Depois da nova leitura da carta anônima, Teobaldo mergulhou mais profundamente na sua preocupação.

— O meu melhor amigo... o meu íntimo!... repetia ele, como um sonâmbulo. Trata-se por conseguinte do Coruja ou do Aguiar! O Aguiar!... não! não é possível!... e contra o outro não me animo sequer a levantar a ponta de uma suspeita!

Mas o seu espírito, como se pactuasse com o autor da covarde denúncia, escapava-se das convicções dele a favor daqueles dois amigos e punha-se na pista das probabilidades do que afirmava a carta.

— Oh! dizia por dentro da sua experiência. As mulheres são tão dissimuladas, tão vingativas e tão traiçoeiras, que às vezes aquela, que supomos mais anjo e mais virtuosa, é justamente a mais capaz de matar-nos a alfinetadas, se lhe ofendermos o amor-próprio e a vaidade!

E, porque ele julgava de todas as mulheres pelas que até aí tivera por amantes, isto é, pelas fracas, pelas vulgares e gafadas de velho romantismo, seu pensamento ia ainda mais longe e dizia-lhe:

— Ah! são todas as mesmas! Perdoam-nos tudo, as maiores baixezas e as maiores maldades; só o que cada uma de per si não nos perdoa nunca, é não lhe darmos a primazia da nossa ternura e da nossa dedicação! Cada qual quer sempre ser a melhor e a mais digna de amor, e ai daquele que não obedece ou não finge obedecer a esse capricho, quando ligou o seu nome a qualquer dessas egoístas!

E, depois de agarrar-se a este princípio, Teobaldo perguntou a si mesmo:

— Qual dos dois, o Coruja ou o Aguiar, teria Branca preferido para cúmplice de sua vingança contra mim?

— O Aguiar, sem dúvida, porque o outro nada tem de amável.

— Que importa, porém, a ferrenha antipatia do Coruja, se não é o amor que se trata, mas simplesmente de uma vingança? E a vingança com o Coruja seria muito e muito mais completa e mais cruel!

E então, como para explicar esta terrível hipótese, o espírito de Teobaldo começou a fazer desfilar defronte de si todas as esquisitices que se notavam em Branca ultimamente; vieram os caprichos, as transformações de gênio, as excentricidades, que ela, a despeito do seu reconhecido bom senso, apresentava de tempo a essa parte.

— Sim, sim, insistia o pensamento de Teobaldo. Desde aquela célebre noite da entrevista da mulher do conselheiro. Branca já não é a mesma senhora ajuizada e boa dona de casa!... Está completamente transformada, ao ponto de não dar ideia do que fora... Agora tem extravagâncias que parecem de louca; dá para fechar-se no quarto dias inteiros, a ler ou a escrever, sem se importar com o que vai pelo resto do mundo; agora toma-se de simpatias por criaturas, que até aí não podia suportar; agora veste-se mal, um pouco disparatadamente, desleixa-se em questões de asseio, não capricha em trazer a cabeça penteada; falta à mesa nas horas consagradas à refeição e levanta-se à noite, fora de horas, para cear em companhia do velho Caetano...

Esse nome como que o despertou.

— Ah! disse, e correu a vibrar o tímpano.

Surgiu logo um criado.

— O Caetano que venha aqui, imediatamente! ordenou.

E já passeava a passos medidos em toda a extensão do gabinete, quando o velho criado lhe apareceu, arrastando os pés, a cabecinha toda branca e vergada para a terra, como se andasse à procura dos oito palmos que esta lhe destinava no seu seio.

— Velho amigo! Disse-lhe o amo, passando-lhe o braço pelo ombro. Sabes para que te chamei? Foi para que me relatasse minuciosamente tudo o que tens visto fazer minha mulher nestes últimos tempos.

— Nunca a espreitei... respondeu Caetano, franzindo as sobrancelhas.

— Bem sei, replicou o amo, e não te perdoaria se o fizeras; quero, porém, que me contes minuciosamente como Branca tem vivido, quais são agora os seus hábitos, os seus gostos e as suas propensões.

— Ah! muito mudada de gênio, coitadinha! principiou o criado; não lembra quem era! Está triste, frenética e caprichosa, que mete dó! Já não cuida das suas flores; mandou retirar da sala os passarinhos que ela tanto estimava dantes e parece disposta a não conservar nenhum dos hábitos antigos; já não se deita, nem se levanta dois dias seguidos à mesma hora; nega-se às visitas que recebia com mais prazer e só se mostra deveras entretida quando ouve a leitura do Sr. André.

— Do Coruja! Ah! explica-me isso!

— O Sr. André, quase todas as noites e aos domingos durante algumas horas do dia, desce à sala de jantar, assenta-se ao lado dela e põe-se a ler. A senhora o ouve com toda a atenção e parece tomar nisso grande interesse porque às vezes, quando ele termina a leitura, ela tem os olhos cheios dágua e suspira.

— E o que mais tens observado entre os dois?

— Mais nada. O Sr. André, termina a leitura, conversa ainda um pouco com a Sra. D. Branca e retira-se depois para o seu quarto.

— E ela?

— Ela nunca faz o que fez na véspera e sim o que lhe vem à fantasia.

— Sim, mas explica o que é!

— Oh! mas são tantas as coisas... Uma vez, por exemplo, quando toda a casa já estava recolhida, ela mandou-me chamar, fez preparar o carro e saímos a passeio.

— Onde foram?

— À toa. A Sra. D. Branca disse ao cocheiro que desse algumas voltas até o Catete.

— E foi só essa vez que passeou?

— Não, senhor: fez o mesmo várias vezes...

— E sempre em tua companhia?

— Creio que sim, senhor.

E o Coruja nunca os acompanhou?

Não, senhor; se bem que a Sra. D. Branca o convidasse mais de uma vez.

— Ah!

— O Sr. André apenas a acompanhou uma ocasião em que a Sra. D. Branca foi à missa à igreja de S. João Batista.

— Há muito tempo?

— Há coisa de dois meses.

— E o outro, o Aguiar, tem vindo aqui muitas vezes?

— Tem sim, senhor; mas a Sra. D. Branca parece não estimar tanto a companhia do Sr. Aguiar como estima a do Sr. André, visto que às vezes deixa-se ficar no quarto e não lhe aparece, e de outras retira-se da sala antes que ele se tenha ido embora.

— E o Aguiar trata-a com muita amabilidade?

— Muita; e parece respeitá-la extraordinariamente.

— Bem. E quem mais aparece?

— Nestes últimos tempos, quase que ninguém a não ser o Sr. Aguiar, porque há muito que a Sra. D. Branca não se quer mostrar a pessoa alguma. Quem muita vez passa o dia aqui e parece distrair muito a Sra. D. Branca é o filhinho da costureira, um pequeno de uns cinco anos. A Sra. D. Branca mostra certa estima por ele, faz-lhe roupas, leva-o consigo dentro do carro, compra-lhe brinquedos, sapatos, chapéus e às vezes passa horas esquecidas ao lado do menino.

Teobaldo fez ainda várias perguntas ao velho Caetano, intimamente envergonhado por não saber o que ia por sua própria casa e mais ou menos aturdido pela dúvida e pela desconfiança em que se achava contra a esposa e os dois únicos homens a quem tinha por amigos verdadeiros.

Disse ao criado que se retirasse. Depois foi à gaveta da secretária buscar um revólver que lá estava.

— Hei de descobrir, pensou ele, o que há de verdade em tudo isto, e juro que meterei uma bala na cabeça do miserável que me atraiçoa!