João Eduardo, à noitinha, ia sair de casa para a Rua da Misericórdia, levando debaixo do braço um rolo de amostras de papel de parede para Amélia escolher, quando à porta encontrou a Ruça que ia puxar a campainha.

— Que é, Ruça?

— As senhoras foram passar a noite fora de casa, e aqui está esta carta que manda a senhora.

João Eduardo sentiu apertar-se-lhe o coração, e seguia com o olhar pasmado a Ruça, que descia a rua, batendo os tamancos. Foi ao pé do candeeiro, defronte, abriu a carta:

"SR. JOÃO EDUARDO.

O que estava decidido a respeito do nosso casamento era na persuasão que era V. Sa. uma pessoa de bem e que me poderia fazer feliz,' mas como se sabe tudo, e que foi o senhor que escreveu o artigo do Distrito, e caluniou os amigos da casa e me insultou a mim, e como os seus costumes não me dão garantia de felicidade na vida de casada, deve desde hoje, considerar tudo acabado entre nós, pois não há banhos publicados nem despesas feitas. E eu espero, bem como a mamã, que o senhor seja bastante delicado para não nos voltar a casa, nem perseguir-nos na rua. O que tudo lhe comunico por ordem da mamã, e sou

criada de V. Sa.

Amélia Caminha .

João Eduardo ficou a olhar estupidamente a parede defronte onde batia a claridade do candeeiro, imóvel como uma pedra, com o seu rolo de papéis pintados debaixo do braço. Maquinalmente, voltou a casa. As mãos tremiam-lhe tanto, que mal podia acender o candeeiro. De pé, junto da mesa, releu a carta. Depois ficou ali, fatigando a vista contra a chama da torcida, com uma sensação arrefecedora de Imobilidade e de Silêncio, como se subitamente, sem choque, toda a vida universal tivesse emudecido e parado. Pensou onde teriam elas ido passar a noite. Lembranças de serões felizes na Rua da Misericórdia atravessaram-lhe devagar na memória: Amélia trabalhava, com a cabeça baixa, e entre o cabelo muito preto e o colar muito branco o seu pescoço tinha uma palidez que a luz amaciava... Então a idéia de que a perdera para sempre varou-lhe o coração com um frio de punhalada. Apertou as fontes entre as mãos, tonto. Que havia de fazer? que havia de fazer? Resoluções bruscas relampejavam-lhe um momento no espírito, esvaíam-se. Queria escrever-lhe! Tirá-la por justiça! Ir para o Brasil! Saber quem descobrira que ele era o autor do artigo! - E como isto era o mais praticável àquela hora, correu à redação da Voz do Distrito.

Agostinho, estirado no canapé, com a vela ao pé sobre uma cadeira, saboreava os jornais de Lisboa. A face descomposta de João Eduardo assustou-o.

— Que é?

— É que me perdeste, maroto!

E de um só fôlego acusou furiosamente o corcunda de o ter traído.

Agostinho erguera-se devagar, procurando sem perturbação a bolsa do tabaco na algibeira da jaqueta.

— Homem, disse, nada de espalhafatos... Eu dou-te a minha palavra de honra que não disse a ninguém do Comunicado. É verdade que ninguém me perguntou...

— Mas quem foi, então? gritou o escrevente.

Agostinho enterrou a cabeça nos ombros.

— Eu o que sei é que os padres andavam numa azáfama para saber quem era. O Natário esteve aí uma manhã, por causa do anúncio de uma viúva que recorre à caridade pública, mas do Comunicado não se disse nem palavra... O doutor Godinho é que sabia, entende-te com ele! Mas então fizeram-te alguma?

— Mataram-me! disse João Eduardo lugubremente.

Ficou um momento a fixar o soalho, aniquilado, e saiu arremessando a porta. Passeou na Praça; foi ao acaso pelas ruas; depois, atraído pela obscuridade, à estrada de Marrazes. Abafava, sentindo uma intolerável palpitação surda latejar-lhe interiormente contra as fontes; apesar de ventar forte nos campos, parecia-lhe seguir um silêncio universal; por vezes a idéia da sua desgraça rasgava-lhe subitamente o coração, e então imaginava ver toda a paisagem oscilar e o chão da estrada afigurava-se-lhe mole como um lamaçal. Voltou pela Sé quando batiam onze horas; e achou-se na Rua da Misericórdia, com o olhar cravado para a janela da sala de jantar, onde havia ainda luz; a vidraça do quarto de Amélia alumiou-se também; ela ia deitar-se, decerto... Veio-lhe um desejo furioso da sua beleza, do seu corpo, dos seus beijos. Fugiu para casa; uma fadiga intolerável prostrou-o sobre a cama; depois uma saudade indefinida, profunda, foi-o amolecendo, e chorou muito tempo, enternecendo-se mais com o som dos seus próprios soluços, - até que ficou adormecido, de bruços, numa massa inerte.



