Os últimos acontecimentos vieram perturbar de todo a vida dos dois rapazes.

Coruja tinha de guardar um pouco mais a companhia de Teobaldo, cuja inquietação de espírito lhe trazia agora sérios receios.

Cobertos ambos de luto, pareciam eternamente fechados a qualquer consolação mundana; Teobaldo caíra em uma espécie de abatimento moral, de cujo estado não conseguiam arrancá-lo as palavras do companheiro.

É preciso que também não te deixe levar assim pelo desgosto, dizia-lhe este, procurando meter-lhe ânimo. — A vida não se compõe só de coisas agradáveis! Concordo em que não estejas habituado a certas provações e que por isso as sintas mais do que qualquer; mas, valha-me Deus! um homem deve antes de tudo ser um homem!

— Do que me serve a vida?... respondia o outro; do que me serve a vida, se já não tenho as pessoas que mais me amaram?...

— E então eu?! reclamava André. — Eu não estou ainda a teu lado?... É uma injustiça o que acabas de dizer!...

— Tens razão, é uma injustiça não pensar em ti; mas imagina que será de mim agora, sem recurso e sem o hábito de trabalhar?...

— Ora! Deixa-te disso! não pareces um rapaz de 20 anos... Que diabo! com o teu talento e com os teus recursos só quem de todo não quer subir!... Tens um enorme futuro diante de ti.

— Ah! Falas assim porque te coube em sorte a inestimável ventura de dar no mundo os teus primeiros passos pelo teu próprio pé e não tiveste, como eu, de entrar na vida carregado ao colo de meus pais! Ah! o trabalho é a alegria e a consolação dos filhos da pobreza, mas é também o castigo e o suplício dos que nasceram ricos e mais tarde se acham no estado em que me vejo!...

— Teobaldo! Essas idéias são indignas de ti!

— Não! Tudo que eu dissesse ao contrário disto, seria hipocrisia!

— É porque estão ainda muito abertos os dois tremendos golpes que acabas de receber tão em seguida um do outro; tenho plena certeza de que em breve a tua coragem se erguerá mais altiva e mais forte do que nunca e que, à força de talento, conseguirás uma invejável posição. Enquanto assim não suceder, cá estou eu ao teu lado para amparar-te; e com isto, não tens que te envergonhar, porque nada mais faço do que seguir os exemplos aprendidos em casa de teus pais, quando me socorreram. Eu te pertenço, meu amigo!

Teobaldo, sinceramente comovido, agradeceu aquela dedicação e prometeu que se faria digno dela.

Mas pelo espaço de um ano quase inteiro a sua mágoa absorvia-lhe todos os instantes, não lhe deixando tempo nem forças para coisa alguma. Descuidou-se de obter os meios de ganhar a vida e, depois de comido o último dinheiro, teve de lançar mão de algumas jóias das que foram de sua mãe, para vender.

Agora, com o correr do tempo por cima da sua desgraça, vinham-lhe já, de quando em quando, alguns rebotes de energia; então falava em trabalhar muito, fazer-se independente e forte por meio do próprio esforço. E neste delírio de boas intenções, lembrava-se de tudo conjuntamente e sonhava com o comércio, com as indústrias, com as artes e com a literatura.

Qual não foi, porém, a sua decepção, quando, levando trabalho a um jornal, ouvia essas palavras daqueles mesmos que dantes o elogiavam:

— Homem! deixe ficar isso... Havemos de ver, mas o senhor bem sabe que o público vai e tornando exigente: é preciso dar-lhe coisas boas!

Teobaldo compreendeu então o alcance de certas palavras de seu pai: "Esconde o mais que puderes a tua necessidade; ela só por si é o pior estorvo que se pede levantar defronte de ti, quando precisares de dinheiro..."

E com efeito: dantes, Teobaldo mal apresentava algum trabalho nas redações, só ouvia em torno de si elogios e palavras de entusiasmo. É que sabiam perfeitamente que ele não precisava ganhar a vida; agora era um necessitado como qualquer e então viravam-lhe as costas, porque a necessidade é sempre ridícula e importuna.

