Depois de acabado o banquete, quando os cavaleiros começaram a derramar-se pelas salas esplendidamente adornadas dos paços de Guimarães, e a descer aos pátios onde os cavalariços os esperavam com os cavalos deles e dos seus acostados e pajens, Fr. Hilarião, receoso de um novo encontro de Gonçalo Mendes com Veremudo Peres, o qual teria provavelmente consequências que naquela melindrosa conjunção era necessário evitar, com tal arte soube reter o violento rico-homem na sala de armas que, ao descer ao terreiro interior, este começara a estar deserto, porque mais de uma hora tinha passado. Aí mesmo ainda o abade procurava, parando, demorar a saída do cavaleiro com intermináveis reflexões e perguntas sobre os receios e esperanças que agitavam todos os ânimos. No meio, porém, da manhosa conversação do velho monge um caso inesperado veio interrompê-la.

O vasto pátio que precedia o palácio estava apenas alumiado pela luz afastada de uma almenara, colocada no eirado da agigantada torre alvarrã, e pelo ténue reflexo de dois fogaréus que ardiam aos lados da ponte levadiça. A claridade dos dois fachos, atravessando por baixo do portal soturno, ia bater somente no átrio da escadaria que dava comunicação para a sala de armas. De um e de outro lado do terreiro as trevas pareciam profundas aos que seguiam da escada ao portal por aquela espécie de estrada de luz, mas por isso mesmo estes eram perfeitamente vistos por quem quer que estivesse de uma ou de outra parte.

No momento em que parou, Gonçalo Mendes viu ao pé de si um indivíduo, que ele supunha já bem longe de Guimarães.

— Como assim, Odório Fromarigues?! Há mais de uma hora que devíeis ter partido para a terra da Maia. Os anos, meu amo, têm-vos tornado os pés tardos.

Apessoa a quem o Lidador dirigia estas palavras era um velho, pequeno de corpo, magro, olhos como duas ervilhacas, e tez semelhante a um pergaminho de sete séculos amarrotado. Trazia vestido um lorigão negro, e na cabeça um camalho, que, cobrindo-lhe o pescoço até os ombros e circundando-lhe o rosto como a toalha de uma freira, apenas lhe deixava este visível. Aquele trajo militar era o de um simples homem de armas ou acostado de rico-homem; porque o arnês de solhas e o elmo ou capelo de ferro brunido ainda eram armadura demasiado custosa para os que, pelo menos, não pertenciam à classe dos simples cavaleiros.

A resposta do velho às palavras de Gonçalo Mendes, nas quais, posto que proferidas em tom submisso, transluzia o despeito, foi pôr o dedo na boca, fazer-lhe sinal que o seguisse, e encaminhar-se para um dos recantos do pátio onde a escuridade parecia mais profunda.

Odório Fromarigues era o vílico do solar da Maia. O vílico do século XII, quer o fosse do rei, conde, ou senhor supremo, quer de um vassalo poderoso, correspondia não só ao moderno administrador ou mordomo de rico fidalgo, mas também representava a autoridade administrativa e ainda em certos casos a judicial, dentro dos limites da honra, préstamo ou senhorio respectivo. Era ele quem por via de regra fazia o alardo, e muitas vezes capitaneava na guerra os peões, besteiros, frecheiros e fundeiros, e na ausência do senhor fazia as suas vezes em todos os lugares, salvo nos castelos ou castros, onde ao alcaide ou tenente tocavam em grande parte as atribuições do vílico. Conforme a promessa que fizera ao homem do zorame, Gonçalo Mendes ao subir para a sala do banquete, encontrando aí entre os seus acostados Odório Fromarigues, que nessa ocasião se achava na corte, lhe ordenara partisse imediatamente a todo o correr do cavalo para a terra da Maia, e convocando oitenta acobertados e sessenta peões os tivesse a ponto com caldeira e pendão, para cumprir as ordens que brevemente lhe havia de comunicar. Receando que o vílico cometesse alguma imprudência, nada mais lhe fizera saber, resolvido a enviar no dia seguinte um cavaleiro que devia acompanhar aquela mesnada, ou força, como hoje diríamos, até o arraial do infante.