Ao outro dia, cedo, Amélia vinha da Rua da Misericórdia para a Praça, quando ao pé do Arco, João Eduardo lhe saiu de emboscada.

— Quero falar-lhe, menina Amélia.

Ela recuou assustada, disse a tremer:

— Não tem que me falar...

Mas ele plantara-se diante dela, muito decidido, com os olhos vermelhos como carvões:

— Quero-lhe dizer... Lá do artigo, é verdade, fui eu que o escrevi, foi uma desgraça; mas a menina tinha-me ralado de ciúmes... Mas o que a menina diz de maus costumes é uma calúnia. Eu sempre fui um homem de bem...

— O Sr. padre Amaro é que o conhece! Faz favor de me deixar passar...

Ao nome do pároco, João Eduardo fez-se lívido de raiva:

— Ah! é o Sr. padre Amaro! É o maroto do padre! Pois veremos Ouça...

— Faz favor de me deixar passar! disse ela irritada, tão alto, que um sujeito gordo de xale-manta parou olhando.

João Eduardo recuou, tirando o chapéu; e ela, imediatamente, refugiou-se na loja do Fernandes.

Então, num desespero, correu a casa do doutor Godinho. Já na véspera, por entre os seus acessos de choro, sentindo-se tão abandonado, se lembrara do doutor Godinho. Fora outrora seu escrevente; e como por pedido dele entrara no cartório do Nunes Ferral, e por sua influência ia ser acomodado no governo civil, julgava-o uma Providência pródiga e inesgotável! Demais, desde que escrevera o Comunicado considerava-se da redação da Voz do Distrito, do grupo da Maia; agora, que era atacado pelos padres, devia claramente ir acolher-se à forte proteção do seu chefe, do doutor Godinho, do inimigo da reação, o "Cavour de Leiria", como dizia, arregalando os olhos, o bacharel Azevedo, autor dos Ferrões! - E João Eduardo, dirigindo-se ao casarão amarelo, ao pé do Terreiro onde o doutor vivia, ia num alvoroço de esperanças, contente em se refugiar, como um cão escorraçado, entre as pernas daquele colosso!

O doutor Godinho descera já ao escritório, e repoltreado na sua poltrona abacial de pregos amarelos, com os olhos no teto de carvalho escuro, acabava com beatitude o charuto do almoço. Recebeu com majestade os "bons-dias" de João Eduardo.

— E então que temos, amigo?

As altas estantes de in-fólios graves, as resmas de autos, o aparatoso painel representando o marquês de Pombal, de pé num terraço sobre o Tejo, expulsando com o dedo a esquadra inglesa - acanharam como sempre João Eduardo; e foi com voz embaraçada que disse vinha ali para que sua excelência lhe desse remédio numa desgraça que lhe sucedia.

— Desordens, bordoada?

— Não, senhor, negócios de família.

Contou então, prolixamente, a sua história desde a publicação do Comunicado; leu, muito comovido, a carta de Amélia; descreveu a cena ao pé do Arco... Ali estava agora, escorraçado da Rua da Misericórdia por obras do senhor pároco! E parecia-lhe a ele, apesar de não ser formado em Coimbra, que contra um padre que se introduzia numa família, desinquietava uma menina simples, levava por intrigas a romper com o noivo e ficava de portas adentro senhor dela - devia haver leis!

— Eu não sei, senhor doutor, mas deve haver leis!

O doutor Godinho parecia contrariado.

— Leis! exclamou traçando vivamente a perna. Que leis quer você que haja? Quer querelar do pároco?... Por quê? Ele bateu-lhe? Roubou- lhe o relógio? Insultou-o pela imprensa? Não. Então?...

— Oh, senhor doutor, mas intrigou-me com as senhoras! Eu nunca fui homem de maus costumes, senhor doutor! Caluniou-me!

— Tem testemunhas?

— Não, senhor.

— Então?

