Apenas Fr. Hilarião e o Lidador voltaram costas para se dirigirem à sala do banquete, na qual se achavam reunidos já quase todos os ricos-homens e infanções vindos à solenidade daquele dia, o cavaleiro cruzado se encaminhou apressadamente ao longo da corredoura onde falara com eles. Aquela passagem estreita ia por todo o circuito do castelo, acompanhando o edifício irregular dos paços e suas acomodações e oficinas. De espaço a espaço alargava-se nuns terreirinhos onde se viam amontoados instrumentos e arremessos de guerra. Para esta espécie de pátio desciam escadas de pedra que davam comunicação aos adarves ou andaimos da grossa muralha exterior, e ao lado de cada um deles bojavam para dentro as torres maciças e quadrangulares que defendiam as quadrelas do muro. Nesse ponto a senda, geralmente estreita e soturna, se tornava ainda mais apertada, e às vezes mais tenebrosa, porque algumas das torres se ligavam ao palácio por largos passadiços lançados por cima dela.
Egas Moniz passou sucessivamente três dos terreirinhos, até que afinal parou debaixo do escuro arco de pedra, que se abria na extremidade do terceiro. Este, diferente dos outros, em vez de topar nas lisas e altas paredes dos paços, entestava com uma casaria baixa, rota por sete ou oito portais singelos que davam para o terreiro. O tecto daquele corpo saliente era um espaçoso terrado que o passadiço ligava com o primeiro andar da torre. Sobre esse terrado, quanto a escuridão o permitia, viam-se negrejar os topos dos arbustos e as pontas esguias dos caramanchões de verdura, e sentia-se o cheiro balsâmico das flores, que se dilatava na aragem quase imperceptível de uma noite de Estio. O cavaleiro achava-se junto ao jardim onde se passara, pouco havia, a cena que tão fatais resultados tivera para o honrado e jovial Dom Bibas.
Tudo por aquele lado do palácio parecia tranquilo, e o reflexo da luz escassa que alumiava os aposentos contíguos ao piso do jardim, rompendo a custo as vivas cores das vidraças, vinha morrer nas trevas a pouca distância delas. O cavaleiro, ao atravessar o terreirinho, parara um momento e cravara os olhos naquela ténue claridade. Um suspiro mal contido lhe sussurrou nos lábios. Depois, como arrastado por um pensamento irresistível, continuou a caminhar rápido para o escuro vão junto da torre, e envolto no zorame coseu-se com a parede, como quem receava ser ali visto.
Não tardou que do lado da corredoura, oposto àquele por onde o cavaleiro viera, se aproximasse um vulto trazendo um cavalo de rédea. Este vulto vinha também coberto de uma espécie de zorame, porém alvacento como albornoz mourisco. Deu um silvo agudo, a cujo soído Egas pareceu reconhecê-lo, porque, saindo-lhe ao encontro, perguntou em voz baixa e em árabe:
— És tu, Abul-Hassan?
— É o vosso servo - respondeu o vulto na mesma língua, parando e sofreando o cavalo.
— Falaste com teu irmão? A que horas se erguem as pontes das barbacãs? - perguntou de novo o cavaleiro.
— Apenas acabar o banquete - tornou o mouro. - Os vigias receberam ordem para não deixarem sair ninguém do burgo passado esse momento.
— O meu saio de malha - prosseguiu Egas -, a cervilheira e a espada?
Sem dizer palavra, Abul-Hassan tirou as três peças de sob o albornoz. O cavaleiro vestiu à pressa o saio, pôs na cabeça a cervilheira, afivelou sobre os ombros aquela espécie de camisa de ferro que vestira, cingiu sobre esta a espada, e, atirando o zorame para cima do cavalo, disse ao mouro:
— Deixa-te aí ficar. Se vier alguém que te não conheça e pergunte o que és e o que fazes neste sítio, responde que és um cavalariço do senhor de Trava, que te ordenou esperasses aqui com um corredor folgado. Depois de assim responderes ninguém ousará perguntar-te mais nada.