Tanto o Lidador como o abade haviam seguido o vílico para o sítio que ele parecia buscar com toda a precaução. Chegados a um canto escuro entre a sacada interior de uma torre e a escada que subia para o adarve da quadrela contígua, o vílico parou, voltando-se para os dois.

— Porque não partiste? - perguntou o cavaleiro. - Que mistérios são estes?

— Não pude - respondeu o velho. - Os vigias, roldas e sobrerroldas têm as mais estreitas ordens para não deixarem passar além das barbacãs do burgo ninguém; seja quem for: o próprio conde de Trava não é exceptuado. Entre os homens de armas correm várias notícias. Se acreditarmos o que se diz...

Aqui o vílico hesitou e calou-se.

— Que é o que se diz? - acudiu o Lidador depois de alguns momentos, impaciente com o silêncio de Odório Fromarigues.

— Que - prosseguiu o velho ainda hesitando - há conjurados contra a rainha dentro de Guimarães; e ousam pronunciar o nome de um dos mais ilustres e leais ricos-homens de Portugal como o cabeça e movedor da conjuração.

— E cujo é esse nome? - insistiu com voz firme o Lidador.

— É... - tornou o vílico em tom quase imperceptível - é o vosso!

— Oh, entendo, entendo! - murmurou com uma cólera reconcentrada Gonçalo Mendes. - Medem-me por si os miseráveis! Porém, não! Eles bem sabem que lealmente eu diria à rainha: "Senhora, não será para estrangeiros meu preito, que o devo a vosso filho." Bem sabem que à luz do meio-dia eu movera os meus pendões para a hoste de Afonso Henriques. Conspiradores covardes são eles, porque querem colher às mãos indefesas os que temem encontrar nas lides.

— Esqueceis-vos, meus nobres senhores, que tenho comigo vinte acostados, e que vinte acostados meus são sobejos para, mau grado vosso, romper larga saída por essas tão vigiadas barreiras?

— Vílico - prosseguiu ele voltando-se para Odório Fromarigues -, vai-te ao meu bairro: previne já os nossos cavaleiros que vistam imediatamente as armas; e que juntos na minha pousada vigiem das ameias as ruas em roda, porque nos ameaça uma negra traição. Eu breve serei com eles.

O tom com que o esforçado rico-homem proferira estas palavras não admitia observações: o vílico obedeceu.

Apenas ele partira, Gonçalo Mendes dirigiu-se a Fr. Hilarião.

— Abade do Mosteiro de D. Muma, vós me acompanhareis. A vossa amizade para comigo pode ser-vos fatal: o conde de Trava não é homem que respeite a santidade do sacerdócio, e a vida, ou pelo menos a liberdade, vos correria grão risco se nas prevenções desta noite se esconde, como suspeito, um pensamento atroz.

— Deixai o obscuro monge - respondeu o frade - e salvai o ilustre guerreiro. Que importa a liberdade ou a vida de quem como eu já de mais tarda ao sepulcro? A morte, posto que me aterre, achar-me-á resignado. Mas o que mais temo é o vosso próprio esforço. Com vinte homens de armas que podeis fazer em Guimarães, onde Fernando Peres conta mais de mil lanças dos seus parciais?

— Ao romper da alva - replicou o cavaleiro - por meio desses vigias e roldas a minha acha de armas abrirá franca passagem aos vinte cavaleiros do solar da Maia. Os que então se opuserem à sua saída - prosseguiu com um sorriso amargo - não terão, juro-vo-lo eu, largo alento para dizer ao conde de Trava: "Gonçalo Mendes, ei-lo que vai juntar-se com os seus à hoste do infante de Portugal." Ao menos terei ao partir selado para sempre alguns lábios desses que ousaram proferir o meu nome de envolta com o título de desleal.

— A ousadia - tornou o abade - vos faz parecer fácil tão dificultosa empresa: mas o perigo é imenso. Se no primeiro ímpeto não puderdes salvar as barreiras, estais perdido; e esta tentativa desesperada dará cor de verdade às acusações dos nossos inimigos.

