XVI
A fome obrigára o bandido a deixar o mato,
como obriga as aves a emigrarem, e as féras
cervaes a deixarem seus covis.
Havia cinco dias que elle partira de Santo-Antão, e tres que não comia sinão os escassos fructos que lhe dava a macahybeira, o ananazeiro bravo, o jatobá do deserto.
Uma tarde em que a fome e a fadiga o tinham prostrado, viu d’entre umas touceiras de taquára onde se recolhêra para cobrar animo, um cavalleiro que, havendo atravessado o rio, de força tinha de passar a poucos passos delle, em um cotovello formado pela picada.
O cavalleiro era um velho e parecia-se mais com uma mumia do que com um ente vivo.
Tinha a pelle grudada nos ossos, e seu corpo apresentava angulos e rectas de dureza esculptural.
O cavallo não tinha melhor parecer do que seu senhor. Era uma armação ossea, informe, pesada, cadaverica e triste.
Trazia o velho tão cahida a cabeça para diante, que quasi chegava com o queixo recurvado ao cabeçote da cangalha. O cavallo, parecendo ceder à mesma lei que o cavalleiro, por vezes varria com os beiços coriaceos o pó do caminho. Essa lei era a lei da fome.
« Este velho, pensou o Cabelleira, traz pelo menos farinha nos caçuaes. Vou tomar-lh’a para mim, e si elle não quizer entregar-me a sua carga, corto-lhe a garganta. »
Empunhou o pedaço da faca, unica arma que lhe restava do terrivel cangaço de outr’ora, e quando o velho confrontou com elle, saltou-lhe ao cabresto do cavallo. Este parou de muito boa vontade, emquanto seu dono, sem se mostrar aterrado nem sobresaltado, disse ao bandido:
— Guarde-o Deus, meu senhor, — saudação que até bem pouco tempo se ouvia no sertão.
Quando estava para fazer a terrivel intimação, sentiu o Cabelleira faltar-lhe força para suster o cabresto, tremeram-lhe as pernas, vacillaram-lhe os pés. Seus olhos tinham dado com a imagem de Luiza, de joelhos na beira do caminho com as mãos postas, os olhos supplicantes, tristes, e chorosos, voltados para elle. Pareceu-lhe até ouvir as seguintes palavras:
— Não o mates, Cabelleira.
Esta illusão era effeito da sobreexcitação nervosa, produzida em todo o seu organismo pela falta de alimentos, pela dôr moral que lhe causára o transito da moça, ou talvez pela profunda revolução que antes de ter ella fallecido havia obrado nos seus instinctos, idéas, e habitos, o sentimento destinado a redimil-o do erro, e do crime — o amor.
Foi tão profundo e violento o abalo que experimentou ao ver aquella doce effigie (a qual elle julgava ter desapparecido para sempre de seus olhos), que irresistivelmente lhe escaparam dos labios estas palavras:
— Não o matarei, meu amor; não o matarei.
Mas não foram sómente as palavras que lhe escaparam violentamente dos labios; dos olhos lhe saltaram tambem lagrimas espontaneas, que elle não pôde reprimir.
E como para dar plena satisfação áquella doce imagem que se atravessava diante delle no momento em que um crime estava a ser commettido por sua mão, Cabelleira atirou dentro de uma grota que ficava do outro lado da picada o resto da arma de que estivera pendente a vida do pobre velho.
Este, acordando novamente do profundo abatimento que pesava sobre todos seus membros, dirigiu outra vez a palavra ao bandido:
— Camarada, estou prompto para servil-o.
— Ha tres dias que não boto na minha bocca um punhado de farinha, disse José. Traz vossê ahi alguma cousa que me queira dar para comer?
— É seguramente meio dia, meu senhor, disse o velho erguendo a custo os olhos ao sol para se certificar da hora; amanhã pela manhã fazem quatro dias que este corpo velho, que o senhor está vendo, não sabe o que é comer. Dou a Deus por testemunha da minha verdade.
— E que é que traz dentro destes caçuás? perguntou-lhe o Cabelleira.