E o doutor Godinho, assentando os cotovelos sobre a banca, declarou que, como advogado, não tinha nada a fazer. Os tribunais não tomavam conhecimento dessas questões, desses dramas morais por assim dizer, que se passavam nas alcovas domésticas... Como homem, como particular, como Alípio de Vasconcelos Godinho, também não podia intervir porque não conhecia o Sr. padre Amaro, nem essas senhoras da Rua da Misericórdia... Lamentava o fato, porque enfim fora novo, sentira a poesia da mocidade, e sabia (infelizmente sabia!) o que eram esses transes do coração... E ai está tudo o que ele podia fazer - lamentar! Também para que tinha ele dado a sua afeição a uma beata?...

João Eduardo interrompeu-o:

— A culpa não é dela, senhor doutor! A culpa é do padre que a anda a desencaminhar! A culpa é dessa canalha do cabido!

O doutor Godinho estendeu com severidade a mão, e aconselhou o Sr. João Eduardo que tivesse cuidado com semelhantes asserções! Nada provava que o senhor pároco possuísse nessa casa outra influência, que não fosse a dum hábil diretor espiritual... E recomendava ao Sr. João Eduardo, com a autoridade que lhe davam os anos e a sua posição no pais, que não fosse espalhar, por despeito, acusações que só serviam para destruir o prestigio do sacerdócio, indispensável numa sociedade bem constituída! - Sem ele, tudo seria anarquia e orgia!

E recostou-se, pensando, satisfeito, que estava nessa manhã com "o dom da palavra".

Mas a face consternada do escrevente, que não se movia, de pé junto da banca, impacientava-o; e disse com secura, puxando para diante de si um volume de autos:

— Enfim, acabemos, que quer o amigo? Já vê, eu não lhe posso dar remédio.

João Eduardo replicou, com um movimento de coragem desesperada:

— Eu imaginei que o senhor doutor podia fazer alguma coisa por mim... Porque enfim eu fui uma vitima... Tudo isto vem de se saber que eu escrevi o Comunicado. E tinha-se combinado que havia de ser segredo. O Agostinho não disse, só o senhor doutor o sabia...

O doutor pulou de indignação na sua cadeira abacial:

— Que quer o senhor insinuar? Quer-me dar a entender que fui eu que o disse? Não disse... Isto é, disse; disse-o a minha mulher, porque numa família bem constituída não deve haver segredos entre esposo e esposa. Ela perguntou-me, disse-lho... Mas suponhamos que fui eu que o espalhei pelas ruas. De duas uma: ou o Comunicado era uma calúnia, e então sou eu que devo acusá-lo de ter poluído um jornal honrado com um acervo de difamações; ou era verdade, e então que homem é o senhor que se envergonha das verdades que solta e que não se atreve a manter á luz do dia as opiniões que redigiu na escuridão da noite?

Duas lágrimas enevoaram os olhos de João Eduardo. Então, diante daquela expressão esmorecida, satisfeito de o ter esmagado com uma argumentação tão lógica e tão poderosa, o doutor Godinho abrandou:

— Bem, não nos zanguemos, disse. Não se fala mais em pontos de honra... O que pode acreditar é que lamento o seu desgosto.

Deu-lhe conselhos duma solicitude paternal. Que não sucumbisse; havia mais meninas em Leiria e meninas de bons princípios que não viviam sob a direção da sotaina. Que fosse forte, e que se consolasse pensando que ele, doutor Godinho - e era ele! - também tivera em moço desgostos do coração. Que evitasse o domínio das paixões que lhe seria prejudicial na carreira pública. E que se o não fizesse por seu interesse próprio, o fizesse ao menos em atenção a ele, doutor Godinho!

João Eduardo saiu do escritório, indignado, julgando-se traído pelo doutor.

— Isto sucede-me a mim, resmungava, porque sou um pobre-diabo, não dou votos nas eleições, não vou às soirées do Novais, não subscrevo para o clube. Ah, que mundo! Se eu tivesse um par de contos de réis!...

Veio-lhe então um desejo furioso de se vingar dos padres, dos ricos, e da religião que os justifica. Voltou muito decidido ao escritório, e entreabrindo a porta:

— Vossa excelência ao menos agora dá licença que eu desabafe no jornal?... Queria contar esta maroteira, cascar nessa canalha...