— É necessário sair desta situação violenta - interrompeu o Lidador. - Sei o que significa tão repentino converter do burgo de Guimarães em vasta prisão de homens livres. Quando aí se arrisque a vida, que importa? Estes pulsos não foram feitos para os ferros do senhor de Trava.

— Mas se houvesse um meio - replicou Fr. Hilarião - mais seguro de vos pordes em salvo com os cavaleiros de vossa honra...

— Há! - disse uma voz que parecia soar do chão junto aos pés do monge.

Gonçalo Mendes recuou metendo mão à espada; e ambos procuraram no meio da escuridão descobrir donde partira aquela palavra.

— Quem é que nos escuta? - bradou o cavaleiro.

— Eu! - disse a mesma voz, acompanhando esta palavra com uma grande risada.

— É a voz e o rir de Dom Bibas! - exclamou o abade ainda sobressaltado. - Agora me recordo de que fica para este lado a sua humilde pousada.

O monge, o cavaleiro e todos os habitantes dos paços de Guimarães haviam-se completa e profundamente esquecido do truão, como porventura terá acontecido a mais de um dos nossos leitores.

Neste momento a luz de uma lanterna de furta-fogo deu de chapa nos vultos do Lidador e de Fr. Hilarião. À ténue claridade que nos próprios corpos se refrangia, eles viram um braço, que segurava a lanterna no vão de uma porta baixa meia cerrada, que mais parecia o ádito da pocilga de um mastim que de habitação de homens. No meio do vão escuro luziam dois olhos, e alvejavam os dentes de boca escancarada por um rir que devia ser feroz.

— Que fazes aqui, truão? - perguntou o cavaleiro colérico.

— Escutava - respondeu tranquilamente o bobo estendendo a cabeça para os dois.

— Foi desgraça tua! porque me é necessário o teu silêncio - murmurou o Lidador, largando a espada na bainha, travando do braço de Dom Bibas, e levando a mão ao punhal que tinha no cinto. O bobo não deu o menor sinal de susto e, vendo este movimento do cavaleiro, que porventura só pretendia aterrá-lo, com um tom de amargo escárnio replicou ao ouvir aquelas palavras ameaçadoras:

— Não gasteis comigo, nobre senhor, a única moeda com que vós outros os poderosos comprais não só o silêncio, mas tudo aquilo de que careceis para satisfazer paixões brutais. Se eu quisesse delatar o que vos ouvi, não fora tão louco que vos falasse.

— Respondo por Dom Bibas - acudiu o abade. - Não é ele capaz de trair-nos. Quis exercitar seu mister, e bem sabeis que seu mister é gracejar.

— Fr. Hilarião! - interrompeu o bobo - entre a vida que foi, e a que é e há-de ser, há para mim um abismo. Cavaram-no os estrangeiros; mas eu os despenharei aí! E depois Dom Bibas, o folião, o bobo, assentar-se-á na borda dele para lhes alegrar a queda: para rir e zombar. À pergunta que fizestes se haveria meio de sair de Guimarães este nobre cavaleiro, que intenta manchar seu rico bulhão no sangue vil de um jogral, e os homens de armas da Maia, respondi eu que havia. Juro que não menti. Tenho para isso meio fácil. Podeis aproveitar-vos dele, se é que o benefício de um bufão não desonra um rico-homem de ilustre linhagem.

— Dom Bibas! - replicou o abade, fitando nele os olhos como quem buscava ler na sua alma - é impossível que queiras escarnecer de um nobre cavaleiro que nunca te maltratou e de um pobre velho que sempre achaste indulgente, enquanto os outros monges te repeliam como a um réprobo, desde o dia em que despiste o nosso santo hábito para te atirares aos deleites do mundo e, di-lo-ei, à devassidão da vida de um jogral. É impossível, repito, que as tuas palavras sejam apenas uma cruel zombaria. Mas como hei-de eu acreditar-te? Que auxílio nos podes prestar, tu humilhado e fraco?...