— Póde vero que trago. Nada. Tinha uma filha solteira, outra viuva e tres netinhos. Veiu a peste e levou-me as duas filhas em menos de oito dias. Não tendo recurso nenhum para acudir ás minhas necessidades, sahi a pedir. Fui á casa de meu compadre, que mora na Ladeira-grande; o compadre tinha morrido das bexigas, e a mulher estava para entregar a alma a Deus; o gadinho que possuia desapparecêra com a secca; alguma criação que ficára no terreiro, tinha sido comida pelos magotes de gente, que vem ahi em retirada, cahindo aqui, morrendo acolá de fome, só de fome. Achei no pateo da propriedade este cavallo velho, que me vai arrastando até á casa. Sabe Deus si lá chegarei, ou si não ficarei no caminho, sem ter visto meus pobres netos ainda uma vez antes de morrer
— Está bom, meu velho; vá seguindo seu caminho. Vossê é mais necessitado do que eu.
— Não da graça de Deus, senhor, disse o velho.
O Cabelleira entrou de novo no tabocal.
O abalo que a visão lhe causára, o espectaculo de miseria que lhe descrevêra o velho, miseria muito maior do que a sua, deram-lhe forças para proseguir na peregrinação.
No dia seguinte entrava elle nas matas de Goitá, seu mundo virgem, em cujo seio, talvez pela razão de lhe consagrar entranhavel affecto, se considerava o mais seguro e feliz dos mortaes.
Deitou-se e dormiu.
Quando acordou sentiu que comsigo havia acordado, mais devoradora e cruel, a fome que o tinha prostrado por terra na vespera.
Depois de ter levado quasi todo o dia em vão á caça de algum fructo sylvestre, deu com a vista, no meio de uma aberta que fazia a mata, sobre os estendidos cannaviaes do Engenho-novo.
Da lomba, onde havia parado, desceu rapidamente á orla da floresta.
Era quasi noite.
Alongou os olhos pelas immensas quebradas onde a canna acamava, e só viu um mundo de verdura que lhe acenava com doces presentes.
Ah! elle podia passar mezes dentro desse mundo sem que o vissem, e sem risco de ser devorado por animaes ferozes. Era uma região amiga a que se lhe abria diante dos olhos.
A planta que estava destinada a ser mais tarde a base principal da fortuna e riqueza de um vasto imperio; essa planta abençoada que dalli punha á sua disposição nutritivo e precioso succo offerecia-lhe tambem protecção á sombra da sua basta folhagem. Podia elle, pobre foragido, refazer as forças no seio dessa solidão generosa que lhe daria a sorver licor suavissimo, como o que mana de um seio maternal.
Cabelleira, rapido como um jaguar, pôz a cabeça de fóra do mato, olhou, observou, e, nada vendo, atravessou o asseiro e penetrou no cannavial.
Achando-se já dentro, voltou-se e observou de novo. Não viu viva alma. Do outro lado do asseiro estava a floresta virgem, d’onde elle havia sahido. As sombras do lusco-fusco cobriam as montanhas, as quebradas, os valles, todo o retiro emfim. Em torno delle, e além das folhagens, além das planuras até onde pôde chegar com a vista e com as ouças, só viu a solidão profunda, só ouviu o silencio absoluto da natureza.
Ia adiantada a noite quando elle terminou sua refeição.
A lua discorria suavemente, entre castellos de nuvens, na vasta campina celeste, e a viração ciciava brandamente no cannavial onde deixava as fragrancias que, como abelha da noite, trazia do páo-d’-arco da mata proxima em suas azas subtis.
Cabelleira pôz nos hombros as ultimas das cannas que quebrára e tomou a aberta por onde havia entrado. Mas foi logo obrigado a voltar sobre seus passos para não ser visto por dous negros do engenho que estavam defronte da abertura da camarinha.
O cannavial não tinha sómente esta sahida. Mas qualquer dellas para onde encaminhou seus passos se lhe mostrou tomada por escravos do engenho.
O Cabelleira achava-se tão longe de pensar que o guardavam, que acreditou, para explicar o que seus olhos descobriram, que os negros faziam quinguingú ao luar como de costume.
Deitou-se, e o somno que dormiu foi profundo e reparador. Si tivessem penetrado no lugar onde elle adormecêra tel-o-hiam prendido sem difficuldade, como si fôra uma criança.
Raiou emfim o dia com seu cortejo de luz e movimento.