Proferidas estas palavras, Egas desapareceu numa escada de caracol aberta no fundo da torre, e que dizia para o primeiro pavimento dela. Chegado ao alto tirou do seio uma chave e abriu uma porta, não a que dava para a quadra principal da torre, mas outra lateral e pequena. Cruzou o passadiço, e num momento achou-se no jardim pênsil.
Naquele lugar e hora, as paixões tumultuosas que lhe agitavam o espírito o obrigaram a reflectir alguns momentos, e a procurar restabelecer no seu coração a possível tranquilidade. Que pretendia? A que vinha ali como um salteador nocturno? Ele mesmo não o sabia ao certo. Era apenas uma vaga esperança de ainda ver Dulce, de lhe exprobrar a sua leviandade, de lhe dizer tudo quanto o ciúme e a desesperação lhe ensinassem. Desde que a fama dos amores da donzela com Garcia Bermudes chegara aos seus ouvidos, não houvera para ele repousar um instante. Buscando qualquer pretexto plausível para se dirigir a Guimarães, logo que chegara ao arraial do infante se oferecera para indagar da própria boca de Gonçalo Mendes qual seria a sua resolução final na luta que se ia travar. Vestindo os trajos de vilão - o arbim e o zorame de burel - entrara no burgo ao romper de alva, e dirigindo-se à mouraria perguntara por Abul-Hassan. Entre os mouros que, ao tirar a grossa cadeia de ferro lançada de noite à entrada do seu bairro, saíam de golpe para os trabalhos rurais, divisou brevemente aquele que buscava. Deu-se-lhe a conhecer, e antes que a alegria que o mouro mostrou ao vê-lo se revelasse por sinais que gerassem desconfianças, pediu-lhe o guiasse à sua pousada. Aí, entregando-lhe uma bolsa de couro com alguns almorabitinos, disse-lhe:
— Far-me-ás tu, Abul-Hassan, ainda uma vez o serviço que tantas te devi antes de partir para o ultramar?
— Posto que o ódio contra os meus irmãos - respondeu sorrindo
O árabe - vos levasse tão longe para lhes derramar o sangue, como se vos não bastasse o dos muslins da Espanha, nem por isso vos perdi a afeição, porque sei por experiência que ao menos não seríeis cruel para com os vencidos, como são quase todos os guerreiros cristãos. O serviço de que me falais, sem que mo dissésseis, já eu o adivinhei. A chave da porta secreta da torre do miradouro ainda está em meu poder, porque ainda me não tiraram o cargo do jardim da rainha. À hora da quinta oração podeis vir buscá-la aqui.
— Não é isso só - interrompeu o cavaleiro -; é necessário que ainda hoje vás ao soveral que se estende junto ao vau do Avicela. Aí estará um escudeiro com o meu cavalo de batalha e as minhas armas: mostrando-lhe este anel, ele te entregará tudo. Conduze-me aqui o ginete e as armas ao cair do dia. Depois esperar-me-ás junto ao passadiço da torre para o jardim. O anel, esse, guardá-lo-ás para ti.
Abul-Hassan ia propor algumas dificuldades: as últimas palavras de Egas Moniz as haviam aplanado. O anel era assaz rico.
— Na confusão que hoje vai em palácio, ninguém reparará na minha falta. Assim poderei obedecer-vos.
— Ainda mais - prosseguiu o cavaleiro. - Quando atravessei a barbacã vi sinais de que as pontes levadiças se costumam erguer de noite. Preciso de saber até quando se poderá sair do burgo e por onde. Tu o indagarás com certeza. Se desempenhares bem tudo o que te ordeno, recolherás depois mais larga recompensa.
No rosto do mouro ria o contentamento.
— Meu irmão, o tornadiço ainda é um dos mestres dos trons e engenhos. Estão a seu cargo os que de novo se assentaram no cubelo do topo da couraça. Ele deve sabê-lo; e há-de por certo dizer-mo.
— Bem! - tornou Egas. - Agora vai executar o que te mandei, e entretanto eu ficarei aqui. Mas volta ao sol-posto; porque me será necessário a essas horas deixar a tua guarida.
Daí a pouco o mouro atravessava a barbacã por meio da comitiva de ricos-homens que começavam a entrar no burgo para assistirem à convocação solene da cúria.
