Logo desde os primeiros dias, envolvido suavemente em comodidades, Amaro sentiu-se feliz. A S. Joaneira, muito maternal, tomava um grande cuidado na sua roupa branca, preparava-lhe petiscos, e o "quarto do senhor pároco andava que nem um brinco"! Amélia tinha com ele uma familiaridade picante de parenta bonita: "tinham calhado um com o outro", como dissera, encantada, D. Maria da Assunção. Os dias iam assim passando para Amaro, fáceis, com boa mesa, colchões macios e a convivência meiga de mulheres. A estação ia tão linda que até as tílias floresceram no jardim do Paço: "quase milagre!", disse-se: o senhor chantre, contemplando-as todas as manhãs da janela do seu quarto, em robe-de-chambre, citava versos das Éclogas. E depois das longas tristezas da casa do tio da Estrela, dos desconsolos do seminário e do áspero Inverno na Gralheira — aquela vida em Leiria era para Amaro como uma casa seca e abrigada onde o alegre lume estala e a sopa cheirosa fumega, depois duma noite de jornada na serra, sob trovões e chuveiros.

Ia cedo dizer a missa à Sé, bem embrulhado no seu grande capote, com luvas de casimira, meias de lãs por baixo das botas de alto cano vermelho. As manhãs estavam frias: e àquela hora só algumas devotas, com o mantéu escuro pela cabeça, rezavam aqui e além, ao pé dum altar envernizado de branco. Entrava logo na sacristia, revestia-se depressa batendo os pés no lajedo, enquanto o sacristão, pachorrento, contava "as novidades do dia".

Depois, com o cálice na mão, de olhos baixos, passava à igreja; e tendo dobrado o joelho rapidamente diante do Santíssimo Sacramento, subia devagar ao altar onde duas velas de cera esmoreciam com uma claridade pálida na larga luz da manhã, juntava as mãos, murmurava, curvado:

Introibo ad altare Dei.

Ad Deum qui laetificat juventutem meam, resmungava, num latim silabado, o sacristão. Amaro já não celebrava a missa como nos primeiros tempos, com uma devoção enternecida. "Estava agora habituado", dizia. E como não ceava, e àquela hora em jejum, com a frescura cortante do ar, já sentia apetite, engrolava depressa, monotonamente, as santas leituras da Epístola e dos Evangelhos. Por trás o sacristão, com os braços cruzados, passava vagarosamente a mão pela sua espessa barba bem rapada, olhando de revés para a Casimira França, mulher do carpinteiro da Sé, muito devota, que ele "trazia de olho" desde a Páscoa. Largas réstias de sol caíam das janelas laterais. Um vago aroma de junquilhos secos adocicava o ar.

Amaro, depois de recitar rapidamente o ofertório, limpava o cálice com o purificador; o sacristão, um pouco vergado dos rins, ia buscar as galhetas, apresentava-as, curvado — e Amaro sentia o cheiro do óleo rançoso que lhe reluzia no cabelo. Naquela parte da missa, por um antigo hábito de emoção mística, Amaro tinha um recolhimento sentido: com os braços abertos, voltava-se para a igreja, clamava, com largueza, a exortação universal à oração — Orate, fratres! E as velhas encostadas aos pilares de pedra, com o aspecto idiota, a boca babosa, apertavam mais as mãos contra o peito, de onde pendiam grandes rosários negros. Então o sacristão ia ajoelhar-se por trás dele, sustentando ligeiramente com uma das mãos a capa, erguendo na outra a sineta. Amaro consagrava o vinho, levantava a hóstia — Hoc est enim corpus meum! — elevando alto os braços para o Cristo cheio de chagas roxas sobre a sua cruz de pau preto; a campainha tocava devagar; as mãos batiam concavamente nos peitos; e no silêncio sentiam-se os carros de bois rolando, com solavancos, sobre o largo lajeado da Sé, à volta do mercado.

Ite, missa est! dizia Amaro enfim.

Deo gratias! respondia o sacristão respirando alto, com o alívio da obrigação finda. E quando, depois de ter beijado o altar, Amaro vinha do alto dos degraus dar a benção, era já pensando na alegria do almoço, na clara sala de jantar da S. Joaneira e nas boas torradas. Àquela hora já Amélia o esperava com o cabelo caído sobre o penteador, tendo na pele fresca um bom cheiro de sabão de amêndoas.



