os vinhos.
(Sai.)

RAMOS — Tens razão. Já lá vou. Cá tenho a chave.
(A Lucas.) Quando há comes e bebes nesta casa,
Ela trata dos comes e eu dos bebes.
Bom. Até logo. Ó minha filha, fica
Fazendo companhia ao nosso Lucas. (Sai.)

CENA VI

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AMBROSINA, LUCAS

LUCAS — Com que então, vais casar?

AMBROSINA — Mas vê como estou fria...
Oh! pelo gosto meu mais tempo esperaria;
Porém papai não pensa infelizmente assim,
E, pelos modos, quer ficar livre de mim.

LUCAS — Não creias que teu pai de ti livrar-te queira:
Tem medo de morrer deixando-te solteira,
É o que é. A intenção é boa; apenas, eu
Me parece que o pior processo ele escolheu.
O tal César e o tal Benjamin vão pensar
Que o João Ramos a filha à força quer casar;
Mais prudente seria esperar que viesse
O noivo e não chamá-lo à casa, me parece.

AMBROSINA — Tens razão.

LUCAS — Não se mete à cara de ninguém
Noiva que, como tu, tanto atrativo tem.

AMBROSINA — Isso é bondade tua.

LUCAS — E se ao velho não falo
Deste modo, é porque não quero apoquentá-lo.
Tu bem sabes de quanto eu lhe sou devedor:
Ele foi para mim um grande protetor,
Tão amigo, tão bom, tão desinteressado,
Que um altar tem cá dentro e é para mim
[sagrado.
Nas tristes condições em que eu ao mundo
[vim,
Se não fosse teu pai, que seria de mim?
Quando nasci, o meu já estava morto há.
[meses;
Minha mãe a miséria, a fome algumas vezes
Sofreu, mas resistiu. Tu nasceras também;
Adoeceu tua mãe; era preciso alguém
Que as vezes lhe fizesse, e a minha então,
[coitada,
Que era pobre, tão pobre, e pobre
[envergonhada,
Sozinha neste mundo, ao deus-dará, sem pão,
Precisava de alguém que lhe estendesse a
[mão...
E foi, como faria uma africana escrava,
Contigo dividir o leite que eu mamava.

AMBROSINA — Pobre da mamãezinha!

LUCAS — Eu fui muito feliz,
E ela também: teu pai, meu pai fazer-se quis.
Nem eu nem minha mãe saímos desta casa
Que nos cobriu a nós como de um anjo a asa.
Quando cresci, o velho à escola me enviou
E depois no comércio emprego me arranjou.
Para São Paulo fui. Sou quase independente.
E a quem o devo? A ele... a ele unicamente.

AMBROSINA — De nada valeria o muito que te fez,
Se tu não fosse bom.

LUCAS — Não seria, talvez,
Tão bom, se ele não fosse a bondade em
[pessoa.
Isso é o que me fez bom, e isso é o que te
[fez boa.
Mas falemos dos dois namorados. Teu pai
Quer que escolhas; pois bem: examiná-los vai
Minuciosamente, e um dos dois com certeza
Preferirás ao outro ao sairmos da mesa.
Está dito?

AMBROSINA — Pois sim.

LUCAS — Por meu lado, eu também
Verei dos dois qual seja o que mais te convém.

CENA VII

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AMBROSINA, LUCAS, JOÃO RAMOS, DONA ANGÉLICA

RAMOS — Pronto! podem chegar os convidados!
No aparador alinham-se as garrafas,
E o diabo do copeiro, de casaca,
Parece até um cidadão conspícuo!

ANGÉLICA — Que bonito badejo é o rei da festa!...

RAMOS — Custou-nos vinte e cinco bagarotes
No mercado; não pode ser, portanto,
Um peixinho de pouco mais ou menos.
(Esfregando as mãos.)
Não tardam por aí os dois rapazes.

LUCAS — Eles que venham, porque estou com fome!

(Toque de campainha elétrica.)

RAMOS — Falai no mau...
(Indo ao fundo e falando para fora.)
Ó senhor César, entre!

(Entra César Santos cerimoniosamente.)

CENA VIII

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AMBROSINA, LUCAS, JOÃO RAMOS, DONA ANGÉLICA, CÉSAR SANTOS
 
CÉSAR — Minhas senhoras... Senhor Ramos... Creio
Que esperar não me fiz por muito tempo.

RAMOS — Pontualíssimo foi, foi cavalheiro.
(Apresentando.)
Minha mulher.