Havia largos anos que Abul-Hassan estava incumbido do jar-dim pênsil. Naquele século os diferentes misteres, para os quais se requeria ou ciência ou indústria, eram quase exclusivamente exercitados por mouros e judeus. Na agricultura, porém, a raça árabe era a única entre a qual se encontravam homens profundamente versados em todos os ramos dela. Abul-Hassan, cativo em uma arrancada, obtivera pela sua ciência agronómica não só um tratamento menos duro do que era usual entre os cristãos para com os servos, mas até por fim a liberdade, e com a liberdade um cargo que se casava com a sua educação e hábitos - o de jardineiro do horto pênsil. O toque principal do carácter de Abul-Hassan era a avareza: à força de ouro Egas alcançara dele muitas vezes antes de partir para a Terra Santa o ter entrada naquele lugar vedado, onde podia ver Dulce, quando ou as noites festivas ou os cuidados do governo retinham D. Teresa longe de sua filha adoptiva. A experiência que tinha do poder do ouro na alma de Abul-Hassan fez com que entrando em Guimarães o buscasse, para com o socorro dele poder levar a cabo o principal intento que ali o trouxera.
Tais haviam sido os meios de que usara o cavaleiro para se aproximar de Dulce. Por este modo era que ele se achava ali.
A recordação dessa época em que naquele mesmo sítio passara horas deliciosas aos pés da sua amante, que então inocente e pura era para ele como o anjo de Deus, que inspirava ao cavaleiro esforço e generosidade, e ao trovador os seus mais poéticos e harmónicos cantares [1]; essa recordação, dizemos, devorava agora como um pensamento infernal o coração do pobre mancebo. Os riscos que naquele tempo dourado correra para ouvir promessas e juramentos de amor, palavras de esperança e de felicidade, ia-os correr de novo para receber talvez o último desengano. Que lhe importava? Sem ao menos ver uma vez Dulce é que ele não podia morrer. Morrer - que, traído, lhe seria a consolação derradeira!
Egas se havia dirigido ao mesmo lugar onde poucas horas antes o conde de Trava ouvira da boca de Garcia Bermudes as desagradáveis novas da aproximação do infante. O reflexo do tanque em que as estrelas se espelhavam guiara o cavaleiro para aquele sítio. Pelas ruas tortuosas que giravam por meio dos arbustos, e por entre os canteiros das flores, Egas chegara junto ao poial escondido no caramanchão fechado. Em vez de se acalmar a agitação que lhe despedaçava o coração, este bateu com mais violência ao entrar ali. Tudo estava como dantes, o céu, a noite, o jardim: só um amor de mulher mudara: mas esse amor fora para ele o universo, e o que via em redor de si não era mais que uma imagem mentirosa da realidade, lançada sobre o túmulo do passado, sobre as ruínas da sua íntima existência. Nas recordações de outrora havia para ele indizível saudade, mas saudade árida e atroz, sem consolação nem lágrimas.
Assentado no poial, com a fronte entre os punhos, o pobre trovador, engolfado em pensamentos tenebrosos, parecia esquecido dos seus próprios intentos, do tempo que fugia, e dos riscos que o cercavam, quando, no meio do silêncio profundo que reinava no jardim, um ténue ruído veio despertá-lo da imobilidade externa em que o lançara o intenso viver da sua alma.
Este ruído o fez erguer a cabeça e lançar os olhos para o lado donde partia aquele som duvidoso: defronte dele, e bem perto, uma porta rodava lentamente sobre os gonzos; era a do corredor que dava para a sala de armas. Egas pôs-se em pé, e apalpou o punho da espada. Lembrava-se perfeitamente de uma noite - fazia nesta três anos - em que assim a vira abrir, e passar um cavaleiro, cujo vulto semelhava o do conde de Trava. Esta noite lhe ficara gravada indelevelmente na memória, porque fora aquela em que vira Dulce pela última vez, partindo para o Oriente. A dois passos deles se aproximara o vulto encaminhando-se lento para os aposentos reais. Egas recordava-se bem desse instante de receio e delícias, em que na mão de Dulce unida aos seus lábios sentira palpitar o amor e o susto; em que ele vira cruzar-lhe o delírio celeste da felicidade à imagem de um assassínio. Agora esta imagem, então negra e maldita, como que lhe sorria, porque não se misturava com ideias de ventura, mas com as agonias da desesperação. Daquela vez um suor frio lhe manara da fronte ao arrancar o punhal do cinto: desta o seu espírito quase folgava ao imaginar que alguém se encaminhava para ali da sala de armas, e que ele tinha uma espada. Talvez Dulce aqui mesmo jurara a outro o amor que lhe mentira a ele! Talvez o seu rival a buscava!... Refugiu deste pensamento; porque era um pensamento que parecia esmagar-lhe o coração.