Pelo meio do dia ordinariamente Amaro subia à sala de jantar, onde a S. Joaneira e Amélia costuravam. "Estava aborrecido embaixo, vinha um bocado para o cavaco", dizia. A S. Joaneira, numa cadeira pequena, ao pé da janela, com o gato aninhado na roda do vestido de merino, cosia de luneta na ponta do nariz. Amélia, junto da mesa, trabalhava com o cesto da costura ao lado; a cabeça inclinada sobre o trabalho mostrava a sua risca fina, nítida, um pouco afogada na abundância do cabelo; os seus grandes brincos de ouro, em forma de pingos de cera, oscilavam, faziam tremer e crescer sobre a finura do pescoço uma pequenina sombra; as olheiras leves cor de bistre esbatiam-se delicadamente sobre a pele de um trigueiro mimoso, que um sangue forte aviventava; e o seu peito cheio respirava devagar. Às vezes, cravando a agulha na fazenda, espreguiçava-se devagarinho, sorria, cansada. Então Amaro gracejava:

— Ah preguiçosa, preguiçosa! Olha que mulher de casa!

Ela ria; conversavam. A S. Joaneira sabia as coisas interessantes do dia: o major despedira a criada; ou havia quem oferecesse dez moedas pelo porco do Carlos do correio. De vez em quando a Ruça vinha ao armário buscar um prato ou uma colher; então falava-se do preço dos gêneros, do que havia para o jantar. A S. Joaneira tirava as lunetas, traçava a perna, e balouçando o pé calçado numa chinela de ourelo, punha-se a dizer os pratos.

— Hoje temos grão-de-bico. Não sei se o senhor pároco gostará, foi para variar...

Mas Amaro gostava de tudo; e mesmo em certas comidas descobria afinidade de gostos com Amélia.

Depois, animando-se, bulia-lhe no cesto da costura. Um dia encontrara uma carta; perguntou-lhe pelo derriço; ela respondeu, picando vivamente o pesponto:

— Ai! a mim ninguém me quer, senhor pároco...

— Não é tanto assim, acudiu ele. Mas suspendeu-se, muito vermelho, afetando tossir.

Amélia às vezes fazia-se muito familiar; um dia mesmo, pediu-lhe para sustentar nas mãos uma meadinha de retrós que ela ia dobar.

— Deixe falar, senhor pároco! exclamou a S. Joaneira. Ora a tolice! Isto, em se lhe dando confiança!...

Mas Amaro prontificou-se, rindo, todo contente: — ele estava ali para o que quisessem, até para dobadoura! Era mandarem, era mandarem!... E as duas mulheres riam, dum riso cálido, enlevadas naquelas maneiras do senhor pároco, "que até tocavam o coração" ! Às vezes Amélia pousava a costura e tomava o gato no colo; Amaro chegava-se, corria a mão pela espinha do maltês que se arredondava, fazendo um ronrom de gozo.

— Gostas? dizia ela ao gato, um pouco corada, com os olhos muito ternos. E a voz de Amaro murmurava, perturbada:

— Bichaninho gato! bichaninho gato!

Depois a S. Joaneira erguia-se para dar o remédio à idiota ou ir palrar à cozinha. Eles ficavam sós; não falavam, mas os seus olhos tinham um longo diálogo mudo, que os ia penetrando da mesma languidez dormente. Então Amélia cantarolava baixo o Adeus ou o Descrente: Amaro acendia o seu cigarro, e escutava, bamboleando a perna.

— É tão bonito isso! dizia.

Amélia cantava mais acentuadamente, cosendo depressa; e a espaços, erguendo o busto, mirava o alinhavado ou o pesponto, passando-lhe por cima, para o assentar, a sua unha polida e larga.

