MEU amigo,

Julgo de necessidade, para clareza de alguns pontos, e tua com­preensão, aditar a carta que precede esta história.

Confirmo aqui tudo o que deixei dito no texto a respeito do meu protagonista.

Por mais extraordinário que pareça — ele na realidade não se mede pelos moldes vulgares e conhecidos — o Cabeleira não é uma ficção, não é um sonho, existiu, e acabou como aqui se diz.

Foi objeto de muitas trovas matutas e sertanejas, de episódios dramáticos e anedotas acinte engendradas para amedrontar a basó­fios importunos, e pôr em fugida fanfarrões arrogantes. Esta parte, por assim dizermos, cômica da vida do notabilíssimo bandido, será assunto de outro livro.

Se entrasse neste, desdiria da sua idéia capital, filosófica, so­cial, e obrigar-me-ia a proporções que não imaginei para o meu trabalho por me parecerem excessivas nos que afinam pela cra­veira dele.

Não obstante terem sido numerosas as trovas de que foram assunto sua vida e morte, e haver eu metido as minhas melhores forças por conseguir todas elas, ou pelo menos tantas quantas bastassem para dar, com uma notícia mais larga do célebre valen­tão, uma amostra por onde pudesse ser devidamente aferida a musa popular do norte há um século, não pude obter mais do que as que entremeei no texto.

Não me atrevi a mudar-lhe uma só palavra, uma vírgula sequer. Para o fazer, se eu o quisesse, acharia apoio nos exemplos dados por autorizados engenhos e nomeadamente por Garrett no seu Roman­ceiro.

Não quis usar desta faculdade. Fez-me escrúpulo tocar no le­gado que tem por si a consagração de algumas gerações; e como eu o recebi dos nossos maiores, assim o receberá de mim a pos­teridade, se não se interpuser, como é quase certo, entre ela e este livro o esquecimento, prêmio natural das produções míni­mas.

A parte propriamente histórica foi escrita de acordo com a se­guinte passagem das Memórias históricas da província de Pernam­buco por Fernandes Gama:

"Havia anos que um famigerado mameluco, chamado Cabeleira, um filho deste, e um pardo de nome Teodósio, ladrão mui astuto, horrorizavam esta província com seus enormes crimes. Aqui mesmo, nesta cidade, esses facínoras cometiam furtos e homicídios; mas nas nossas circunvizinhanças tinham infundido tão grande terror, prin­cipalmente os dois primeiros, que ninguém se julgava seguro. Para todos se armarem, como se uma grande quadrilha ameaçasse os bens e as vidas de todos, nada mais era preciso do que espalhar-se a notícia de que o Cabeleira se aproximava. Tudo se punha em armas, e aqueles que assim não se preveniam por timoratos, os recebiam com submissos obséquios, e se prestavam apressados a todas suas exigências.

"José César fez marchar contra esses malvados diferentes partidas militares, com ordem de os conduzirem vivos a esta cidade, e tendo essas partidas, com algum prejuízo, porque os facínoras resistiram, conseguido prendê-los, foram eles processados, e afinal condenados pela junta de justiça a morrerem enforcados; senten­ça que cumpriram quatro dias depois de proferida e subiram ao patíbulo, dando mostras de grande contrição, e arrependimento de seus delitos.

Os trovadores daquele tempo compuseram cantigas alusivas á vida e morte do Cabeleira: e ainda hoje as velhas cantam essas trovas quando acalentam os netinhos."

É de observar que pela alcunha Cabeleira, a meu parecer deve entender-se antes o filho do que o pai; e que Fernandes Gama, designando com ela este último, foi vitima de equivocação muito desculpável em um escritor que escreveu quase um século depois dos acontecimentos.

Os trovistas deixam fora de dúvida este ponto quando dizem:

Fecha a porta, gente,
Cabeleira aí vem;
Ele não vem só,
Vem seu pai também.
Meu pai me pediu, etc.
Meu pai me chamou, etc.

Enfim, quase todas as trovas autorizam crer que a alcunha pertenceu ao filho, e só a este.

Ainda outro argumento a favor desta opinião, se o que aí fica não fora mais que bastante.

A musa do povo não cantaria um tão grande assassino se nele não descobrisse algumas qualidades dignas. A musa do povo não é torpe, não exalta o sicário infame e no todo desprezível. Por este chora o povo uma lágrima ao passar por ele, e afasta-se triste e mudo, não lhe dá um lugar na sua imaginação, não lhe con­sagra uma nota do seu melancólico e suavíssimo instrumento.