— Bem sei que sou fraco! Oh! bem sei! - interrompeu o bobo com um acento em que se misturava a desesperação e a dor. - Essa terrível verdade está escrita com sangue no meu corpo pelas mãos dos cavalariços de Fernando Peres, e com fogo nos seios da minha alma pelo dedo da amargura. Sou fraco!... porque não embraço um escudo, nem meneio uma acha de armas! Sou um homem condenado ao mais atroz dos tormentos; a chamar o riso aos lábios e a alegria ao gesto quando o coração está em noite. Sou fraco... porém não sou vil! Mais fraca é a víbora... e também o homem, que é forte, a calca e passa avante: mas pisada, ela alça o colo, vibra a língua farpada: e passado um dia, por cima do cadáver do forte, do homem, o ente fraco, a víbora, pode arrastar-se, rolar, sem que ele alevante o pé para a esmagar de novo!...

O cavaleiro e o monge, cujos olhos se haviam afeito à luz escassa da lanterna do bobo, estavam pasmados ouvindo aquelas palavras e vendo aquele gesto truanesco, em que se pintavam o ódio, a raiva, a desesperação. Atónitos, custava-lhes a crer o que presenciavam, ignorando o que se passara no jardim pênsil. O Lidador largara o braço de Dom Bibas; e a muito custo puderam os dois perceber dos seus discursos truncados o motivo do furor do chocarreiro.

— Fico tranquilo! - disse por fim Gonçalo Mendes. - A injúria cruel que recebeste e essa sede de vingança são os teus fiadores. Agora afastemo-nos daqui - acrescentou ele dirigindo-se ao abade. - Não devo demorar-me por mais tempo. Cumpre ter tudo disposto para sairmos ao romper de alva. A Virgem e Sant'Iago sejam convosco.

Ia a afastar-se. Dom Bibas, porém, o reteve, segurando-lhe com força a orla do saio.

— Não saireis sem me ouvirdes! - exclamou o bufão. - Quando os sisudos traçam, como vós, impossíveis, importa que os loucos tenham juízo por eles. Os vossos intentos são vãos; porque antes da madrugada vinte homens de armas da terra da Maia terão sido arrastados aos calabouços desse castelo, e talvez a cabeça de ilustre rico-homem tenha rolado aos pés do algoz. Certo cavaleiro, que há pouco trajava um zorame, deve, se cair nas mãos do conde de Trava, acompanhar o nobre senhor neste transe que o aguarda. O cavaleiro do zorame chama-se Egas Moniz, e o rico-homem chama-se Gonçalo Mendes da Maia.

O abade ficara estupefacto ouvindo as palavras do bobo; porém no ânimo do Lidador, o perigo iminente que este lhe anunciava só despertou mais violenta indignação misturada de curiosidade. Como soubera Dom Bibas da vinda de Egas Moniz? Como adivinhara ele os intentos do conde de Trava? Qual era esse meio que se gabava de ter para os salvar? Havia nisto tudo um enigma, cuja explicação era necessário encontrar. O chocarreiro, porém, lhe rasgou o véu do mistério.

Apenas, lacerado dos açoutes e manando sangue das costas, escapara das mãos dos cavalariços e pajens, Dom Bibas fora esconder na espécie de covil, em que vivia, a sua dor e vergonha. Era um pesadelo, um delírio aquilo por que passara: era monstruoso e incrível. Posto às varas como um servo, ele homem livre; ele tão mimoso de seu bom senhor D. Henrique! As lágrimas correram abundantes por essas faces habituadas de longos anos unicamente às contracções das visagens truanescas. As lágrimas, porém, nem o consolaram, nem bastavam à sua desesperação. Depois de se rolar pelo chão mordendo os punhos cerrados, o bufão assentou-se a um canto, como o lobo cerval colhido no fojo, cansado de lidar em vão por salvar-se. Todo o fel, que o rir forçado de tanto tempo lhe fizera, por assim dizer, absorver e calcar no coração, achou enfim um resfolgadouro no ódio implacável que a dolorosa e terrível afronta recebida lhe gerara lá dentro. O pensamento da vingança alcançara o que não haviam obtido as lágrimas: Dom Bibas sentia agora que ainda havia para ele consolação e esperança.