Esta audácia do escrevente indignou o doutor. Endireitou-se com severidade na poltrona, e cruzando terrivelmente os braços:

— O Sr. João Eduardo está realmente a abusar! Pois o senhor vem- me pedir que transforme um jornal de idéias num jornal de difamações? Vá, não se prenda! Pede-me que insulte os princípios da religião, que achincalhe o Redentor, que repita as baboseiras de Renan, que ataque as leis fundamentais do Estado, que injurie o rei, que vitupere a instituição da família! O senhor está ébrio.

— Oh, senhor doutor!

— O senhor está ébrio! Cuidado, meu caro amigo, cuidado, olhe que vai por um declive! É por esse caminho que se chega a perder o respeito da autoridade, da lei, das coisas santas e do lar. É por esse caminho que se vai ao crime! Escusa de arregalar os olhos... Ao crime, digo-lho eu! Tenho a experiência de vinte anos de foro. Homem, detenha-se! Refreie essas paixões. Safa! Que idade tem o senhor?

— Vinte e seis anos.

— Pois não há desculpa para um homem de vinte e seis anos ter essas idéias subversivas. Adeus, feche a porta. E escute. Escusa de pensar em mandar outro Comunicado para outro qualquer jornal. Não lho consinto, eu que o tenho protegido sempre! Havia de querer fazer espalhafato... Escusa de negar, estou-lho a ler nos olhos. Pois não lho consinto! É para seu bem, para lhe poupar uma má ação social!

Tomou uma grande atitude na poltrona, repetiu com força:

— Uma péssima ação social! Aonde nos querem os senhores levar com os seus materialismo, os seus ateísmos? Quando tiverem dado cabo da religião de nossos pais, que têm os senhores para a substituir? Que têm? Mostre lá!

A expressão embaraçada de João Eduardo (que não tinha ali, para a mostrar, um religião que substituísse a de nossos pais) fez triunfar o doutor.

— Não têm nada! Têm lama, quando muito têm palavreado! Mas enquanto eu for vivo, pelo menos em Leiria, há-de ser respeitada a Fé e o principio da Ordem! Podem pôr a Europa a fogo e sangue, em Leiria não hão-de erguer cabeça. Em Leiria estou eu alerta, e juro que lhes hei-de ser funesto!

João Eduardo recebia de ombros vergados estas ameaças, sem as compreender. Como podia o seu Comunicado e as intrigas da Rua da Misericórdia produzirem assim catástrofes sociais e revoluções religiosas? Tanta severidade aniquilava-o. Ia perder decerto a amizade do doutor, o emprego no governo civil... Quis abrandá-lo:

— Oh, senhor doutor, mas vossa excelência bem vê...

O doutor interrompeu-o com um grande gesto:

— Eu vejo perfeitamente. Vejo que as paixões, a vingança o vão levando por um caminho fatal... O que espero é que os meus conselhos o detenham. Bem, adeus. Feche a porta. Feche a porta, homem!

João Eduardo saiu acabrunhado. Que havia de fazer agora? O doutor Godinho, aquele colosso, repelia-o com palavras tremendas! E que podia ele, pobre escrevente de cartório, contra o padre Amaro que tinha por si o clero, o chantre, o cabido, os bispos, o papa, classe solidária e compacta que lhe aparecia como uma medonha cidadela de bronze erguendo- se até ao céu! Eram eles que tinham causado a resolução de Amélia, a sua carta, a dureza das suas palavras. Era uma intriga de párocos, cônegos e beatas. Se ele pudesse arrancá-la àquela influência, ela tomaria a ser bem depressa a sua Ameliazinha que lhe bordava chinelas, e que vinha toda corada vê-lo passar à janela! As suspeitas que outrora tivera tinham-se desvanecido naqueles serões felizes, depois de decidido o casamento, quando ela, costurando junto do candeeiro, falava da mobília que havia de comprar e dos arranjos da sua casinha. Ela amava-o, decerto... Mas quê, tinham- lhe dito que ele era o autor do Comunicado, que era herege, que tinha costumes devassos; o pároco, na sua voz pedante, ameaçara-a com o Inferno; o cônego, furioso, e todo-poderoso na Rua da Misericórdia porque dava para a panela, falara teso - e a pobre menina, assustada, dominada, com aquele bando tenebroso de padres e de beatas a cochicharem-lhe ao ouvido, coitada, cedera! Estava talvez persuadida, de boa-fé, que ele era uma fera! E àquela hora, enquanto ele ali andava pelas ruas, escorraçado e desgraçado, o padre Amaro, na saleta da Rua da Misericórdia, enterrado na poltrona, senhor da casa e senhor da rapariga, de pema traçada, palrava de alto! Canalha! E não haver leis que o vingassem! E não poder sequer "fazer escândalo", agora que a Voz do Distrito se lhe tomava inacessível!

