A mesma sala

CENA I

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LUCAS, só

(Lucas está olhando para o lado da sala de jantar, de onde chegam os sons de um bandolim.)

[LUCAS (Só.)]
Não há que ver: João Ramos não se lembra
De que o espero aqui há meia hora.
Ele está preso ao bandolim da filha,
O olhar interessado, o ouvido atento,
A boca aberta, as mãos sobre os joelhos.
Oh, que velho tão bom! que pai ditoso!
Neste instante ninguém capaz seria
De arrancá-lo daquele doce enlevo!
Ouvindo aqueles sons melodiosos,
Ele talvez na mente rememore
O tempo em que Ambrosina era assinzinha,
E no seu colo adormecia às vezes.
(O bandolim cala-se. Aplausos.)
Ela acabou. O velho levantou-se.
Para este lado olhou. Viu-me.

(Faz um sinal para dentro.)
Ora graças
Ele aí vem finalmente. Ei-lo comigo.
Queira Deus que lhe agrade a minha idéia.
Do contrário não temos nada feito.

CENA II

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LUCAS, JOÃO RAMOS

RAMOS — Lucas, meu filho, desculpa,
E não me acuses a mim,
Pois quem teve toda a culpa
Foi aquele bandolim.
Quando a pequena dedilha
As duas cordas, sei lá!
Deixa de ser minha filha:
É um anjinho que aí está!
Minh’alma sinto levada
Para outro mundo melhor;
Não vejo nem ouço nada
Do que se passa em redor!
Se o copeiro me dissesse:
— “Há fogo em casa, patrão!”
Talvez por isso não desse,
Nem lhe prestasse atenção!
Não me queiras mal, portanto,
Se mais depressa não vim;
Quem te fez esperar tanto
Foi aquele bandolim.

LUCAS — Mas vamos ao que se trata.

RAMOS — Estou sempre ao teu dispor.
Alguma negociata
Tu me desejas propor?
Queres que eu seja teu sócio?

LUCAS — Não senhor; para tratar
Aqui de qualquer negócio,
Havia de procurar
Ocasião mais propícia,
Sem César nem Benjamin,
E não iria à delícia
Roubá-lo do bandolim.

RAMOS — Oh, meu rapaz! tu me assustas!
Onde queres tu chegar?

LUCAS — Sossegue; as almas robustas
Não têm de que se assustar.
Uma inverossimilhança,
Que poderá fazer rir,
É — não acha? — uma criança
A um velho os olhos abrir;
No entanto, o fato é patente!

RAMOS — Mas não me dirás, enfim?...

LUCAS — Trata-se precisamente
Da dona do bandolim.
Dos dois moços namorados,
Que hoje almoçaram aqui,
Já foram bem estudados
Pelo senhor?

RAMOS — E por ti?

LUCAS — Por mim o foram, e juro
Que nenhum deles convém!

RAMOS — Ó Lucas, eu te asseguro
Que são dois homens de bem!

LUCAS — É César Santos matreiro
Um caça-dotes ruim,
Que faz questão de dinheiro
E não faz de bandolim!

RAMOS — Semelhante impertinência
Me espanta nos lábios teus!

LUCAS — Proponho uma experiência
E o aconselho...

RAMOS — Ora adeus!
Dás-me um conselho? Ao que vejo,
Inverteram-se os papéis!

LUCAS — Mal empregado badejo
De vinte e cinco mil réis!
(Ouve-se o bandolim.)

RAMOS — Deus te dê o que te falta!
Ouves?

LUCAS — Ouço.

RAMOS — Plim, plim, plim!
Sabes que mais, meu peralta?
Não resisto ao bandolim
(Quer retirar-se. Lucas toma-lhe a passagem.)
— Venha cá! Falo sério! Não se ria!
César Santos não gosta de Ambrosina,
Ou antes, gosta, como gostaria
De outra qualquer menina
Que fosse linda e que tivesse dote...
Ele quer dar-lhe um bote!

RAMOS — Mas como sabes disso?

LUCAS — Ele em pessoa
Me declarou que assim pensava.

RAMOS — É boa!

LUCAS — Fingi-me um patifão da sua laia;
Captei-lhe a confiança prontamente,
E dei-lhe um vomitório de poaia.