O mesmo justamente lhe sucedera com os teatros. Dantes, quando Teobaldo frequentava a caixa dos teatros nas horas de ensaio, pagando champanha aos artistas e levando-os depois do espetáculo a cear nos melhores hotéis; dantes, quando ele os presenteava nos benefícios e lhes emprestava dinheiro, muita vez perguntaram-lhe os empresários por que razão, dispondo de tanto talento e de tanto espírito, não escrevia ele alguma coisa para ser levada à cena. Havia por força de fazer sucesso!... Teobaldo que experimentasse!

E agora, quando a necessidade lhe invadira a casa, o rapaz, lembrando-se de tão repetidas solicitações feitas ao seu talento, tornou de um romance inglês e extraiu daí um drama que, se não era um primor de arte, estava ao menos no gosto do público e podia dar lucro, aqueles mesmos empresários o receberam com frieza, dizendo-lhe secamente que deixasse ficar o trabalho e aparecesse depois. E, mais tarde, talvez sem terem lido a obra, acrescentaram-lhe com meias palavras e dando-lhe o pretensioso tratamento de "filho" que ele fosse cuidar de outro ofício e perdesse as esperanças de arranjar alguma coisa por aquele modo.

Com o seu gênio altivo, com a educação que tivera, Teobaldo não podia insistir em tais pretensões. Era bastante perceber um gesto de má vontade ou de pouco caso para lhe subir o sangue às faces, e muito fazia já conseguindo reprimir a cólera que se assanhava dentro dele, sôfrega por escapar em frases violentas.

Depois dessas lutas e dessas tentativas estéreis, voltava para casa desanimado e furioso contra tudo e contra todos, encerrando-se no quarto e fechando-se por dentro para chorar à vontade.

Vinha-lhe então quase sempre a idéia do suicídio, mas não vinha com ela a resolução, e o desgraçado continuava a viver.

Todavia o tempo ia-se passando e o círculo das necessidades apertava-se cada vez mais.

Coruja era agora o único sustentáculo da casa, era quem pagava o aluguel, a pensão de comida para Teobaldo que ele continuava a almoçar e jantar no colégio, era quem lhe pagava a lavadeira, e quem lhe fornecia dinheiro.

Mas tudo isso era feito com tamanha delicadeza, com tanto amor, que Teobaldo, quando lhe aparecia qualquer revolta do caráter, ficava mais envergonhado de seu orgulho do que com receber aqueles obséquios.

E nunca o André andou tão satisfeito, tão alegre de sua vida; dir-se-ia que ele, praticando aqueles sacrifícios, alcançava enfim a realização dos seus melhores sonhos.

Era comum vê-lo chegar a casa com uma caixa de charutos debaixo do braço e depô-la ao lado do amigo, dizendo quase envergonhado:

— Olha! como estavam a acabar estes charutos e sei que são dos que mais gostas, trouxe-os, porque depois quando fosses procurá-los, já não os encontrarias a venda.

E tinha sempre uma desculpa a apresentar, uma razão para disfarçar os seus benefícios. Teobaldo quis privar-se do vinho à mesa; Coruja, que aliás não bebia nunca, opôs-se-lhe fortemente.

— Não! disse ele — Estás muito acostumado com o vinho à comida e, por uma miserável economia de alguns tostões, não vale a pena fazeres um sacrifício!

A maior dificuldade era, porém, quando precisava passar-lhe dinheiro, sem lhe ferir, nem de leve, o amor próprio. A princípio tinha para isso uma boa desculpa — os quinhentos mil réis; mas esta quantia não podia durar eternamente e, já por último, dizia o Coruja:

— Sabes? quando eu tinha em meu poder aquele teu dinheiro, servi-me de tanto e esqueci-me de repor o que tirei; por conseguinte, se precisares agora receber algum por conta, eu posso pagar.

Um dia ele apareceu em casa com um grande rolo de papéis, e disse ao companheiro que o diretor do colégio o havia encarregado de organizar uma seleta muito especial, destinada ao estudo da sintaxe portuguesa.

— A coisa não é má... acrescentou o Coruja, abaixando a voz, como quem conspira. — Eles pagam 300$ pelo trabalho...

— Bom, fez Teobaldo.

— Eu estive a recusar, porque me falta talento; lembrei-me, porém, de que tu, se quisesses.. . podias encarregar-te disso... A coisa é maçante, é, mas enfim... sempre é um achego... Além de que, eu te posso ajudar, sim, quer dizer que...