Enquanto tudo isto indistinto, travado, doloroso, fugia pela sua alma com mais rapidez do que nós o exprimimos, a porta em que o cavaleiro tinha os olhos fitos, através da ramagem do caramanchão, acabou de rodar nos gonzos, e um vulto saiu para o jardim. A figura e o trajo eram de mulher. O seu andar vagaroso e incerto, o arquejar comprimido, o volver contínuo do rosto, como quem observava se era seguida, davam claros sinais da viva inquietação que a agitava. Trazia vestido singelamente um epitógio escuro, e os cabelos envoltos em rede tenuíssima de ouro. À escassa claridade, que derramava longínquo fulgir das estrelas, aquele vulto de mulher semelhava-se a um anjo perdido nas trevas do mundo e da noite, tanto as suas formas eram suaves e ao mesmo tempo severas, os seus meneios nobres e modestos. O cavaleiro olhou mais atentamente... Era Dulce! Um grito de amor, de cólera, de prazer, de indignação, conglobados em gemido infernal, esteve a ponto de lhe fugir por entre os dentes cerrados: mas uma vontade de ferro conteve aquele primeiro impulso. Dulce havia parado.
E parara bem perto dele! Egas aspirava o perfume de seus cabelos, cria ouvir-lhe o cicio do respirar, o ranger das roupas negras, e nos olhos o brilho de uma lágrima. Escutou. A donzela alçou a fronte para o céu e murmurou:
— Desventurado! desventurado!
O trovador descobriu nestas palavras a angústia do remorso: era por certo o remorso quem arrancara esta expressão de piedade àquela que o traíra. Quem havia aí, senão ele, que fosse desventurado?
— Toda a afeição de uma irmã eu guardarei para ti - prosseguiu Dulce. Hei-de cumprir essa promessa que fiz perante o Senhor que me ouve! Mas o meu amor é já de outrem: como o repartirei contigo?
A donzela parecia delirar: tinha os braços estendidos e as mãos unidas como implorando a piedade de algum ente só para ela visível.
Nesta postura, à luz duvidosa da noite, em silêncio profundo, e no meio de atmosfera recendente e tépida agitada por leve aragem de Estio, a fascinação do amor era irresistível.
Aquela espécie de delírio em que Dulce caíra trocou-se repentinamente em impensada realidade. Um leve rugir de folhas secas a despertou do seu devaneio. No mesmo momento um cavaleiro coberto de saio e cervilheira de malha estava a seus pés, e segurando-lhe trémulo uma das mãos lha cobria de beijos ardentes.
Todo o ciúme, toda a procela, acumulada por dias de intenso martírio no coração de Egas, desaparecera.
— Meu Deus! - quis bradar Dulce, aterrada. Os lábios não puderam todavia repeti-lo.
Mas instintivamente recuara.
O encanto que havia subjugado por um instante o mancebo quebrou-se então: a sua alma reconquistou o esforço da desesperação, que tão de súbito o abandonara.
Ergueu-se e recuou também; mas em pé, e cruzando os braços, olhou para a pupila de D. Teresa como o juiz para um réu.
— Faz agora três anos e um dia - disse ele com voz lenta e na aparência tranquila - que neste mesmo lugar te jurei estar hoje aqui a teus pés! Meus juramentos cumpriram-se. Dulce, lembras-te dos teus?
— Meu Deus! Egas! tu aqui? Oh! que mal te fiz eu, para me matares com o inesperado da tua vinda? - murmurou Dulce desfalecendo, e vindo cair nos braços do trovador.