RAMOS — E vomitou?

LUCAS — Duvida!... O Lucas mente?...

RAMOS — Não vês que isso foi pala?
Quis brincar, está visto!

LUCAS — Pois bem, eu pela experiência insisto!

RAMOS — Lá vem de novo a experiência! Fala!
Como é que me aconselhas que manobre?

LUCAS — Chame-o de parte e diga-lhe que é pobre,
Que sua filha não tem dote... Invente!...
E se ele, ouvindo essa tremenda história,
Não se puser ao fresco incontinenti,
As mãos entregarei à palmatória.

RAMOS — Em todo o caso, é boa essa armadilha,
Porque me custaria ver casada,
Por ter um dote apenas, minha filha,
Quando com tantos outros é dotada...

LUCAS — Eu vou lá para dentro e aqui lho mando.
Mas não tenha vergonha:
Invente uma catástrofe medonha.
Suspire, se puder de vez em quando...
Coisas dirá incríveis, conjecturo;
Não se importe: ele é homem
Desses que todas as araras comem
E que o reino do céu tem já seguro
Diga que o jogo e os seus fatais caprichos
Levaram-lhe a maquia;
Que cem contos de réis perdeu nos bichos,
Cem na roleta, cem na loteria,
E cem na Bolsa!

RAMOS — Xi! que jogatina!
— E o Benjamin Ferraz?

LUCAS — Ora! Ambrosina
Já tem um bandolim: outro dispensa.

RAMOS — Achas então que o moço?...

LUCAS — É mesmo um bandolim... de carne e osso.
Esse em dote não pensa.

RAMOS — Eu creio mesmo que não pensa em nada.

LUCAS — Mas fica essa figura reservada para depois.
Eu vou mandar-lhe o tipo.
Meus parabéns sinceros lhe antecipo. (Sai)

CENA III

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JOÃO RAMOS, [só]

[RAMOS (Só.)] — É levado da breca este meu Lucas!
Mas não é que ele teve uma lembrança
Que não acudiria a toda a gente?
Eu vou mentir... mas, ora adeus! se o faço,
É para o bem da minha filha amada,
E a mentira que vou pregar só pode
Prejudicar o próprio mentiroso,
Pois se a pílula engole o César Santos,
Vai dizer por ai que estou quebrado;
Mas como a ninguém devo, que me importa?
Ele aí vem. Temos cena de comédia!
Coragem! vou pregar uma mentira
Pela primeira vez na minha vida...

CENA IV

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JOÃO RAMOS, CÉSAR SANTOS

CÉSAR — Desejava falar-me, senhor Ramos?

RAMOS — Desejava falar-lhe, senhor César.
(Dando-lhe uma cadeira.)
Tenha a bondade, sente-se.

CÉSAR — Obrigado.
(Senta-se. Ramos senta-se também.)
Estou às suas ordens.

RAMOS — Meu amigo,
O senhor, uma noite, no Cassino,
Minha filha encontrou, dançou com ela,
E no dia seguinte pela porta
Começou a passar de nossa casa
Todas as tardes, mesmo se chovia.
Se à janela a pequena me bispava,
Tirava-lhe o chapéu amavelmente,
E lhe sorria assim de certo modo...
Achando no senhor um bom partido,
Por saber, de pessoas fidedignas,
Que está perfeitamente encaminhado,
Para almoçar comigo convidei-o,
E preparei um suculento almoço
Com algum sacrifício...

CÉSAR (À parte.)
— Sacrifício?

RAMOS — Para não parecer que eu convidava
Um namorado, e lhe impingia a filha,
O Benjamin Ferraz, aparecendo,
Foi também convidado.
(À parte.) Esta mentira
Não estava no programa.
(Alto.) O que eu queria,
Trazendo-o para junto de Ambrosina,
Era fazer com que se aproximassem
E se entendessem de uma vez por todas.
Ficam-lhe abertas desta casa as portas.

CÉSAR (Erguendo-se.)
— Muito obrigado, senhor Ramos.

RAMOS — Sente-se.
(César senta-se.)
Antes, porém, que as coisas vão mais longe,
Uma revelação fazer-lhe quero
Imposta pela minha lealdade.
(À parte.) Lá vai!
(Alto.) Sou pobre.