CÉSAR — Minha senhora, folgo
De conhecê-la.

ANGÉLICA — E eu igualmente folgo.
Faça favor.

(Toma-lhe o chapéu e a bengala, que vai colocar sobre um móvel, ao fundo.)

RAMOS (Mostrando Ambrosina.)
— É minha filha. O amigo
Há muito que a conhece. Já com ela
Dançou num baile do Cassino.

CÉSAR — É exato.
Foi uma honra que esquecer não pude,
Pois me deixou recordações bem doces.

AMBROSINA (Cumprimentando.)
— Agradecida.

RAMOS — O meu amigo Lucas.
Quase meu filho... Um filho malcriado,
Que ao pai não tem o mínimo respeito,
E lhe dá piparotes na barriga!
Mas é um herói! — tem só vinte e dois anos
E é já negociante conceituado
Na praça de São Paulo!...

CÉSAR — Cavalheiro.
Consinta que lhe aperte a mão.

LUCAS — Não creia
No que lhe está dizendo o senhor Ramos.
Como lhe devo a posição que ocupo,
É muito exagerado a meu respeito,
Para dar mais valor ao seu trabalho.

CÉSAR — As coisas como vão lá por São Paulo?

LUCAS — Que coisas?

CÉSAR — Os negócios. Interessa-me
O comércio, e de nada mais cogito.

LUCAS — Os negócios vão bem.

CÉSAR — Não me parece;
A baixa do café tem sido o diabo,
E esperança não há de que tão cedo
Ele suba,
(A Angélica.) não acha Vossa Excelência?

ANGÉLICA — Senhor eu não entendo dessas coisas;
Só sei que tudo está bem caro agora,
E que um badejo, que custava dantes
Dez mil réis, quando muito, agora custa
Vinte e cinco mil réis!

CÉSAR — A carestia
Faz com que o povo sofra e sofra muito;
Mas o comércio sofre mais que o povo.
Na nossa praça a crise está medonha;
Muitas casas estão arrebentadas;
O câmbio esteve a cinco, é bem verdade,
E subiu depois disso a sete e meio,
Mas de novo tem ido para baixo,
E não há confiança nos efeitos
Do plano financeiro do governo.
Não acho que endireite a nossa praça,
Enquanto a taxa não subir a doze,
Pelo menos.
(A Ambrosina.) Não acha Vossa Excelência?

AMBROSINA — Eu nunca pude perceber o câmbio.

CÉSAR — Pois eu lhe explico: o câmbio representa...

RAMOS — E eu que não lhe ofereço uma cadeira?
Faz favor de sentar-se? Então? Sentemo-nos!
Tanto se paga em pé como sentado!
(Sentam-se todos.)
Mas sobre outros assuntos conversemos,
E deixemos tranqüilos os negócios.
Estes belos domingos foram feitos
Pra que a gente se esqueça da semana.

CÉSAR — Pois assunto não há que mais me agrade
Do que câmbio, café, preços-correntes...

RAMOS — Qual! isso é bom lá para baixo. Em casa
Gosto de ouvir falar de frioleiras.

LUCAS (Baixo a Ambrosina.)
— Desconfio que o noivo não te serve.

RAMOS — Eu sou negociante de ferragens,
E por meu gosto, não teria em casa
Nem trincos, nem martelos, nem argolas,
Nem pontas de Paris, nem dobradiças,
Nem nada que lembrasse o meu comércio.
Quando aos domingos eu me sento à mesa,
Desgostam-me os talheres, acredite,
Porque os tenho na loja; na cozinha
Não entro, só para não ver panelas!
Causam-me horror grelhas e caçarolas!

ANGÉLICA — E a história do canário?

RAMOS — Ah! é verdade!
Lembras-te ainda? Estávamos casados
Havia um mês, se tanto. O pai da Angélica
Um canário mandou-lhe de presente.
Ela estimava-o. Muito bem. Pedi-lhe
Um belo dia que o mandasse embora!

CÉSAR — O canário não era ferramenta!

RAMOS — Não, mas era preciso dar-lhe alpiste,
E o alpiste naquele tempo — sabe? —
Vendia-se nas lojas de ferragens.

(Novo toque de campainha elétrica.)

ANGÉLICA Tocaram.

RAMOS (Erguendo-se.)
— Bom! é ele com certeza! É o Benjamin Ferraz!
(Vai ao fundo e fala para fora.) A casa é sua.