Mas estes braços não se uniram para a estreitar contra o peito! O cavaleiro afastou-a de si brandamente, e prosseguiu:
— Não é minha a culpa se um raio caído do céu vem partir a cadeia dos teus dias risonhos tecida pela traição. Meus juramentos cumpriram-se. Dulce, que fizeste dos teus?
O carácter de Dulce era um misto inexplicável de candura e de energia, em que a fraqueza própria do seu sexo era muitas vezes subjugada pelo sangue nobre e generoso que lhe girava nas veias - o sangue dos Bravais. A alegria súbita de ver Egas poderia ser-lhe fatal, se as palavras gélidas que ele lhe dirigia não houvessem temperado o delírio do primeiro instante. Nessas palavras conheceu a donzela que o ciúme era quem as ditava. O sentimento da injustiça com que o cavaleiro repelia a sua ternura a fez recobrar a consciência da situação em que se achava. Durante alguns momentos um silêncio profundo reinou entre os dois amantes, que olhavam fitos um para o outro. Dulce, por fim, tirando do seio um pequeno punhal, deu dois passos para diante, e arrojando para longe a bainha tomou-o pelo ferro, e oferecendo-o a Egas disse-lhe com voz a princípio firme, mas que brevemente as lágrimas cortaram:
Quando há três anos, Egas, o nobre trovador, partiu para o ultramar, a sua amante na hora cruel da despedida pediu-lhe uma lembrança, que bem dizia com os seus tristes pressentimentos. Esta memória foi o punhal toledano que ele trazia consigo. Dulce era uma pobre órfã: podiam constrangê-la a ser infiel; e então cumpria-lhe morrer: foi para morrer que ela o pediu... Egas! - prosseguiu a donzela - os meus juramentos guardei-os até hoje: juro-o por Deus que nos ouve! Mas se me crês culpada, ou que eu possa vir a sê-lo, vinga-te da traição, ou embarga-me o trair-te.
E estendia o punhal para o cavaleiro.
— Sabes que eu não poderia assassinar-te! - replicou Egas. - Nem para te assassinar vim aqui. O meu intento era outro... Qual?... Nem eu mesmo o sei... Trouxe-me mau grado meu a loucura da desesperação. Oh, sim!... agora me recordo... vinha para te dizer: "Dulce, fizeste bem em trocar o foragido, o homem que só possui a pouca terra que lhe deixaram seus pais; que não ganhou ainda nos enredos cortesãos um único préstamo, pelo cavaleiro estranho que pode e vale tudo com o senhor destes paços prostituídos... vinha dizer-te que cumpri a promessa de estar outra vez a teus pés dentro de três anos. Estive a teus pés!... Agora nunca mais perturbarei tua dita. Escusas de perjurar ao céu para negar o perjúrio..."
Dulce deixou cair o punhal, e estendendo para o cavaleiro as mãos confrangidas e trémulas de aflição, interrompeu:
— A minha dita cifrava-se em tornar a ver-te; em ouvir ainda de tua boca palavras de ternura: estas converteram-se em injúrias e escárnio. Caluniaram-me, e tu acreditaste a calúnia... Não devias fazê-lo. Perdoo-te, mas escuta-me!
— Escuta-me tu ainda mais algumas palavras - replicou o mancebo -: são as derradeiras que me ouvirás! Tu foste a única imagem que eu via enquanto combati, e padeci, e sofri além-mar: para ti sonhava eu sonhos de glória; por ti fiz ressoar as minhas endechas melancólicas debaixo dos cedros do Líbano, e com lágrimas de saudade refrigerei estes lábios queimados pelo sol ardente do deserto. O teu nome invoquei-o em mais de cem recontros, e ao invocá-lo aumentavam-se-me na alma o esforço e a constância. Tu eras a senhora dos meus pensamentos, a divindade do meu coração. Voltei a Portugal, onde esperava achar a recompensa de tanto amor. Qual foi ela? O meu futuro inteiro caiu-me hoje aos pés desfeito em cinza; porque este futuro estava nas mãos de Dulce, e Dulce, que eu cria anjo, era apenas mulher!