CÉSAR (Erguendo-se como tocado por uma mola.)
— É pobre!

RAMOS — Muito pobre.
Infelizmente perdi tudo. Sente-se.

CÉSAR (Seco.)
— Estou perfeitamente.

RAMOS (Erguendo-se.)
Nesse caso,
Levanto-me eu também, meu caro amigo.

CÉSAR — Mas como foi?...

RAMOS — Cavalarias altas!
Joguei na baixa.

CÉSAR — E perdeu tudo?

RAMOS — Tudo,
A começar pelo juízo... Apenas
Desse naufrágio me escapou a honra.

CÉSAR (Naturalmente.)
— Mas de que vale a honra sem dinheiro?

RAMOS (Depois de estremecer como se o esbofeteassem.)
— Basta! não é preciso ouvir mais nada!
Lucas, vem cá!

CÉSAR — Que significa isto?

RAMOS — A experiência fica em meio apenas.

CENA V

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JOÃO RAMOS, CÉSAR SANTOS, LUCAS

RAMOS (A Lucas que entra.)
— Imaginavas que este sujeitinho,
Ouvindo-me dizer que eu era pobre,
Ao fresco se pusesse incontinenti;
Pois bem: sou eu, vais ver, que o ponho fora
Da minha casa honrada, e, se o não ponho
A pontapés, é porque nesta idade
Não há mais pontapés que deixem marca!

CÉSAR — Senhor!

RAMOS (A Lucas.)
— Quando eu lhe disse que era pobre,
Mas que era honrado, respondeu-me, filho,
Que a honra nada vale sem dinheiro!

LUCAS — O dinheiro sem honra há quem prefira.
(Vai buscar a bengala e o chapéu de César Santos.)

RAMOS — Saia já desta casa!
(Movimento de César. Com mais força.)
Saia!

LUCAS — Saia...
E nada lhe responda: é o mais prudente.

(César encolhe os ombros, toma o chapéu e sai com arrogância. João Ramos fica muito agitado, a percorrer a cena.)

CENA VI

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JOÃO RAMOS, LUCAS

RAMOS — Que cinismo! que despejo!...
Quatro murros merecia!...

LUCAS — Então? eu não lhe dizia?
Mal empregado badejo!
Vamos lá! Não se apoquente,
Que está salva a sua filha...
Mas olhe que se ele a pilha!...

RAMOS — Não a pilhou felizmente!

LUCAS — Temos o outro namorado
E uma nova experiência...

RAMOS — Mas esse — tem paciência —
É moço muito educado,
Incapaz de dar-me um couce
Como aquele sevandija!
(Falando para a porta por onde César saiu.)
Há de haver quem te corrija,
Meu descarado!

LUCAS — Acabou-se.
Não se trata desse agora,
Mas do bandolim Ferraz...

RAMOS — Que também me deixe em paz!
Que também se vá embora!
Se um bruto casa com ela,
Um dia prego-lhe um tiro!

LUCAS — Esteja calmo.

RAMOS — Prefiro
Que vá de palma e capela
Quando morrer!
(Pausa, durante a qual o velho procura serenar-se.)
Mas que dizes
Do tal namorado piegas?
Já agora acredito às cegas
Em tudo de que me avises!

LUCAS — Não creio que ele pratique
Uma ação indecorosa:
Mas é muito tolo... é prosa...
Presta-se muito ao debique,
E de ridículo a dose
Que traz em si, permanente,
Refletirá fatalmente
Sobre a mulher que ele espose.
Há de ser um desconsolo,
Meu caro, que a filha sua,
Sempre que sair à rua
Vá pelo braço de um tolo.
Ele tem muitas patacas,
E ainda há de herdar de uns matutos,
Para comprar mais charutos
E novas sobrecasacas;
Mas todo esse cobre junto,
Toda essa bela milhança,
Entrando em conta a esperança
Dos sapatos de defunto,
Que vale nas mãos de um homem
Desses — e é grande a cambada! —
Que, não produzindo nada,
Enormemente consomem?
Quem vive dessa maneira,
E do seu fausto se gaba,
Por via de regra acaba
Por não ter eira nem beira.
Ambrosina — coisa horrível! —
Nas mãos desse desfrutável,
Tem a pobreza provável,
Tem a miséria possível!