Vinham-lhe então desejos furiosos de demolir o pároco aos murros, com a força do padre Brito. Mas o que o satisfaria mais seriam artigos tremendos num jornal, que revelassem as intrigas da Rua da Misericórdia, amotinassem a opinião, caíssem sobre o padre como catástrofes, o forçassem a ele, ao cônego e aos outros a desaparecerem corridos da casa da S. Joaneira! Ah! estava certo que a Ameliazinha, livre daqueles galfarros, correria logo aos seus braços, com lágrimas de reconciliação...

Procurava assim à força convencer-se que "a culpa não era dela"; recordava os meses de felicidade antes da chegada do pároco; arranjava explicações naturais para aquelas maneirinhas ternas que ela outrora tinha para o padre Amaro, e que lhe tinham dado ciúmes desesperados: era o desejo, coitada, de ser agradável ao hóspede, ao amigo do senhor cônego, de o reter para vantagem da mãe e da casa! E além disso, como ela andava contente depois de resolvido o casamento! A sua indignação contra o Comunicado, estava certo, não era natural dela - vinha-lhe soprada pelo pároco e belas beatas. E achava uma consolação nesta idéia que não era repelido como namorado, como marido - mas que era uma vítima das intrigas do torpe padre Amaro, que lhe desejava a noiva e que o odiava como liberal! Isto acumulava-lhe na alma um rancor desordenado contra o padre; descendo a rua procurava ansiosamente uma vingança, atirando a imaginação, aqui e além - mas vinha-lhe sempre a mesma idéia, o artigo do jornal, a verrina, a imprensa! A certeza da sua fraqueza desprotegida revoltava-o. Ah, se tivesse por si um figurão!

Um homem do campo, amarelo como uma cidra, que ia caminhando devagar, com o braço ao peito, deteve-o a perguntar-lhe onde morava o doutor Gouveia.

— Na primeira rua, à esquerda, o portão verde ao pé do lampião, disse João Eduardo.

E uma esperança imensa alumiou-lhe bruscamente a alma: o doutor Gouveia é que o podia salvar! O doutor era seu amigo; tratava-o por tu desde que o curara havia três anos da pneumonia; aprovava muito o seu casamento com Amélia; havia ainda semanas perguntara-lhe ao pé da Praça: - "Então, quando se faz essa rapariga feliz?" E que respeitado, que temido na Rua da Misericórdia! Era médico de todas as amigas da casa que, apesar de se escandalizarem com a sua irreligião, dependiam humildemente da sua ciência para os achaques, os flatos, os xaropes. Além disso, o doutor Gouveia, inimigo decidido da padraria, decerto se ia indignar com aquela intriga beata: e João Eduardo via-se já entrando na Rua da Misericórdia atrás do doutor Gouveia, que repreendia a S. Joaneira, arrasava o padre Amaro, convencia as velhas, - e a sua felicidade recomeçava, inabalável agora!

— O senhor doutor está? perguntou ele quase alegre, à criada que no pátio estendia a roupa ao sol.

— Está na consulta, Sr. Joãozinho, faça favor de entrar.

Em dias de mercado os doentes do campo afluíam sempre. Mas àquela hora - quando os vizinhos das freguesias se reúnem nas tabernas - havia só um velho, uma mulher com uma criança ao colo e o homem do braço ao peito, esperando numa saleta baixa com bancos, dois manjericões na janela e uma grande gravura da Coroação da Rainha Vitória. Apesar do sol claro que entrava no pátio, e de uma fresca folhagem de tília que roçava o peitoril da janela, a saleta dava tristeza, como se as paredes, os bancos, os mesmos manjericões estivessem saturados da melancolia das doenças que ali tinham passado. João Eduardo entrou e sentou-se a um canto.