O sol acordou o bandido com um raio que lhe enviou por entre a folhagem. Não para sahir, mas unicamente para observar, o Cabelleira aproximou-se, sem fazer ruido, da primeira abertura que se lhe offerecêra. O que então viu deu-lhe idéa da triste realidade que elle estava longe de suspeitar, mas que o abraçava como um circulo de ferro. Não estavam guardadas as sahidas por negros como durante a noite, mas por sentinellas militares. Cêdo seus olhos reconheceram que uma linha compacta de soldados cercava todo o cannavial, d’onde não poderia sahir um rato contra a vontade delles. [1]
Oh! como appareceu carregada aos olhos do infeliz mancebo aquella doce natureza, onde acreditára que poderia estar ao abrigo da perseguição dos homens, e da fatalidade da sorte!
— Estou perdido para sempre, pensou elle. Cercado por todos os lados, sem companheiros que me auxiliem na evasão, sem uma arma com que possa abrir passagem entre os que me cercam, não poderei salvar-me.
Seu espirito cahiu em profunda meditação.
O cannavial estava litteralmente sitiado. No mesmo instante em que soube, por bocca de Marcolino, que o Cabeleira tinha passado do mato ao cannavial, o senhor do Engenho-novo reunira a fabrica passante de trezentos negros e os mandára pôr-se de guarda ao bandido.
Sem perda de tempo expedira o proprio Marcolino com uma carta participando o facto ao capitão-mór que se achava já então no seu engenho Petribú, e pedindo-lhe promptas providencias.
Uma companhia completa de milicianos achava-se ainda de ordens ao capitão-mór que tinha em mente dar novo varejo nos matos, por occasião de sua volta a Goyanna. Essa companhia partira incontinente, tendo á sua frente Christovam de Hollanda, para o lugar onde se tinha de verificar a importante diligencia. Ordens terminantes foram expedidas durante a noite aos coroneis de ordenanças que se achavam mais proximos, a fim de que, antes do amanhecer, se achassem com fortes partidas no lugar indicado.
Um inimigo poderoso que houvesse batido ás portas da freguezia, não teria motivado o movimento de tropas que se verificára nas doze horas daquella noite com promptidão que faz honra á disciplina militar daquelles tempos.
Pela manhã as paragens contiguas ao ponto assediado, figuravam um pequeno campo de batalha. Cêrca de duzentas praças achavam-se alli reunidas, porque o assedio fosse sustentado com todo o rigor militar.
Ao cahir da tarde um official offereceu-se para penetrar no cannavial com doze homens de sua escolha, assegurando que o bandido não viria a contar victoria.
Christovam de Hollanda, tendo ouvido os seus coroneis sobre a proposta do destemido official, considerou-a inconveniente por dar occasião á luta pessoal, da qual poderia resultar a morte do bandido.
Não havendo, para conseguir-se a rendição deste, outro meio que o assedio, foi este resolvido por unanimidade.
O Cabelleira tentou mais de uma vez illudir a vigilancia das guardas durante a noite, mas em vão. Antes de escurecer essas guardas eram reforçadas, e a vigilancia dobrava na proporção das facilidades que naturalmente a noite offerece para a evasão.
Passaram-se dous dias sem resultado. Ninguem, durante esse espaço de tempo, havia visto o prisioneiro. Começou-se a desconfiar de sua existencia dentro do cannavial.
Marcolino foi interrogado pela segunda vez, e declarou que tinha visto o bandido entrar alli, só e sem armas.
Esta ultima declaração veiu augmentar a desconfiança geral. Não se pôde, com razão, explicar que o famoso assassino se houvesse despojado, para penetrar alli, de suas armas no momento em que mais se expunha á acção da justiça.
Marcolino, á vista destas considerações, às quaes nada teve que oppôr, começou a descrêr de si mesmo e a acreditar que seus olhos o tinham enganado. O desanimo, a tristeza, a vergonha, que já o haviam deixado, volveram a abatel-o novamente.
Christovam de Hollanda excogitava já um meio de sahir com honra da situação em que se via, quando lhe lembrou mandar arrasar o cannavial.
Toda a fabrica foi chamada em continente ao lugar onde as foices afiadas tinham de abater em poucas horas a ridente floresta que durante quasi tres dias servira de pittoresca muralha ao Cabelleira.
Elle ouviu do centro da espessura onde estava, com o sangue frio, que é natural aos homens affeitos aos perigos, o rumor, ao principio afastado, depois mais proximo, da queda dessas touceiras abençoadas a que devia o franco asylo que nunca encontrára entre os seus semelhantes.
O circulo foi-se estreitando gradualmente em torno do prisioneiro, com a rapidez de um incendio que ao mesmo tempo avança da circumferencia ao centro.