RAMOS (Erguendo-se.)
— Qual há de ser o espantalho?

LUCAS — À puridade lhe diga:
— “Quer casar coa rapariga?
Pois bem: procure trabalho!”
Se o senhor assim o avisa,
Faço todas as apostas
Em como, voltando as costas,
Ele aqui nunca mais pisa.

RAMOS — Pois manda-o cá!

LUCAS — Vou mandá-lo.
Verá como a coisa pega!
Fale-lhe teso!

RAMOS — Sossega:
Teso, bem teso lhe falo! (Lucas sai.)

CENA VII

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JOÃO RAMOS, [só]

[JOÃO RAMOS (Só.)]
— Oh! venturoso o pai que lhe entregar a filha!
Vinte e dois anos só! Quando este bigorrilha
Contar os que já conto, há de ser um portento!
Aquilo sim, senhor, aquilo é que é talento!
É ele a boca abrir, são flores e mais flores!
Até me faz lembrar Jesus entre os doutores!
Devia tê-lo feito entrar na Academia...
Que brilhante orador, que bacharel daria!...

CENA VIII

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JOÃO RAMOS, BENJAMIN FERRAZ

RAMOS — Venha, meu caro amigo, e me desculpe
Se o privei de mais doce companhia;
Mas é preciso que nos entendamos
Sobre assunto que muito me interessa.

BENJAMIN — Antes de prosseguir, Senhor João Ramos,
Cumprimentá-lo quero entusiasmado:
Tem uma filha verdadeiramente
Artista; o bandolim, nas delicadas
Mãos de dona Ambrosina, diviniza-se!
Ouvi três peças cada qual mais bela!
Que brio! que expressão! que sentimento!...

RAMOS — Gosta muito de música?

BENJAMIN — Muitíssimo.

RAMOS — E que instrumento é o seu?

BENJAMIN — Nenhum.

RAMOS — É pena.

BENJAMIN — Mas tive um primo que tocava flauta.

RAMOS — Queira sentar-se aqui nesta cadeira,
E prestar-me atenção.

BENJAMIN (Sentando-se.)
— Sou todo ouvidos.

RAMOS (Depois de sentar-se também.)
— Há quinze dias, no Teatro Lírico,
Num camarote eu estava coa família
E o senhor na platéia.

BENJAMIN — A companhia
Cantava o Mefistófeles, de Boito.

RAMOS — Mas o senhor pouca atenção prestava
À Margarida, ao Fausto e ao Mefistófeles,
E do meu camarote não tirava
Os olhos, com binóculo ou sem ele.
Bom. Nós éramos três no camarote...

BENJAMIN — O senhor, a senhora dona Angélica
E a nossa genial bandolinista.

RAMOS — Ora, não creio que os olhares fossem
Dirigidos a mim, que sou marmanjo,
Nem a minha mulher, que é mulher velha;
Não é preciso, pois, ser muito esperto
Para ver que o seu alvo era Ambrosina.
(Benjamin sorri.)
Acabado o espetáculo, na porta
O senhor esperou por nós... por ela,
Quero dizer, e suspirou tão alto,
Que a atenção provocou de toda a gente!

BENJAMIN (Suspirando.)
— Ai! não sei suspirar de outra maneira!

RAMOS (À parte.)
— Vá suspirar pro diabo que o carregue!
(Alto.) Já na manhã seguinte o seu cavalo
Passava com o senhor em cima dele,
E nas outras manhãs esse passeio
Reproduzido foi às mesmas horas.
E se à janela minha filha estava,
O senhor lhe fazia um cumprimento,
Caracolando com mais graça, e ela
Correspondia ao cumprimento.

BENJAMIN — Vejo
Que tudo sabe.

RAMOS — Eu sou bom pai.

BENJAMIN — Decerto.

RAMOS — Achando no senhor um bom partido,
Para almoçar comigo convidei-o,
E, pra não parecer que convidava
Um namorado e lhe impingia a filha,
O César Santos...

BENJAMIN — Onde está?

RAMOS — Muscou-se
(Continuando.)
Muscou-se
O César Santos, que conosco estava,
Foi também convidado. O que eu queria,
Trazendo-o para junto de Ambrosina,
Era fazer com que se aproximassem
E se entendessem de uma vez por todas.