Amaro achava aquelas unhas admiráveis, porque tudo que era ela ou vinha dela lhe parecia perfeito: gostava da cor dos seus vestidos, do seu andar, do modo de passar os dedos pelos cabelos, e olhava até com ternura para as saias brancas que ela punha a secar à janela do seu quarto, enfiadas numa cana. Nunca estivera assim na intimidade duma mulher. Quando percebia a porta do quarto dela entreaberta, ia resvalar para dentro olhares gulosos, como para perspectivas dum paraíso: um saiote pendurado, uma meia estendida, uma liga que ficara sobre o baú, eram como revelações da sua nudez, que lhe faziam cerrar os dentes, todo pálido. E não se saciava de a ver falar, rir, andar com as saias muito engomadas que batiam as ombreiras das portas estreitas. Ao pé dela, muito fraco, muito langoroso, não lhe lembrava que era padre; o Sacerdócio, Deus, a Sé, o Pecado ficavam embaixo, longe, via-os muito esbatidos do alto do seu enlevo, como de um monte se vêem as casas desaparecer no nevoeiro dos vales; e só pensava então na doçura infinita de lhe dar um beijo na brancura do pescoço, ou mordicar-lhe a orelhinha.

Às vezes revoltava-se contra estes desfalecimentos, batia o pé:

— Que diabo, é necessário ter juízo! É necessário ser homem!

Descia, ia folhear o seu Breviário; mas a voz de Amélia falava em cima, o tique-tique das suas botinas batia o soalho... Adeus! a devoção caia como uma vela a que falta o vento; as boas resoluções fugiam, e lá voltavam as tentações em bando a apoderar-se do seu cérebro, frementes, arrulhando, roçando-se umas pelas outras como um bando de pombas que recolhem ao pombal. Ficava todo subjugado, sofria. E lamentava então a sua liberdade perdida: como desejaria não a ver, estar longe de Leiria, numa aldeia solitária, entre gente pacífica, com uma criada velha cheia de provérbios e de economia, e passear pela sua horta quando as alfaces verdejam e os galos cacarejam ao sol! Mas Amélia, de cima, chamava-o — e o encanto recomeçava, mais penetrante.

A hora do jantar, sobretudo, era a sua hora perigosa e feliz, a melhor do dia. A S. Joaneira trinchava, enquanto Amaro conversava cuspindo os caroços das azeitonas na palma da mão e enfileirando-os sobre a toalha. A Ruça, cada dia mais ética, servia mal, sempre a tossir; Amélia às vezes erguia-se para ir buscar uma faca, um prato ao aparador. Amaro queria levantar-se logo, atencioso.

— Deixe-se estar, deixe-se estar, senhor pároco! dizia ela. E punha-lhe a mão no ombro, e os seus olhos encontravam-se.

Amaro, com as pernas estendidas e o guardanapo sobre o estômago, sentia-se regalado, gozava muito no bom calor da sala; depois do segundo copo da Bairrada tornava-se expansivo, tinha gracinhas; às vezes mesmo, com um brilho terno no olho, tocava fugitivamente o pé de Amélia debaixo da mesa; ou, fazendo um ar sentido, dizia "que muito lhe pesava não ter uma irmãzinha assim" !

Amélia gostava de ensopar o miolo do pão no molho do guisado: a mãe dizia-lhe sempre:

Embirro que faças isso diante do senhor pároco.

E ele então rindo:

— Pois olhe, também eu gosto. Simpatia! Magnetismo!

E molhavam ambos o pão, e sem razão davam grandes risadas. Mas o crepúsculo crescia, a Ruça trazia o candeeiro. O brilho dos copos e das louças alegrava Amaro, enternecia-o mais; chamava à S. Joaneira mamã; Amélia sorria, de olhos baixos, trincando com a ponta dos dentes cascas de tangerina. Daí a pouco vinha o café; e o padre Amaro ficava muito tempo partindo nozes com as costas da faca, e quebrando a cinza do cigarro na borda do pires.

Àquela hora aparecia sempre o cônego Dias; sentiam-no subir pesadamente, dizendo da escada:

— Licença para dois!

Era ele e a cadela, a Trigueira.

— Ora Nosso Senhor vos dê muito boas-noites! dizia assomando à porta.

— Vai a gotinha de café, senhor cônego? perguntava logo a S. Joaneira.

Ele sentava-se, exalando um profundo ufa! — Vá lá a gotinha do café! — E batendo no ombro do pároco, olhando para a S. Joaneira:

— Então, como vai cá o seu menino?

Riam; vinham as histórias do dia. O cônego costumava trazer no bolso o Diário Popular; Amélia interessava-se pelo romance, a S. Joaneira pelas correspondências amorosas nos anúncios.

— Ora vejam que pouca-vergonha!... dizia ela, deliciando-se.