— Mata-me antes com esse ferro que jaz a teus pés - exclamou a donzela com voz débil e travada de choro -, mas não me faças expirar nos tormentos intoleráveis de coar pelo coração uma a uma as agonias que para ele manam das tuas palavras. Tem piedade de mim, Egas, e ouve-me!, que se me ouvires hás-de arrepender-te, e dizer: "Dulce, tu és tão inocente!... Os que te acusaram mentiram-me!". Oh! escuta-me por piedade!
E o tom daquelas expressões e a postura suplicante da formosa órfã abrandariam o instinto de um tigre: o cavaleiro vacilou.
— Houvera eu, desgraçada, de dizer-te essas palavras; houvera de achar no horizonte da minha vida uma beta de luz e esperança! Mas a boca de homem que nunca mentiu me confirmou sem o querer o que a fama confirmava. - E depois de olhar para ela fito alguns momentos, prosseguiu: - Não amas tu um desses aventureiros que oprimem a boa terra de Portugal? Não vais ser em breve esposa...
— Não acabes essa ideia terrível - atalhou Dulce com ânsia que tocava quase as metas do frenesi. - Esposa?! Só tua ou do túmulo. Nem o mundo, nem Deus teriam força para me constranger a tanto. As aparências enganam, Egas! Saberás a verdade: só a verdade, e sê tu o meu juiz.
O acento com que a donzela proferira estas palavras parecia tanto vir da alma, que a persuasão da infidelidade de Dulce, que tudo conspirara para arraigar no ânimo do cavaleiro, começava a trocar-se em hesitação porventura mais dolorosa que a certeza dessa infidelidade em que até aí estivera.
— Crês tu - replicou ele - que o peregrino expirando no meio das ânsias de sede devoradora recusasse a taça de água cristalina? que o supliciado, no meio dos tratos de algozes, não quisesse ouvir a palavra basta! da boca do juiz? que o condenado rejeitasse o céu pelo inferno?... Oxalá que os últimos oito dias que tenho passado, e que devoraram anos e anos de meu viver, não houvessem sido mais que um pesadelo maldito. Anjo que vi despenh ado, pudesse eu adorar-te ainda como a um anjo de luz! Se neste mundo há para Egas futuro e para ti inocência, salva-me de mim mesmo.
Então Dulce apertando com um movimento convulso a mão do cavaleiro a encostou entre as suas ao peito, como se esperasse que no pular do coração ele pudesse conhecer que saía de lá pura e sincera a narração que lhe ia fazer.
Esta narração era a história do amor de Garcia Bermudes, amor a que ela respondera sempre com a dissimulação como o leitor já sabe. Dulce nem disfarçou a espécie de afeição inocente que consagrava ao aragonês, e que dera origem às suspeitas que tão de leve o ciúme de Egas acreditara, nem os desejos do conde e da infanta de a verem unida àquele nobre e esforçado cavaleiro. Não lhe esqueceram os acontecimentos do último sarau, e a repulsa positiva que se vira finalmente constrangida a dar. Conhecendo o carácter altivo e ao mesmo tempo generoso de Garcia, entendera dever-lhe explicar a causa daquela repulsa, e fiar dele os segredos mais íntimos do seu coração, dando-lhe assim uma prova de estima em lugar de amor. "Era esta derradeira consolação - concluía Dulce - que eu acabava de dar àquele desventurado, quando tu vieste cego pelo ciúme despedaçar o coração da tua amante, que te sacrificava o homem que por certo amaria, se para ela houvesse neste mundo amor, pensamento, esperança, que não fosse Egas, que não fosse aquele que vai pedir-me perdão das suas suspeitas, que tão tristes me tornaram os instantes que deviam ser os mais deliciosos da minha vida."
As mãos do cavaleiro apertavam já com amor as de Dulce; por isso, enquanto falara, no rosto da donzela as lágrimas se haviam desvanecido pouco a pouco no deslizar de um sorriso.
— Dulce, Dulce! - exclamou o cavaleiro. - Oh! repete-me que só amas o teu Egas! Jura-me que é verdade tudo isso!
— Farei mais - atalhou a donzela num êxtase de alegria. - Arranca-me destes paços se há para isso algum meio. Abandonarei aquela que me criou como filha querida, e seguir-te-ei a ti, que não podes abusar do meu amor, porque és um leal cavaleiro. Seguir-te-ei por toda a parte; no esplendor ou na miséria; na terra da infância ou nas solidões do desterro; na liberdade ou em ferros. Junto ao altar o nosso amor será santificado pela bênção de Deus, e eu serei tua, tua só, tua para sempre!