BENJAMIN (Erguendo-se.)
— Senhor João Ramos, eu não sei quais sejam
Os sentimentos dela a meu respeito,
Porque, se bem que nos aproximássemos,
Inda não conversamos um com o outro;
Se ela quiser ser minha esposa amada
E da minha riqueza ter metade,
O mais feliz serei dos namorados;
Se não quiser, o mais inconsolável.
Inda há poucos momentos eu gostava
De sua filha pela formosura
Com que a dotou a natureza apenas;
Mas depois que a ouvi, arrebatado,
Naquele doce bandolim, que as pedras,
Como a lira de Orfeu, mover podia,
Sinto aqui dentro uma impressão mais forte!
Isto é amor, não é namoro; isto
É mais que amor, talvez; paixão, quem sabe?

RAMOS (Erguendo-se.)
— Paixão? Não exagere meu amigo!

BENJAMIN (Idem.)
— As paixões, meu senhor, assim começam.
O que é preciso para transformar-nos?
Um simples bandolim!

BENJAMIN — Antes que as coisas
Vão mais longe, meu caro, é indispensável
Que sobre um grave assunto conversemos,
Muito mais positivo e mais...

BENJAMIN — Permita
Que o interrompa. Eu sei de que se trata.
Sou rico, sou riquíssimo: não quero
Coisa nenhuma. Ela tem dote? Guarde-o!
Nada tenho com isso. O meu dinheiro
De nós ambos será. Divido tudo;
Só não divido o coração, que é dela!

RAMOS (À parte.)
— O Lucas enganou-se.

BENJAMIN — Ela que faça
Do dote o que quiser. O meu desejo
Era esposar uma donzela pobre...
Dona Ambrosina tem um patrimônio
No nome de seu pai: isso me basta,
Porque dote melhor não há que a honra.

RAMOS (Entusiasmado.)
— Sim, senhor! Isto é que é falar! Amigo,
Quero apertá-lo nos meus braços! Viva!
(Depois do abraço.)
Mas não é disso que eu tratar queria...

BENJAMIN — Então fale, senhor! Ordene! Imponha
As condições que desejar, contanto
Que não me negue a mão de sua filha,
Porque eu não posso mais passar sem ela!
A tudo estou disposto!

RAMOS — A tudo?

BENJAMIN — A tudo!

RAMOS — A trabalhar também?

BENJAMIN — Eu não percebo.

RAMOS — Vai perceber. Exijo que o meu genro,
Embora seja rico, muito rico,
Tenha um meio de vida; que trabalhe;
Que em qualquer coisa ocupe a inteligência,
E que produza, não consuma apenas.

BENJAMIN — Aceito a condição. Não tenho jeito
Para coisa nenhuma nesta vida,
Mas estou pronto a trabalhar!

RAMOS — Deveras?

BENJAMIN — Faço-me industrial: monto uma fábrica,
Ou lavrador e compro uma fazenda,
Ou negociante e abro uma casa.

RAMOS — Bravo!
BENJAMIN — Se o senhor consentir, serei seu sócio

Na loja de ferragens.
RAMOS — Bela idéia!

BENJAMIN — Ou serei simplesmente seu caixeiro,
E a vida levarei a contar pregos!
Finalmente, disponho-me ao trabalho!

RAMOS — Trabalhará?

BENJAMIN — Trabalharei, contanto
Que não me negue a mão de sua filha,
Porque eu não posso mais passar sem ela!

RAMOS — Dê-me algum tempo. Vou pensar no caso.
(À parte.) Pois já não me parece tão ridículo!

BENJAMIN — Oh! temos muito tempo: este pedido
Não é ainda o oficial; se o fosse,
Eu seria incorreto. Ao vir pedir-lhe
Oficialmente a mão de sua filha,
Vestirei a casaca e trarei luvas.
(Vai sentar-se a examinar o álbum.)

RAMOS (À parte.)
— Voltou a ser ridículo, coitado!

CENA IX

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JOÃO RAMOS, BENJAMIN FERRAZ, LUCAS, depois AMBROSINA, depois DONA ANGÉLICA

(Lucas entra e, admirado de encontrar Benjamin, dirige-se a João Ramos.)