Seus trenos singelos e santificadores, se algumas vezes envol­vem em si um nome odioso, é que este nome representa também alguma virtude grande, a que o sentimento do justo, inato no coração do povo, não é indiferente. O pai do Cabeleira não tinha nenhuma virtude digna desta distinção.

Os trovistas pernambucanos do século XVIII cantaram no Cabeleira, não o matador que fazia tremer populações como um cataclismo, cantaram o grande ânimo que, por desviado do bom caminho, chegou a pagar com a vida no patíbulo os crimes que a bem dizer pertenciam menos a ele do que a outrem.

Cantaram o grande exemplo que afirma a necessidade da instrução e da educação, sem a qual espíritos que poderiam chegar a ser úteis à sociedade, e legar um nome honrado e querido, se convertem em instrumentos da destruição dela e de si próprios, e deixam uma memória execrada. ou lamentável.

Estas verdades ressaltam das letras que dizem:

Minha mãe me deu
Contas pra rezar;
Meu pai deu-me faca,
Para eu matar.

Quem tiver seus filhos
Saiba-os ensinar;
Veja Cabeleira
Que vai a enforcar.

Tenho para mim que a morte do Cabeleira, não obstante os seus imensos crimes, comoveu a sociedade que foi dela testemunha, o que só se pode explicar pela convicção nela reinante, de que o infeliz mancebo fora na prática de tais crimes, antes arrastado por uma forca estranha ao seu natural do que por este impelido. Daí o pesar inspirado pelo Cabeleira aos trovistas, e a distinção que deles me­receu, distinção que não se estendeu nem a seu pai nem ao seu par­cial Teodósio, que aliás, deram, como aquele, mostras de grande contrição, e arrependimento de seus delitos, segundo escreve Gama.

De uma carta que na entrada de março último recebi de meu amigo Francisco P. do Amaral, cuja sisudez é conhecida em Per­nambuco, onde ele exercita o lugar de oficial arquivista da assem­bléia provincial, traslado para mais esclarecimento os trechos que seguem:

"José Teodósio só pode ser comparado, por sua malvadez, com Pedro espanhol, célebre assassino dessa corte. Cometeu muitos rou­bos e assassinatos no Recife e nos arrablades".

"Cabeleira foi preso no canavial do Engenho Novo de Pau-d'Alho, pelo capitão-mor, Cristóvão de Holanda Cavalcantí. O dito engenho pertencia naquele tempo a Goiana".

"Cabeleira era natural de Glória de Goitá, que fazia parte de Santo Antão".

"Tocava viola com muito gosto, e a esta circunstância ia devendo ser solto, a pedido da mulher do capitão-mor, a qual, tendo ouvido o preso tocar, ficara com pena dele. Esta pena aumentou quando o Cabeleira lhe rogou com voz cândida, segundo me diz o meu informante, pessoa acima de toda exceção, e ainda parente daquele capitão-mor, que mandasse afrouxar-lhe as cordas. Foi atendida a súplica, e então aproveitou-se ele da ocasião para mostrar a sua grande habilidade de tocar o Instrumento".

"Foi enforcado em Cinco Pontas, precedendo na mesma oca­sião o filho ao pai".

"Contam que dirigiu algumas palavras ao público".

"Chamava-se José Gomes."



Não é de data moderna o sentimento pernambucano em desa­bono dos padres jesuítas que ainda ultimamente foram manda­dos sair de Pernambuco por ato do governo provincial com apro­vação do governo-geral.

Já em 1773 a vila se iluminara para solenizar a extinção dessa companhia. Assim a manifestação de regozijo, com que a capital de Pernambuco solenizou em 1873 o centenário da promulgação do breve Dominus ac redemptor, não foi outra coisa que a re­petição do que um século antes havia praticado o Recife.

Eis aqui os termos do bando mandado publicar pelo governa­dor de Pernambuco:

"Para demonstração da alegria que causou a toda a nação por­tuguesa a proscrição e abolição da ordem chamada da Companhia de Jesus, em todo o orbe cristão, pelo santo padre hoje reinante na igreja de Deus, de que resulta a quietação pública dos fiéis vassalos de sua majestade fidelíssima, a quem perturbaram aqueles regulares, que se constituíram Inimigos do Estado; ordeno a V. M.cês que para o dia de sexta-feira, sábado e domingo da presente semana, mandem publicar, com a maior solenidade que lhes for possível, luminárias nesta vila, com a pena que lhes parecer aos moradores que faltarem a este devido efeito.