Amaro então falava de Lisboa, de escândalos que lhe contara a tia: dos fidalgos que conhecera "em casa do Sr. conde de Ribamar". Amélia, enlevada, escutava-o com os cotovelos sobre a mesa, roendo vagarosamente a ponta do palito.

Depois do jantar iam visitar a entrevada. A lamparina esmorecia à cabeceira da cama: e a pobre velha, com uma medonha touca de rendas negras que tornava mais lívida a sua carinha engelhada como uma maçã reineta, fazendo debaixo da roupa uma saliência quase imperceptível, fixava em todos, com susto, os seus olhinhos côncavos e chorosos.

— É o senhor pároco, tia Gertrudes! gritava-lhe Amélia ao ouvido. Vem ver como está.

A velha fazia um esforço, e com uma voz gemida:

— Ah! é o menino!

— É o menino, é, diziam rindo.

E a velha ficava a murmurar, espantada:

— É o menino, é o menino!

— Pobre de Cristo! dizia Amaro. Pobre de Cristo! Deus lhe dê uma boa morte!

E voltavam para a sala de jantar onde o cônego Dias, todo enterrado na velha poltrona de chita verde, com as mãos cruzadas sobre o ventre, dizia logo:

— Ora vá um bocadinho de música, pequena!

Amélia ia sentar-se ao piano.

— Ó filha, toca o Adeus! recomendava a S. Joaneira começando a sua meia.

E Amélia, ferindo o teclado:

Ai! adeus! acabaram-se os dias
Que ditoso vivi a teu lado...

A sua voz arrastava-se com melancolia; e Amaro soprando o fumo do cigarro, sentia-se todo enleado num sentimentalismo agradável.

Quando descia para o seu quarto, à noite, ia sempre exaltado. Punha-se então a ler os Cânticos a Jesus, tradução do francês publicada pela sociedade das Escravas de Jesus. É uma obrazinha beata, escrita com um lirismo equívoco, quase torpe — que dá à oração a linguagem da luxúria: Jesus é invocado, reclamado com as sofreguidões balbuciantes de uma concupiscência alucinada: "Oh! vem, amado do meu coração, corpo adorável, minha alma impaciente quer-te! Amo-te com paixão e desespero! Abrasa-me! queima-me! Vem! esmaga-me! possui-me! " E um amor divino, ora grotesco pela intenção, ora obsceno pela materialidade, geme, ruge, declama assim em cem páginas inflamadas onde as palavras gozo, delícia, delírio, êxtase, voltam a cada momento, com uma persistência histérica. E depois de monólogos frenéticos de onde se exala um bafo de cio místico, vêm então imbecilidades de sacristia, notazinhas beatas resolvendo casos difíceis de jejuns, e orações para as dores do parto! Um bispo aprovou aquele livrinho bem impresso; as educandas lêem-no no convento. É beato e excitante; tem as eloquências do erotismo, todas as pieguices da devoção; encaderna-se em marroquim e dá-se às confessadas; é a cantárida canônica!

Amaro lia até tarde, um pouco perturbado por aqueles períodos sonoros, túmidos de desejo; e no silêncio, por vezes, sentia em cima ranger o leito de Amélia; o livro escorregava-lhe das mãos, encostava a cabeça às costas da poltrona, cerrava os olhos, e parecia-lhe vê-la em colete diante do toucador desfazendo as tranças; ou, curvada, desapertando as ligas, e o decote da sua camisa entreaberta descobria os dois seios muito brancos.

Erguia-se, cerrando os dentes, com uma decisão brutal de a possuir.

Começara então a recomendar-lhe a leitura dos Cânticos a Jesus.

— Verá, é muito bonito, de muita devoção! disse ele, deixando-lhe o livrinho uma noite no cesto da costura. Ao outro dia, ao almoço, Amélia estava pálida, com as olheiras até o meio da face. Queixou-se de insônia, de palpitações. — E então, gostou dos Cânticos? — Muito. Orações lindas! respondeu. Durante todo esse dia não ergueu os olhos para Amaro. Parecia triste — e sem razão, às vezes, o rosto abrasava-se-lhe de sangue.



Os piores momentos para Amaro eram as segundas e quartas-feiras, quando João Eduardo vinha passar as noites em família. Até às nove horas o pároco não saía do quarto; e quando subia para o chá desesperava-se de ver o escrevente embrulhado no seu xale-manta, sentado junto de Amélia.