LUCAS — Então ele ficou?

RAMOS — Meu filho, o resultado
Da experiência foi o mais inesperado!

LUCAS — Que me diz o senhor?

RAMOS — O pobre Benjamin,
Depois que minha filha ouviu ao bandolim,
Deitou paixão violenta, e ao trabalho se
arroja!
Até diz que quer ser caixeiro lá na loja!
(Afasta-se e vai para junto de Benjamin.)

LUCAS (À parte.)
— Maldito bandolim! desperta uma paixão
Que vai dificultar a minha situação!

(Ambrosina entra e, admirada de encontrar Benjamin, dirige-se a Lucas.)
AMBROSINA — Então ele ficou?

LUCAS — Menina, o resultado
Da experiência foi o mais inesperado!

AMBROSINA — Lucas, que estás dizendo?

LUCAS — O nosso Benjamin...

AMBROSINA — Acaba! Ele que fez?

LUCAS — Graças ao bandolim,
Deitou paixão por ti, e ao trabalho se arroja!
Até diz que quer ser caixeiro lá na loja!
(Afasta-se.)

AMBROSINA (À parte.)
— Maldito bandolim! Se adivinhasse tal,
Ou eu não tocaria ou tocaria mal!

(Entra dona Angélica e, admirada de encontrar Benjamim, dirige-se a Ambrosina.)

ANGÉLICA — Então ele ficou?

ANGÉLICA — Mamãe, o resultado,
Da experiência foi o mais inesperado!

AMBROSINA — Que estás dizendo, filha?

AMBROSINA — O senhor Benjamin,
Quando me ouviu tocar, deitou paixão por
[mim!

ANGÉLICA — Paixão?

AMBROSINA — Paixão violenta! E ao trabalho se arroja!
Até diz que quer ser caixeiro lá na loja!

ANGÉLICA — E que intentas fazer?

AMBROSINA — Com ele conversar.
Livres do apaixonado havemos de ficar.
Leve papai pra dentro e tudo lhe revele...
Diga que o Lucas me ama e que eu sou noiva
[dele.

LUCAS (Descendo entre as duas senhoras.)
— Que estão a cochichar?
Vai lá pra dentro, vai!
Lá irá ter mamãe, lá irá ter papai.

LUCAS — Com ele ficas só? Vê lá o que vais fazer!

AMBROSINA — Nesta combinação não tens que te meter.

(Lucas encolhe os ombros e sai.)
Chame papai.

ANGÉLICA — Ó João, vem cá; de ti preciso
Na sala de jantar.

RAMOS (Erguendo-se, à parte.)
— Oh, que mulher de juízo!
Já tudo compreendeu... e quer deixá-los sós.
(A Angélica.)

(Angélica sai.A Ambrosina.)
Um maridão! (Sai.)

AMBROSINA — Pois sim!
(Olhando para Benjamin.)
Agora nós!...

CENA X

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BENJAMIN FERRAZ, AMBROSINA

(Benjamin está tão entretido com o álbum, que Ambrosina se aproxima dele sem ser pressentida.)

AMBROSINA — Senhor Ferraz?

(Benjamin estremece, levanta-se e deixa o álbum.)

BENJAMIN — Minha senhora?
Ninguém aqui?... Ninguém!... Só nós!...
(Quer retirar-se.)

AMBROSINA — Oh! venha cá..... não vá-se embora...
Meto-lhe medo?

BENJAMIN — Estamos sós...

AMBROSINA — Não é razão para fugir-me.

BENJAMIN — Mas eu não devo aqui ficar.
Do savoir-vivre às leis sou firme!
Vou para a sala de jantar.

AMBROSINA — Espere... Peço-lhe que fique...

BENJAMIN — Devo, portanto, obedecer.

AMBROSINA — É necessário que eu lhe explique...
Tenho uma coisa que dizer.

BENJAMIN — Tremendo estou! De que se trata?

AMBROSINA — Dessa... paixão que tem por mim.

BENJAMIN — Paixão terrível, insensata,
Que devo àquele bandolim!

AMBROSINA Pois bem, senhor: de mim se esqueça...
Não alimente essa paixão...
Busque outra moça que o mereça
E tenha livre o coração!