Deus guarde a V. M.cês — Palácio do governo, 19 de dezembro de 1773. — Manuel da Cunha de Meneses. — Srs. oficiais da câmara da vila do Recife."



Freqüentes vezes usei das palavras seu e sinhá antepostas aos nomes próprios. São contrações dos vocábulos senhor e senhora, que em outras partes são representados pelas contrações sô e só. Quem conhece os costumes populares do norte, sabe que não in­vento.



Chama-se no norte jerimum ao que se chama aqui abóbora, e macaxeira ao que se chama aipim.



Arroz-doce é o arroz cozido com açúcar e leite de coco, e que as quitandeiras mercam em xícaras. É iguaria aprazível.



Pela expressão "pé-rapado", designam os matutos o sujeito pobre, o que não tem nada de seu.



Cangaço é voz sertaneja. Quer dizer o complexo das armas que costumam trazer os malfeitores. O assassino foi à feira debaixo do seu cangaço — dizem os habitantes do sertão.



Quinguinqu parece-me voz africana. É só usada nos engenhos, para designar o trabalho extraordinário feito, uma vez por outra, antes ou depois do serviço diário do campo pelos negros. Por isso efetua-se antes de o sol cair, ou depois de ter-se recolhido.



Dos beijus e tapiocas eu não poderia dar mais exata noticia do que se lê no Roteiro do Brasil, de Gabriel Soares, impresso no tomo XIV da Revista do Instituto Histórico. Diz o Roteiro:

"Fazem mais desta massa (a da mandioca), depois de espremi­da, uns filhós, a que chamam beijus, estendendo-a no alguidar sobre o fogo, de maneira que ficam tão delgados, como filhós mou­riscos, que se fazem de massa de trigo, mas ficam tão iguais como obreias, as quais se cozem neste alguidar até que ficam muito secas e torradas. Fazem mais desta mesma massa tapiocas, as quais são grossas como filhós de polme e moles, e fazem-se no mesmo alguidar como os beijus; e querem-se comidas quentes, com leite (de coco) tem muita graça; e com açúcar clarificado."

Catinga, mato enfezado e bravo, acha-se definido com toda a precisão por Gonçalves Dias, em seu Dicionário da Lingua Tupi; e é voz muito usada em todo o interior do Norte do Brasil.



Pela voz coivara designam os matutos uma figueira de grandes proporções. Encoivarar o roçado quer dizer entre eles requeimar os paus mais grossos que resistiram ao fogo da primeira queima. No texto escrevi encoivarava terra. Esta expressão não é pró­pria, e eu a empreguei no sentido translato, tomando terras pela extensão roçada ou desbravada.



Tirar uma abelha quer dizer cortar a árvore em cuja cavidade as abelhas se estabeleceram a colher o seu mel. Os habitantes do interior não empregam outra expressão para significarem esta operação.



Capuaba é casa de gente pobre, choupana desprezível.



Pela palavra cabra que freqüentes vezes pus na boca das figu­ras populares da história, não quis exprimir as mais delas o filho ou filha de mãe negra e pai mulato, ou de mãe mulata e pai negro; mas um sentido especial e muito outro deste. Cabra é também ali voz sinônima de homem, ou talvez mais particularmente de homem forte, sujeito destemido e petulante. F. é cabra danado é frase muito usada do vulgo.

Foi neste sentido que as mais das vezes me servi deste termo.



Usam-se no Norte frases muito expressivas, e que lhe são pe­culiares. Pertencem a este número as seguintes: Mostrar com, ou de quantos paus se faz jangada, quer dizer — mostrar para quan­to presta, ou o seu valor, o seu poder; fazer o bonito em poucas horas, ou em poucos momentos; concluir o negócio, ou a empresa com próspero sucesso, ou do melhor modo possível, triunfar com grande brilho; lamber o inimigo, ou valentão, fazê-lo desaparecer, vencê-lo, aniquilá-lo sem dificuldade.

O Norte é riquíssimo de expressões e frases semelhantes.



Na página 95 referi-me, por anacronismo, ao Viveiro do Muniz, o qual data de 1787, e foi formado, segundo diz Gama, do vão deixado pela terra que se tirou para reparar o Aterro dos Afogados, por ordem do governador D. Tomás José de Melo, sucessor de José César.



D. João da Purificação Marques Perdigão foi um bispo de pou­cas letras, mas de boas partes naturais.

Quando mais não fizesse, bastara a pacificação dos cabanos que a ele se deve, para ser sua memória estimada e respeitada na província.