Tinha batido meio-dia, e a mulher estava-se queixando de ter esperado tanto: era de uma freguesia distante; deixara no mercado a irmã, e havia uma hora que o senhor doutor estava com duas senhoras! A cada momento a criança rabujava, ela sacudia-a nos braços: calavam-se depois: o velho arregaçava a calça, contemplava com satisfação uma chaga na canela envolta em trapos: e o outro homem dava bocejos desconsolados que tomavam mais lúgubre a sua longa face amarela. Aquela demora enervava, amolecia o escrevente; sentia perder gradualmente o ânimo de ocupar o doutor Gouveia; preparava laboriosamente a sua história, mas ela parecia-lhe agora bem insuficiente para o interessar. Vinha-lhe então um desalento, que as faces insípidas dos doentes tomavam ainda mais intenso. Positivamente era uma coisa bem triste esta vida, cheia só de misérias, de sentimentos traídos, de aflições, de doenças! Erguia-se; e com as mãos atrás das costas ia olhar desconsoladamente a Coroação da Rainha Vitória.

De vez em quando a mulher entreabria a porta, a espreitar se as duas senhoras ainda lá estariam. Lá estavam; e através do batente de baeta verde, que fechava o gabinete do doutor, sentia-se as suas vozes pachorrentas palrarem.

— Em caindo aqui, é dia perdido! rosnava o velho.

Também ele deixara a cavalgadura à porta do Fumaça, e a rapariga na Praça... E o que teria a esperar na botica, depois! Com três léguas ainda a fazer para voltar à freguesia!... Ser doente é bom, mas para quem é rico e tem vagares!

A idéia da doença, da solidão que ela traz, faziam agora parecer a João Eduardo mais amarga a perda de Amélia. Se adoecesse, teria de ir para o hospital. O malvado do padre tirara-lhe tudo - mulher, felicidade, confortos de família, doces companhias da vida!

Enfim, sentiram no corredor as duas senhoras que saíam. A mulher com a criança apanhou o seu cabaz, precipitou-se. E o velho, apoderando- se logo do banco junto da porta, disse com satisfação:

— Agora cá o patrão!

— Vossemecê tem muito que consultar? perguntou-lhe João Eduardo.

— Não senhor, é só receber a receita.

E imediatamente contou a história da sua chaga: fora uma trave que lhe caíra em cima; não fizera caso; depois a ferida assanhara-se; e agora ali estava, manco e curtidinho de dores.

— E vossa senhoria, é coisa de cuidado? perguntou ele.

— Eu não estou doente, disse o escrevente. São negócios com o senhor doutor.

Os dois homens olharam-se com inveja.

Enfim foi a vez do velho, depois a do homem amarelo de braço ao peito. João Eduardo, só, passeava nervoso pela saleta. Parecia-lhe agora muito difícil ir assim, sem cerimônia, pedir proteção ao doutor. Com que direito?... Lembrou-se de se queixar primeiro de dores do peito ou desarranjos do estômago, e depois, incidentalmente, contar os seus infortúnios...

Mas a porta abriu-se. O doutor estava diante dele, com sua longa barba grisalha que lhe caía sobre a quinzena de veludo preto, o largo chapéu desabado na cabeça, calçando as luvas de fio de Escócia.

— Olá! és tu, rapaz! Há novidade na Rua da Misericórdia? João Eduardo corou.

— Não senhor, senhor doutor, queria falar-lhe em particular.

Seguiu-o ao gabinete - o conhecido gabinete do doutor Gouveia que, com o seu caos de livros, o seu tom poeirento, uma panóplia de flechas selvagens e duas cegonhas empalhadas, tinha na cidade a reputação duma "Cela de Alquimista".

O doutor puxou o seu cebolão.

— Um quarto para as duas. Sê breve.

A face do escrevente exprimiu o embaraço de condensar uma narração tão complicada.

— Está bom, disse o doutor, explica-te como puderes. Não há nada mais difícil que ser claro e breve; é necessário ter gênio. Que é?

João Eduardo então tartamudeou a sua história, insistindo sobretudo na perfídia do padre, exagerando a inocência de Amélia...

O doutor escutava-o, cofiando a barba.

— Vejo o que é. Tu e o padre, disse ele, quereis ambos a rapariga. Como ele é o mais esperto e o mais decidido, apanhou-a ele. É lei natural: o mais forte despoja, elimina o mais fraco; a fêmea e a presa pertencem-lhe.

Aquilo pareceu a João Eduardo um gracejo. Disse, com a voz perturbada:

— Vossa excelência está a caçoar, senhor doutor, mas a mim retalhasse-me o coração!

— Homem, acudiu o doutor com bondade, estou a filosofar, não estou a caçoar... Mas enfim, que queres tu que eu te faça?