BENJAMIN — Porém seu pai, minha senhora...

AMBROSINA — Só do que é seu pode dispor:
Não quererá impor-me agora
Um casamento sem amor!

BENJAMIN — Essas palavras, proferidas
Pelos seus lábios virginais,
São cruéis armas homicidas!
Não são palavras: são punhais!

AMBROSINA — Esta satisfação aceite...

BENJAMIN — Quem é, senhora, o meu rival?

AMBROSINA — Lucas, o meu irmão de leite.

BENJAMIN — Ele?! No entanto...
(À parte.) Então? que tal?
(Alto.) Amam-se?

AMBROSINA — Oh! — desde pequenos!

BENJAMIN (Levando a mão ao peito.)
— Data, senhora, esta afeição
De menos tempo...

AMBROSINA — Muito menos.

BENJAMIN — Mas não tem menos intenção!

AMBROSINA — Senhor não vá ficar magoado,
O savoir-vivre assim o quer...
Quem o lugar achar tomado,
Outro procure se quiser.

BENJAMIN — Diz muito bem.
(Vai buscar o chapéu e a bengala.)
Oh! fados cegos!
Mágoa cruel comigo vai!
E eu estava pronto a contar pregos!
A ser caixeiro de seu pai!
(Limpa uma lágrima.)

AMBROSINA — Outra o compreenda! outra o console!

BENJAMIN — Vou viajar, pois só assim
Do peito meu talvez se evole
O último som do bandolim!
Adeus, ó sonho meu perdido!

AMBROSINA —Não se despede de meus pais?

BENJAMIN — Bastantemente despedido
Já estou aqui. Para que mais?
Que Deus a faça venturosa
Hei de a rezar pedir a Deus!
Adeus, quimera cor de rosa!
Sonho... ilusão... visão, adeus! (Sai.)

AMBROSINA (Só.)
— Pobre rapaz!

CENA XI

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AMBROSINA, JOÃO RAMOS, LUCAS, DONA ANGÉLICA, depois o COPEIRO

RAMOS — Ambrosina!
Vem cá, filhinha, vem cá!

ANGÉLICA — Não assustes a menina!

RAMOS — O Benjamin onde está?

AMBROSINA — Deixou-lhe muitas lembranças.

LUCAS — Foi-se?

AMBROSINA — Foi... rezar por mim

RAMOS — Oh, senhor, estas crianças!
Coitado do Benjamin!

ANGÉLICA — Mas tu... tu nada nos dizes?

RAMOS — Mulher, que posso eu dizer?
Felizes, muito felizes
Conto que ambos hão de ser.
(Entre Lucas e Ambrosina.)
Mas como nem um momento
Eu me lembrei, filhos meus,
De que era este casamento
Aconselhado por Deus?
Como visse os dois maganos
Crescerem nas minhas mãos,
Durante vinte e dois anos
Considerei-os irmãos!
Não me entrou na fantasia,
Nem um minuto sequer,
Que dois irmãos algum dia
Fossem marido e mulher!
E eu, tonto, andava à procura
De um genro na multidão,
Sem reparar que a ventura
Tinha ao alcance da mão!
(Deixando-os.)
A culpa tiveste-a, Lucas!
Não foste franco, por quê?
E vocês, suas malucas,
Tiveram medo, de quê?

LUCAS — Temiam que o casamento
Não lhe agradasse talvez...

RAMOS — Se não há impedimento!
Valha-me Deus, que vocês!...
Que todo o mundo respeite
A suspirada união!
Beberam do mesmo leite?
Pois comam do mesmo pão!

O COPEIRO
(Entrando.) — O jantar está na mesa.

RAMOS — Sim, senhor. Pode sair,
Mas vá, com toda a presteza,
Essa casaca despir!

(O Copeiro sai.)

As etiquetas dispenso!
Eu para luxos não dou!

ANGÉLICA — Do badejo que era imenso,
Um bom pedaço ficou.

RAMOS — Do tal almoço é sobejo!
Manda-o da mesa tirar!

(Dona Angélica sai.)

LUCAS — Mal empregado badejo!

RAMOS — Meus filhos, vamos jantar.


[(Cai o pano.)]