Tratando da Guerra dos Cabanas, expressa-se o General Abreu e Lima em sua Sinopsis nestes termos:

"Depois de uma luta de perto de quatro anos, pôde o Major Joaquim José Luís de Sousa amainar as iras daquela gente; e ser­vindo-se da intervenção pastoral do reverendo bispo de Pernambu­co, chamar ao grêmio da igreja e da sociedade, em novembro de 1835, aqueles homens quase selvagens, conseguindo pelo poder e auxílio da persuasão o que não tinha podido alcançar pelo poder da força."



É de todo o ponto justo e procedente o juízo que expressei no último capitulo desta história a respeito de Maurício de Nassau, a ninguém segundo no gênio criador, no grande senso administra­tivo, e no amor da justiça e liberdade regrada.

"Durante este ano (1637) — diz José de Vasconcelos nas suas Datas Célebres — consolidou-se o domínio holandês no Brasil, em virtude das sábias medidas tomadas pelo conde de Nassau."

Vasconcelos dá em substância essas medidas, nas páginas 180 e 181 da sua obra, e não só por elas, mas pelo muito que dessa data em diante pôs em prática em todos os ramos do público serviço, vê-se que Maurício de Nassau tomara de siso o papel de administrador, e era o homem fadado para governar esse povo já então grande.

Quando em Pernambuco se achar de todo feita a luz para que estão trabalhando, entre outros, José de Vasconcelos, com seus es­tudos históricos, e o Dr. Jose Higino Duarte Pereira com a tradução de obras holandesas do merecimento do Diário de Mateus van den Broeck, e da História da Companhia das Índias que já a ele se de­vem, ficará então bem evidente a obrigação de honra que tem Per­nambuco de estimar e acatar a memória dos holandeses que muito fizeram pelo seu bem e progresso assim material como moral.

Em 6 de maio de 1644, isto é, e sete anos depois de ter aporta­do na plaga pernambucana, fez Maurício entrega do governo ao Su­premo Conselho do Recife; e a 11 dirigiu-se por terra à Paraíba a fim de embarcar para Holanda.

"Parece — diz Vasconcelos — que antes de deixar o país que engrandecera com sua sábia administração, quis ver aquela parte que ainda não conhecia.

Sai de seu palácio, em Mauricéia, a cavalo e seguido de um cortejo numerosíssimo; e atravessando o Recife vai pelo istmo até Olinda, donde pelo longo da costa seguem até Itamaracá, e de lá até a Paraíba.

Por toda parte por onde passava, recebia inequívocos teste­munhos de reconhecimento, e vivo pesar que causava a sua par­tida, de sorte que esta viagem lhe foi uma verdadeira marcha triun­fal.

De todos os pontos os moradores corriam a seu encontro para lhe dizer o último adeus. Suas exclamações eram acompanhadas dos sons dos instrumentos que tocavam o hino holandês Wilhemus­-van-Nassauven, enquanto os canhões dos fortes lhe enviavam de longe as derradeiras saudações militares.

O índio Jandovi, cacique dos tapuias, e aliado dos holandeses, enviou uma deputação na qual vinham todos os filhos seus, para ro­gar ao príncipe que, se ainda fosse possível, espaçasse a. sua partida.

Muitos negociantes considerados, e outros habitantes do pais embarcaram-se com ele por considerarem a colônia perdida com a ausência dele."

Muito tinha eu ainda que dizer sobre passagens desta história que só poderão ser bem entendidas com certos esclarecimentos e observações que, por assim dizer, as completam; mas esta carta já vai demasiado longa, e é preciso encurtar leitura. Espero ter muito breve ocasião de conversar novamente contigo, ouvindo-nos o público, e então serão supridas algumas faltas que ficam aqui por preencher.

Antes porém de pôr o ponto final, devo pedir-te desculpa, meu amigo, dos erros de que está inçado este livro. A culpa não é da tipografia, onde sempre fui tratado com a melhor vontade; pou­cos lhe pertencem; a culpa principal é minha, por não dispor do tempo e da atenção que demanda a revisão de trabalhos da natu­reza deste.

A mor parte das provas eu as corrigi a lápis, no bonde, de via­gem, às pressas. Isto não é fantasia; é a verdade.

. . . . . . . . . . . . . uma tarde na pag. 263; o sol despertou o bandido e não o sol acordou o bandido, na pag. 270; viram-se desfilar, em lugar de viu-se desfilar na pag. 297.

Fico concluindo — O Matuto —, segundo livro desta serie.

Provavelmente só o receberás em março ou abril proximo futuro.

 
Teu

FRANKLIN TÁVORA


 

Rio, setembro de 1876.