Á proporção que as camadas iam cahindo aos golpes dos possantes segadores, eram logo retiradas a fim de que se tivesse sempre desobstruida a passagem, e facil fosse o accesso ao ponto objectivo.
As linhas militares, que mantinham o assedio, acompanhando o decrescimento do espaço que desapparecia aos olhos dos circumstantes, tornavam-se gradualmente compactas, fortes, impossiveis de romper.
Ao principio acreditou-se, não obstante o que dissera o Marcolino, que o Cabelleira não estava desacompanhado.
A cada momento esperava-se ouvir a detonação de uma descarga de dentro contra a força que cercava o ponto. Quem não se considerou exposto ao punhal, á bala, á morte, julgando ter atravez de frageis plantas, um inimigo, si não uma companhia de inimigos amestrados na pratica de todos os crimes?
Chegou emfim o momento dos negros descarregarem suas cortantes foices sobre o ultimo rénque de touças — aquelle que separava do campo arrazado a vasta camarinha em que se acoutára o bandido.
Desappareceu de todo o verde tufo aos olhos dos circumstantes; as duas superficies — a exterior e a interior — uniram-se como por encanto; o Cabelleira surgiu d’entre as folhas com que pouco antes brincava a brisa, agora confundidas com as palhas seccas, imagem, como aquellas, do seu perdido poder.
Serena e resignada tristeza cobria-lhe o rosto queimado pelo mesmo sol que naquelle momento lhe beijava a face onde haviam deixado indícios das suas garras a dor moral e a fome. Cahia-lhe sobre os hombros a basta onda de cabellos, cacheados ao longe, e mais negros do que a barba escassa e nova que attestava a sua pouca idade. Seu trajo era simples: véstia de couro surrado, camisa e calça que deixavam ver, atravez dos rasgões, o corpo de côr branca. O Cabelleira estava descalço, e tinha a cabeça coberta por um chapéu de palha de pindoba.
Quando se achou de subito em presença da multidão, levou instinctivamente a mão ao chapéu, e descobriu-se.
Os mais animosos que haviam corrido a pôr-lhe as mãos para segural-o, tomando o gesto respeitoso que bem denotava o bom natural do bandido, por uma ameaça, ou meneio de aggressão, recuaram amedrontados.
Christovam de Hollanda Cavalcanti, sustentando os foros de uma estirpe que já se havia ilustrado em 1710, e que no Brazil independente estava destinada a figurar com o brilho, que sabemos, aproximou-se do bandido e com o ar e geito grave que lhe davam a nobreza e a autoridade que revestia:
— É vossê o Cabelleira? perguntou elle ao mancebo.
— Saberá v. s. que sou eu José Gomes, respondeu elle sem hesitar nem subterfugir
Uma centena de vozes confirmou esta resposta franca, completa, e propria do seu grande animo.
— José Gomes, disse-lhe Christovam pondo a mão direita no hombro do mancebo, vossê pelos enormes crimes que tem commettido, está preso em nome da lei, e vai responder perante a junta-de-justiça.
Então, em conformidade da ordem dada por elle, um toque de corneta, que atroou a solidão, annunciou que o criminoso tinha cahido nas mãos dos agentes da força publica.
— Gonçalo Paes, disse Christovam voltando-se para o seu ajudante, mande soltar o matuto, que denunciou o criminoso. Si este não fosse encontrado dentro do cêrco, o denunciante pagaria com tres tratos de polé a humilhação á que me houvesse exposto perante o governador. Como se verificou a sua declaração, será recompensado pelo regio erario, e recommendado á munificencia d’el-rei nosso senhor.
Meia hora depois, Marcolino montado em fogoso cavallo baio, desappareceu, com ar e geito de quem alcançou grande victoria, no caminho de Santo-Antão, a levar a noticia de uma prisão que salvára a sua honra, e com que elle se considerava coberto de gloria.
Notas do autor
editar- ↑
A trova popular diz:
Meu pai me chamou:
— Zé Gomes, vem cá;
Como tens passado
No cannavial?»— Mortinho de fome,
Sequinho de sêde,
Só me sustentava.
Em canninhas verdes.
« — Vem cá, José Gomes,
Anda me contar
Como te prenderam
No cannavial.
— Eu me vi cercado
De cabos, tenentes,
Cada pé de canna
« Era um pé de gente. »