— Ai o que estes dois têm para aí palrado, senhor pároco! dizia a S. Joaneira.

Amaro tinha um sorriso lívido, partindo devagar a sua torrada, com os olhos fitos na chávena.

Amélia na presença de João Eduardo, agora, não tinha com o pároco a mesma familiaridade alegre, mal levantava os olhos da costura; o escrevente, calado, chupava o cigarro; e havia grandes silêncios em que se sentia o vento uivar, encanado na rua.

— Olha quem andar agora nas águas no mar! dizia a S. Joaneira, fazendo devagar a sua meia.

— Safa! acrescentava João Eduardo.

As suas palavras, os seus modos irritavam o padre Amaro; detestava-o pela sua pouca devoção, pelo seu bonito bigode preto. E diante dele sentia-se mais enleado no seu acanhamento de padre.

— Toca alguma coisa, filha, dizia a S. Joaneira.

— Estou tão cansada! respondia Amélia apoiando-se nas costas da cadeira, com um suspirozinho de fadiga.

A S. Joaneira, então, que não gostava de "ver gente mona", propunha uma bisca de três; e o padre Amaro, tomando o seu candeeiro de latão, descia para o quarto, muito infeliz.

Nessas noites quase detestava Amélia; achava-a casmurra. A intimidade do escrevente na casa parecia-lhe escandalosa: decidiu mesmo falar à S. Joaneira, dizer-lhe "que aquele namoro de portas adentro não podia ser agradável a Deus". Depois, mais razoável, resolvia esquecê-la, pensava em sair da casa, da paróquia. Representava-se então Amélia com a sua coroa de flores de laranjeira, e João Eduardo, muito vermelho, de casaca, voltando da Sé, casados... Via a cama de noivado com os seus lençóis de renda... E todas as provas, as certezas do amor dela pelo "idiota do escrevente" cravavam-se-lhe no peito como punhais...

— Pois que casem, e que os leve o diabo!...

Odiava-a então. Fechava violentamente a porta à chave como para impedir que lhe penetrasse no quarto o rumor da sua voz ou o frufru das suas saias. Mas daí a pouco, como todas as noites, escutava com o coração aos saltos, imóvel e ansioso, os ruídos que ela fazia em cima ao despir-se, palrando ainda com a mãe.

Um dia Amaro jantara em casa da Sra. D. Maria da Assunção; fora depois passear pela estrada de Marrazes, e à volta, ao fim da tarde, encontrou, ao entrar em casa, a porta da rua aberta; sobre o capacho, no patamar, estavam os chinelos de ourelo da Ruça.

— Tonta de rapariga! pensou Amaro, foi à fonte e esqueceu-se de fechar a porta.

Lembrou-se que Amélia tinha ido passar a tarde com a Sra. D. Joaquina Gansoso, numa fazenda ao pé da Piedade, e que a S. Joaneira falara em ir à irmã do cônego. Fechou devagar a cancela, subiu à cozinha a acender o seu candeeiro; como as ruas estavam molhadas da chuva da manhã, trazia ainda galochas de borracha; os seus passos não faziam rumor no soalho; ao passar diante da sala de jantar sentiu no quarto da S. Joaneira, através do reposteiro de chita, uma tosse grossa; surpreendido, afastou sutilmente um lado do reposteiro, e pela porta entreaberta espreitou. — Oh Deus de Misericórdia! a S. Joaneira, em saia branca, atacava o colete; e, sentado à beira da cama, em mangas de camisa, o cônego Dias resfolegava grosso!

Amaro desceu, colado ao corrimão, fechou muito devagarinho a porta, e foi ao acaso para os lados da Sé. O céu enevoara-se, leves gotas de chuva caíam.

— E esta! E esta! dizia ele assombrado.

Nunca suspeitara um tal escândalo! A S. Joaneira, a pachorrenta S. Joaneira! O cônego, seu mestre de Moral! E era um velho, sem os ímpetos do sangue novo, já na paz que lhe deveriam ter dado a idade, a nutrição, as dignidades eclesiásticas! Que faria então um homem novo e forte, que sente uma vida abundante no fundo das suas veias reclamar e arder!... Era, pois, verdade o que se cochichava no seminário, o que lhe dizia o velho padre Sequeira, cinquenta anos padre da Gralheira: — "Todos são do mesmo barro!" Todos são do mesmo barro, — sobem em dignidades, entram nos cabidos, regem os seminários, dirigem as consciências envoltos em Deus como numa absolvição permanente, e têm no entanto, numa viela, uma mulher pacata e gorda, em casa de quem vão repousar das atitudes devotas e da austeridade do ofício, fumando cigarros de estanco e palpando uns braços rechonchudos!