Mas como vingar-se? Ignorava-o. Juraria contudo que Belzebu lhe dizia ao ouvido: "Pensa bem; que hás-de atinar com o caminho que buscas." Quem deixou de achar meios neste mundo para satisfazer paixões más?

Maquinalmente Dom Bibas despira as roupas variegadas de folião, e vestindo um simples trajo de escudeiro, galgara as escadas do paço. Na confusão que reinava na sala do banquete ninguém o conheceu. Girando de uma para outra parte ele cogitava no modo por que poderia obedecer ao pensamento irresistível que o agitava. A esperança de que a festa terminasse, segundo o costume, por completa embriaguez em que o sangue corresse, e que talvez no meio da desordem alcançasse aproximar-se do conde, lhe sorriu um momento. Então pensava lá consigo como uma boa punhalada pagaria a dívida do truão ao nobre senhor! Mas arriscava-se a errar o golpe, e ele precisava da vida até obter completa vingança. Também pela cabeça desvairada do chocarreiro passou a ideia de envenenar a taça ou copo por onde Fernando Peres havia de beber. Mas fora impossível sequer o tentá-lo sem ser descoberto. Flutuando assim a sua imaginação desregrada de pensamento em pensamento, Dom Bibas se conservara na sala do banquete até o fim: vira entrar Garcia Bermudes, e os sinais de acordo que houvera entre ele e o conde. Ao retirar-se a rainha, o bobo se aproveitara do tumulto dos cavaleiros que saíam, para renovar uma das suas usuais habilidades, com o intento de observar até o fim o que se passava. Os sergentes e pajens apressavam-se a lançar mão dos restos do banquete, e por entre eles Dom Bibas pôde sumir-se debaixo dos ricos panos, que, segundo o costume do tempo, cobriam, até rojar pelo chão, aquela vasta mesa. Ali, ora escutando, ora coando pela memória um a um os açoutes que recebera e as chufas e apupos dos cavalariços e servos, ele despertava na própria fantasia um tropel de vinganças imaginárias, a qual delas mais absurda e inexequível. O louco, por arte, desde que deixara de rir, tocava quase as raias da verdadeira loucura.

Daquele esconderijo o bobo ouvira perfeitamente o que se passara entre o conde de Trava, o alferes-mor e o filho de Veremudo Peres. As revelações deste, as ameaças do conde, e a comissão misteriosa de que Garcia Bermudes encarregara o pajem, nada escapou a Dom Bibas. Para os seus intentos esta conversação fora um raio de luz. Fernando Peres receava-se de uma traição de senhores e cavaleiros ilustres, e era ele vilão humilde, ele jogral, ele verme desprezível que o mui nobre conde crera esmagar, num momento de cólera, quem podia entregar Guimarães ao infante, e despedaçar nas mãos do ambicioso e altivo barão não só o poder mas a vida. Dom Bibas esteve a ponto de soltar um rugido de contentamento ao ocorrer-lhe essa ideia, e um clarão de danada esperança alumiou as trevas da sua alma.

Desde a morte de D. Henrique, o seu bobo querido caíra da grande altura do valimento ao nível dos animais domésticos; o seu fado fora o dos privados do príncipe que desceu ao túmulo; e, como sucede a estes frequentemente, se não o expulsaram do importante cargo que exercitava, foi que ninguém havia aí que o substituísse. Lançaram-no, porém, para aquele aposento baixo, triste e húmido, em que Dom Bibas desde então habitava, consolando-se do desprezo com essas horas de glória e triunfo, em que imperava, rei das festas nocturnas, nos saraus esplêndidos e nos banquetes sumptuosos, a que ele dava vida e cor com as suas agudezas e chascos.