(Erguem-se todos. Entra Benjamin Ferraz.)

CENA IX

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AMBROSINA, LUCAS, JOÃO RAMOS, DONA ANGÉLICA, CÉSAR SANTOS, BENJAMIN FERRAZ, depois um COPEIRO

BENJAMIN — Minhas senhoras... cavalheiros... peço
Mil perdões por chegar um pouco tarde.
Foi do meu alfaiate a culpa inteira.
Uma porção de tempo estive à espera
De uma sobrecasaca que não veio.

LUCAS (À parte.)
— Começa mal...

BENJAMIN — Esta já tem três meses,
E já não está na moda; os figurinos
Sobrecasacas apresentam hoje
Fechadas mais em cima, e mais compridas,
Dando pelo joelho. Quando eu entro
Pela primeira vez em qualquer casa,
Com toda a correção quero ser visto,
Todas as regras sei do savoir-vivre.
(A Angélica.)
Depois deste cavaco indispensável,
Permita, Excelentíssima Senhora,
Que lhe ofereça a rosa mais bonita
Que esta manhã no meu jardim banhavam
As lágrimas do orvalho matutino.
A rainha das flores simboliza
A rainha do lar, a esposa honesta,
A carinhosa mãe!

RAMOS (À parte.)
— Parece um brinde.

ANGÉLICA — Muito obrigada pelo seu presente.

BENJAMIN — Não há de quê minha gentil senhora.

(Angélica põe a rosa ao peito. Benjamin volta-se para Ambrosina.)

Para Vossa Excelência eu trouxe — e espero
Que seja recebido com bondade —
Este raminho de violetas brancas,
Também do meu jardim. Flores modestas,
Que o seu perfume docemente escondem.
Simbolizam a cândida inocência
Da bela virgem recatada e pura.

AMBROSINA — Agradecida.

RAMOS — À vista dos discursos.
Desobrigado estou de apresentar-lhe
Mulher e filha.

ANGÉLICA (Tomando o chapéu e a bengala de Benjamin.)
— Com licença.

BENJAMIN — Graças.

RAMOS (Indicando César.)
— Este já foi por mim apresentado.

BENJAMIN — Folgo de vê-lo.

RAMOS — O meu amigo Lucas.
É quase um filho.

LUCAS — Temos um fonógrafo?

RAMOS — Não tem ao pai o mínimo respeito...

LUCAS — E lhe dou piparotes na barriga;
Falta-me o savoir-vivre...

BENJAMIN — Oh, não! não creio!

LUCAS — Vim almoçar de jaquetão coçado!

BENJAMIN — Se é quase um filho, está no seu direito.

RAMOS — Mas é um herói! Tem só vinte e dois anos...

LUCAS — Vinte e dois anos e três meses justos.

RAMOS — E é já negociante acreditado
Na praça de São Paulo!

BENJAMIN — Então? já houve
Com essa idade marechais em França!
(Apertando a mão a Lucas.)
Eu tenho muita honra em conhecê-lo.

LUCAS — A honra é toda minha, cavalheiro.

(Angélica, que tem saído, volta e diz baixinho a Ramos.)

ANGÉLICA — O almoço está servido.

RAMOS (Muito alto.) — Meus senhores...

ANGÉLICA (Tapando-lhe a boca.)
— Espera que o copeiro dizer venha.

RAMOS (Baixo.)
— É verdade, o copeiro de casaca...

(Entra o Copeiro.)

Ei-lo! Faz um vistão! Gosto daquilo!

O COPEIRO — O almoço está na mesa. (Sai.)

RAMOS — Meus amigos,
Vamos ao nosso almoço, prontamente,
Que já temos o estômago a dar horas.

(Benjamin e César oferecem ambos o braço a Ambrosina.)

BENJAMIN — O meu braço aqui tem, minha senhora.

CÉSAR — Minha senhora, ofr’eço-lhe o meu braço.

AMBROSINA — E agora? Aceito o que chegou primeiro.

(Dá o braço a Benjamin. César dá o braço a Angélica. Saem todos.)

RAMOS (Saindo, a Lucas.)
— Cada qual no seu gênero, não achas?

LUCAS — Acho.

RAMOS — A Ambrosina escolhe... escolhe um deles!
(Sai.)

LUCAS (Só.) — Escolhe um deles? Pois sim!
Meu velho, pelo que vejo,
Perdes o tempo e o latim,
Pra não dizer o badejo.


[(Cai o pano.)]