Vinham-lhe então outras reflexões: que gente era aquela, a S. Joaneira e a filha, que viviam assim sustentadas pela lubricidade tardia de um velho cônego? A S. Joaneira fora decerto bonita, bem-feita, desejável — outrora! Por quantos braços teria passado até chegar, pelos declives da idade, àqueles amores senis e mal pagos? As duas mulherinhas, que diabo, não eram honestas! Recebiam hóspedes, viviam da concubinagem. Amélia ia sozinha à igreja, às compras, à fazenda; e com aqueles olhos tão negros, talvez já tivesse tido um amante! — Resumia, filiava certas recordações: um dia que ela lhe estivera mostrando na janela da cozinha um vaso de rainúnculos, tinham ficado sós, e ela, muito corada, pusera-lhe a mão sobre o ombro e os seus olhos reluziam e pediam; outra ocasião ela roçara-lhe o peito pelo braço! A noite caíra, com uma chuva fina. Amaro não a sentia, caminhando depressa, cheio de uma só idéia deliciosa que o fazia tremer: ser o amante da rapariga, como o cônego era o amante da mãe! Imaginava já a boa vida escandalosa e regalada; enquanto em cima a grossa S. Joaneira beijocasse o seu cônego cheio de dificuldades asmáticas — Amélia desceria ao seu quarto, pé ante pé, apanhando as saias brancas, com um xale sobre os ombros nus... Com que frenesi a esperaria! E já não sentia por ela o mesmo amor sentimental, quase doloroso: agora a idéia muito magana dos dois padres e as duas concubinas, de panelinha, dava àquele homem amarrado pelos votos uma satisfação depravada! Ia aos pulinhos pela rua. — Que pechincha de casa!

A chuva caía, grossa. Quando entrou havia já luz na sala de jantar. Subiu.

— lh, como vem frio! disse-lhe Amélia sentindo, ao apertar-lhe a mão, a umidade da névoa.

Sentada à mesa, costurava com um xale-manta pelos ombros: João Eduardo, ao pé, jogava a bisca com a S. Joaneira.

Amaro sentou-se um pouco embaraçado; a presença do escrevente dera-lhe de repente, sem saber por quê, o duro choque duma realidade antipática: e todas as esperanças, que lhe tinham vindo a dançar uma sarabanda na imaginação, encolhiam-se uma a uma, murchavam — vendo ali Amélia ao pé do noivo, curvada sobre uma costura honesta, com o seu escuro vestido afogado, junto do candeeiro de família! E tudo em redor lhe parecia como mais recatado, as paredes com o seu papel de ramagens verdes, o armário cheio de louça luzidia da Vista Alegre, o simpático e bojudo pote de água, o velho piano mal firme nos seus três pés torneados; o paliteiro tão querido de todos — um Cupido rechonchudo com um guarda-chuva aberto eriçado de palitos, e aquela tranqüila bisca jogada com os dichotes clássicos. Tudo tão decente!

Afirmava-se então nas grossas roscas do pescoço da S. Joaneira, como para descobrir nelas as marcas das beijocas do cônego: ah! tu, não há dúvida, és "uma barregã de clérigo". Mas Amélia! com aquelas longas pestanas descidas, o beiço tão fresco!... Ignorava decerto as libertinagens da mãe; ou, experiente, estava bem resolvida a estabelecer-se solidamente na segurança dum amor legal! — E Amaro, da sombra, examinava-a longamente como para se certificar, na placidez do seu rosto, da virgindade do seu passado.

— Cansadinho, senhor pároco, hem? disse a S. Joaneira. E para João Eduardo: — Trunfo, faz favor, seu cabeça no ar!

O escrevente, namorado, distraía-se.

— É o senhor a jogar, dizia-lhe a S. Joaneira a cada momento.

Depois ele esquecia-se de comprar cartas.