E Dulce caiu nos braços do guerreiro trovador, que desta vez a estreitou contra o peito, e lhe imprimiu na fronte um beijo ardente e puro como os pensamentos de ambos. Naquele instante os seus corações transbordavam de celeste e inefável ventura: não cabiam neles as grosseiras sensações terrenas.
— Tens razão! - disse o cavaleiro. - De cima me veio a inspiração de buscar-te antes de morrer, porque tu me restituis a vida. Sim, irás comigo. Amanhã ao cair das trevas eu serei aqui. Todos os meios de fuga estarão preparados, no arraial do infante, que não vem longe, acharemos brevemente abrigo, e aí seremos unidos pelo ven erável arcebispo de Braga.
— Mas no meio de tantos homens de armas, dos atalaias e vigias que guardam pontes, barbacãs e muralhas, não correrás grande risco?
— Oh! não o receies - interrompeu o cavaleiro. - O ouro e, se for preciso, o ferro nos abrirão caminho até o vau do Madroa. Esperar-me-ão no bosque os meus homens de armas. Para transpor a barbacã talvez nos baste vestir as esclavinas de romeiros. Ninguém haverá tão ímpio que nos pergunte: "Peregrinos do Santo Sepulcro, para onde é que vós ides?" O romeiro é livre como a ave do céu: respeitam-no o besteiro e o homem de armas; dá-lhe abrigo o vilão sob o seu colmo, o abade no seu mosteiro, o nobre no seu castelo. Quando ouvires cantar lá em baixo junto à torre aquela trova que eu fiz ao despedir-me de ti:
Vai-se o vulto do meu corpo
Mas eu não;
Que a teus pés cá fica morto
O coração;
Serei eu que virei arrancar-te destes odiosos paços; e então serás minha, minha para sempre!
— Mas se te descobrirem?... Oh, que é uma ideia terrível... Neste momento um silvo agudo soou da corredoura contígua ao jardim.
— É Abul-Hassan que me faz sinal - disse o cavaleiro estremecendo. - Devo deixar-te, minha Dulce.
— Já!? - murmurou a donzela.
— Sim - replicou Egas -, para poder sair ainda hoje de Guimarães. Sem isso a tua partida fora amanhã impossível.
Um véu de melancolia cobriu o coração de Dulce. Terror inexplicável se apossara dela, como se houvera de ser aquela a última vez que visse o cavaleiro.
— Parte pois - disse com voz débil - mas ama-me sempre muito!
Egas então caindo a seus pés, e pegando-lhe na mão com uma alegria que tocava quase as raias da loucura, cobriu-lha de beijos.
— Oh, amar-te!? - dizia ele. - Mil vezes mais que a vida; cem vezes mais que a honra de cavaleiro! Amanhã! Amanhã... e para sempre!
E erguendo-se rapidamente desapareceu no passadiço escuro, que dava saída para a corredoura.
Dulce parecia petrificada olhando para o sítio por onde Egas saíra, como quem tentava ainda descobrir a sua imagem, escutar a sua voz, no meio das trevas da noite e do silêncio profundo que a rodeava.
Não ouviu, porém, mais que o tropear de um cavalo que partia a galope, nem viu mais que a luz reflexa da sala do banquete que, batendo pelo interior das muralhas do castelo, tingia um grande lanço da cerca com a claridade baça e variegada, que jorrava pelas vidraças de mil cores do festivo aposento.
Dulce ajoelhou e, alevantando as mãos juntas para o céu, onde cintilavam miríadas de estrelas que mal podia distinguir através das próprias lágrimas, exclamou com um gesto de íntima agonia:
— Meu Deus, meu Deus! Porque me desfalece a esperança?!
Era o coração que lhe predizia algum sucesso terrível? Quem sabe?
Notas
editar- ↑ Cantares é o nome que o auctor ou actores do Cancioneiro chamado do Collegio dos Nobres dâo a cada um dos poemetos ou cantigas de que elle se compõe.