Nesta espécie de caverna, para onde fora desterrado, o bom do truão curtira muitas horas de tédio: a solidão para qualquer alma sem afectos é um tormento real, e a alma de Dom Bibas era por esse lado uma verdadeira Tebaida. Certo dia em que deitado no seu almadraque tinha os olhos fitos numa réstia de sol que dava de chapa na parede fronteira, pareceu-lhe divisar nesta os vestígios de uma porta entaipada. A curiosidade o incitou a fazer mais atenta averiguação. Não se enganara. À força de tempo e diligências pôde abrir suficiente passagem para o esconderijo que achara. Era este um daqueles caminhos subterrâneos, comuns em quase todos os castelos da Idade Média, por onde nas últimas estreitezas os defensores dos lugares fortificados alcançavam salvar-se quando a resistência se tornava impossível. Este caminho, que parecia pertencer à fundação primitiva do Castelo de D. Muma, fora provavelmente condenado como inútil quando o genro de Afonso VI lançara em roda dos seus paços soberbos uma cinta de muros e torres inexpugnáveis.

Nunca Dom Bibas revelara o descobrimento casual que fizera. Este homem, que nada possuía, quisera ao menos possuir um segredo. E na presente ocasião aquela inocente avareza lhe punha nas mãos um rico tesouro: o cumprimento dos seus vingativos desejos. A entrada do subterrâneo era longe, e o bobo atravessando-a algumas vezes tivera o cuidado de tornar ainda mais cerradas as balças, sarças e troncos que a encobriam. A ideia que lhe ocorrera

ao ouvir a conversação do conde e do alferes-mor fora a de fazer servir este caminho desconhecido ao ódio que o devorava. O infante dirigia-se a Guimarães, e na primeira noite ele lhe podia dar nas mãos aquele invencível castelo. Assim, apenas vira deserta a sala do banquete, saíra e viera fechar-se na sua pocilga, para cogitar no modo de executar seus intentos. Deitado no roto e imundo almadraque estava embebido em reflexões, quando ouviu falar o cavaleiro e o monge. Pôs-se a escutá-los, e do seu diálogo conheceu os receios que os agitavam, receios que ele sabia serem bem fundados. Deus ou o demónio lhe trouxera ali os instrumentos da vingança. Dando saída ao Lidador e aos seus cavaleiros, o esforçado senhor da Maia ficaria sabendo o meio de saltear este vasto e sólido castelo, que aliás parecia inconquistável.

Tal foi em substância a narração de Dom Bibas, que, fechando a porta, conduzira o monge e o rico-homem ao lado do aposento onde ele abrira entrada para o subterrâneo.

— Por aqui - dizia o bobo com um rir diabólico - é o caminho da salvação para vós, e para mim o de ver realizado o que será de ora avante o único pensamento da minha vida.

O Lidador ficou por algum tempo em silêncio, e por fim exclam ou:

— Mas quem há de salvar os meus bons e leais cavaleiros, que me aguardam?

— Eu - acudiu o bobo. - As portas do castelo ficam abertas, porque os vigias e roldas correm pelas barbacãs. Saí vós outros, e esperai-os à boca do subterrâneo. Dentro de poucas horas todos estarão convosco. Basta que me deis um sinal com que eu possa fazer que eles me obedeçam.

O Lidador pareceu assentir à proposição de Dom Bibas; porque, tirando da escarcela uma tabuazinha coberta de cera, com um anel que tinha no dedo estampou nela o seu selo de camafeu e, entregando-a ao bobo, lhe disse:

— Vai, apresenta isto ao meu vílico, e serás obedecido em tudo.

— Falta ainda uma cousa! - continuou Dom Bibas. - Reverendo abade, vesti esse trajo de escudeiro que aí vedes e deixai-me vossa cogula. Não sei o que me diz o coração... Talvez me seja necessária. Será esta a primeira recompensa do serviço que ora vos faço.

Fr. Hilarião hesitou; mas o terror das ameaças que o truão ouvira ao conde só lhe dava lugar a uma ideia: a de sair de Guima-

rães sem risco. Depois de cinquenta anos de vida monástica, pela primeira vez o monge trocava por trajos profanos o seu santo hábito.

Dom Bibas entregou a lanterna de furta-fogo aos dois amigos, que se internaram no subterrâneo. Tanto que desapareceram, ele abriu às apalpadelas a porta exterior da sua pocilga e, cosendo-se com o muro do pátio, atravessou a ponte levadiça e encaminhou-se para o bairro do senhor da Maia.