— Ah menino, menino! dizia ela com a sua voz pachorrenta, que lhe puxo essas orelhas! Amélia ia cosendo com a cabeça baixa: tinha um pequeno casabeque preto com botões de vidro, que lhe disfarçava a forma do seio.

E Amaro irritava-se daqueles olhos fixos na costura, daquele casaco amplo escondendo a beleza que mais apetecia nela! E nada a esperar. Nada dela lhe pertenceria, nem a luz daquelas pupilas, nem a brancura daqueles peitos! Queria casar — e guardava tudo para o outro, o idiota, que sorria baboso, jogando paus! Odiou-o então, dum ódio complicado de inveja ao seu bigode negro e ao seu direito de amar...

— Está incomodado, senhor pároco? perguntou Amélia, vendo-o mexer-se bruscamente na cadeira.

— Não, disse ele secamente.

— Ah! fez ela, com um leve suspiro, picando rapidamente o pesponto.

O escrevente, baralhando as cartas, começara a falar de uma casa que queria alugar; a conversa caiu sobre arranjos domésticos.

— Traz-me luz! gritou Amaro à Ruça.

Desceu para o seu quarto, desesperado. Pôs a vela sobre a cômoda; o espelho estava defronte, e a sua imagem apareceu-lhe; sentiu-se feio, ridículo com a sua cara rapada, a volta hirta como uma coleira, e por trás a coroa hedionda. Comparou-se instintivamente com o outro que tinha um bigode, o seu cabelo todo, a sua liberdade! Para que hei-de eu estar a ralar-me? pensou. O outro era um marido; podia dar-lhe o seu nome, uma casa, a maternidade; ele só poderia dar-lhe sensações criminosas, depois os terrores do pecado! Ela simpatizava talvez com ele, apesar de padre; mas antes de tudo, acima de tudo, queria casar; nada mais natural! Via-se pobre, bonita, só: cobiçava uma situação legítima e duradoura, o respeito das vizinhas, a consideração dos lojistas, todos os proveitos da honra!

Odiou-a então, e o seu vestido afogado e a sua honestidade! A estúpida, que não percebia que ao pé dela, sob uma negra batina, uma paixão devota a espreitava, a seguia, tremia e morria de impaciência! Desejou que ela fosse como a mãe, — ou pior, toda livre, com vestidos garridos, uma cuia impudente, traçando a perna e fitando os homens, uma fêmea fácil como uma porta aberta...

— Boa! Estou a desejar que a rapariga fosse uma desavergonhada! — pensou, recaindo em si um pouco envergonhado. Está claro: não podemos pensar em mulheres decentes, temos que reclamar prostitutas! Bonito dogma!

Abafava. Abriu a janela. O céu estava tenebroso; a chuva cessara; o piar das corujas na Misericórdia cortava só o silêncio.

Enterneceu-se, então, com aquela escuridão, aquela mudez de vila adormecida. E sentiu subir outra vez, das profundidades do seu ser, o amor que sentira ao princípio por ela, muito puro, dum sentimentalismo devoto: via a sua linda cabeça, duma beleza transfigurada e luminosa, destacar da negrura espessa do ar; e toda a sua alma foi para ela num desfalecimento de adoração, como no culto a Maria e na Saudação Angélica; pediu-lhe perdão ansiosamente de a ter ofendido; disse-lhe alto: És uma santa, perdoa! — Foi um momento muito doce, de renunciamento carnal...

E, espantado quase daquelas delicadezas de sensibilidade que descobria subitamente em si, pôs-se a pensar com saudade — que se fosse um homem livre seria um marido tão bom! Amorável, delicado, dengueiro, sempre de joelhos, todo de adorações! Como amaria o seu filho, muito pequerruchinho, a puxar-lhe as barbas! À idéia daquelas felicidades inacessíveis, os olhos arrasaram-se-lhe de lágrimas. Amaldiçoou, num desespero, "a pega da marquesa que o fizera padre", e o bispo que o confirmara!

— Perderam-me! perderam-me! dizia, um pouco desvairado.

Sentiu então os passos de João Eduardo que descia, e o rumor das saias de Amélia. Correu a espreitar pela fechadura, cravando os dentes no beiço, de ciúme. A cancela bateu, Amélia subiu cantarolando baixo.

— Mas a sensação do amor místico que o penetrara um momento, olhando a noite, passara; e deitou-se, com um desejo furioso dela e dos seus beijos.