— Ah! Para ajudar não te falta talento! Hipócrita! respondeu Teobaldo abraçando-o.

— E se precisares durante a obra de algum dinheiro adiantado... É do contrato! Sabes!



Esta situação tinha para o Coruja apenas um ponto de desgosto e vinha a ser este, o seguinte: desde que D. Margarida lhe falou em casamento com a filha, André resolveu ir fazendo as suas economias para poder em breve realizá-lo; mas, com o amigo na difícil posição em que se achava, não lhe era permitido por de parte um só vintém, e o projeto ia ficando adiado para mais tarde.

E D. Margarida a perguntar-lhe como iam os negócios dele e a pedir-lhe com insistência que marcasse o dia das núpcias. Ora o Coruja, que era tão incapaz de mentir, quanto era incapaz de confessar o verdadeiro motivo da sua demora, via-se deveras atrapalhado e desculpava-se como melhor podia.

Entretanto, D. Inezinha concluíra afinal os estudos, fizera exame e estava preparada para reger uma cadeira de primeiras letras.

A mãe resplandecia com isso.

— Assim desembuchasse por uma vez aquele demônio do Coruja!... exclamava ela às amigas, quando lhe falavam na filha.

E tão impaciente se fez com as reservas e meias palavras do futuro genro, que afinal disparatou e disse-lhe às claras:

— Homem? você se não tenciona casar com a pequena, é melhor dizer logo, porque não faltará quem a queira! Estas coisas, meu caro, quando não são ditas e feitas, servem apenas para atrapalhar o capítulo!

— Oh, minha senhora, respondeu André, se eu não tivesse a intenção de casar com sua filha, há muito tempo que já o teria declarado!..

— Pois então!?...

— Mas é que ainda não me é possível! Estas coisas não se realizam só com o desejo!

— Ora! Com boa vontade tudo se faz!

— Nem tudo; entretanto, se a senhora entende que sua filha não pode esperar por mim, é casá-la com outro; não serei eu quem a isso se oponha!... Estimo-a muito, desejo fazer dela a minha esposa, mas não quero de forma alguma prejudicar-lhe o futuro. Se há mais quem a deseje, e se ela acha que deve aproveitar a ocasião, aproveite; porque eu me darei por muito feliz em vê-la satisfeita e contente de sua vida!

— O senhor diz isso porque sabe que ela está disposta a esperar.

— Tanto melhor, porque nesse caso realizarei o que desejo.

— Mas, se o seu desejo é casar com ela, case-se logo por uma vez! Tanto vive o pobre como vive o rico!

E por este caminho a impertinência de D. Margarida foi subindo a tal ponto, que o Coruja, para tranquilizá-la um pouco, deixou escapar um segredo que a ninguém tinha ainda revelado. Era a idéia de montar um colégio seu, perfeitamente seu, feito como ele entendia uma casa de educação; um colégio sem castigos corporais, sem terrores; um colégio enfim talhado por sua alma compassiva e casta; um colégio, onde as crianças bebessem instrução com a mesma voluptuosidade e com o mesmo gosto com que em pequeninas bebiam o leite materno.

Sem ser um espírito reformador, o Coruja sentiu, logo que tomou conta de seus discípulos, a necessidade urgente de substituir os velhos processos adotados no ensino primário do Brasil por um sistema todo baseado em observações psicológicas e que tratasse principalmente da educação moral das crianças; sistema como o entendeu Pestallozzi, a quem ele mal conhecia de nome.

Froebel foi quem veio afinal acentuar no seu espírito essas vagas idéias, que até aí não passavam de meros pressentimentos.

Mas não era essa a única preocupação de sua inteligência: ainda havia uma outra que não lhe parecia menos desvelos, a de fazer um epítome da história do Brasil, em que se expusessem os fatos pela sua ordem cronológica.

Nesse trabalho de paciente investigação revelava-se aquele mesmo cabeçudo organizador do catálogo do colégio; continuava o Coruja a pertencer a essa ordem de espíritos, incapazes de qualquer produção original, mas poderosíssimos para desenvolver e aperfeiçoar o que os outros inventam; espíritos formados de perseverança, de dedicação e de modéstia, e para os quais uma só idéia chega às vezes a encher toda a existência.