Era o que o doutor Godinho lhe tinha dito, também, com mais pompa!

— Eu tenho a certeza que se vossa excelência lhe falasse...

O doutor sorriu:

— Eu posso receitar à rapariga este ou aquele xarope, mas não lhe posso impor este ou aquele homem! Queres que lhe vá dizer: "A menina há-de preferir aqui o Sr. João Eduardo?" Queres que vá dizer ao padre, um maganão que eu nunca vi: "O senhor faz favor de não seduzir esta menina?"

— Mas caluniaram-me, senhor doutor, apresentaram-me como um homem de maus costumes, um patife...

— Não, não te caluniaram. Sob o ponto de vista do padre e daquelas senhoras que jogam a noite o quino na Rua da Misericórdia, tu és um patife: um cristão que nos periódicos vitupera abades, cônegos, curas, personagens tão importantes para se comunicar com Deus e para se salvar a alma, é um patife. Não te caluniaram, amigo!

— Mas, senhor doutor...

— Escuta. E a rapariga, descartando-se de ti em obediências às instruções do senhor padre fulano ou sicrano, comporta-se como uma boa católica. É o que te digo. Toda a vida do bom católico, os seus pensamentos, as sua idéias, os seus sentimentos, as suas palavras, o emprego dos seus dias e das suas noites, as sua relações de família e de vizinhança, os pratos do seu jantar, o seu vestuário e os seus divertimentos - tudo isto é regulado pela autoridade eclesiástica (abade, bispo ou cônego), aprovado ou censurado pelo confessor, aconselhado e ordenado pelo diretor da consciência. O bom católico, como a tua pequena, não se pertence; não tem razão, nem vontade, nem arbítrio, nem sentir próprio; o seu cura pensa, quer, determina, sente por ela. O seu único trabalho neste mundo, que é ao mesmo tempo o seu único direito e o seu único dever, é aceitar esta direção; aceitá-la sem a discutir; obedecer-lhe, dê por onde der; se ela contraria as suas idéias, deve pensar que as suas idéias são falsas; se ela fere as suas afeições, deve pensar que as suas afeições são culpadas. Dado isto, se o padre disse à pequena que não devia nem casar, nem sequer falar contigo, a criatura prova, obedecendo-lhe, que é uma boa católica, uma devota consequente, e que segue na vida, logicamente, a regra moral que escolheu. Aqui está, e desculpa o sermão.

João Eduardo ouvia com respeito, com espanto estas frases, a que a face plácida, a bela barba grisalha do doutor davam uma autoridade maior. Parecia-lhe agora quase impossível recuperar Amélia, se ela pertencia assim tão absolutamente, alma e sentidos, ao padre que a confessava. Mas enfim, por que era ele considerado um marido prejudicial?

— Eu compreenderia, disse ele, se fosse um homem de maus costumes, senhor doutor. Mas eu porto-me bem. Eu não faço senão trabalhar. Eu não frequento tabernas, nem troças. Eu não bebo, eu não jogo. As minhas noites passo-as na Rua da Misericórdia, ou em casa a fazer serão para o cartório...

— Meu rapaz, tu podes ter socialmente todas as virtudes; mas, segundo a religião de nossos pais, todas as virtudes que não são católicas são inúteis e perniciosas. Ser trabalhador, casto, honrado, justo, verdadeiro, são grandes virtudes; mas para os padres e para a Igreja não contam. Se tu fores um modelo de bondade mas não fores à missa, não jejuares, não te confessares, não te desbarretares para o senhor cura - és simplesmente um maroto. Outros personagens maiores que tu, cuja alma foi perfeita e cuja regra de vida foi impecável, têm sido julgados verdadeiros canalhas, porque não foram batizados antes de terem sido perfeitos. Hás-de ter ouvido falar de Sócrates, dum outro chamado Platão, de Catão, etc... Foram sujeitos famosos pelas suas virtudes. Pois um certo Bossuet, que é o grande chavão da doutrina, disse que das virtudes desses homens estava cheio o Inferno... Isto prova que a moral católica é diferente da moral natural e da moral social... Mas são coisas que tu compreendes mal... Queres tu um exemplo? Eu sou, segundo a doutrina católica, um dos grandes desavergonhados que passeiam as ruas da cidade; e o meu vizinho Peixoto, que matou a mulher com pancadas e que vai dando cabo pelo mesmo processo de uma filhita de dez anos, é entre o clero um homem excelente, porque cumpre os seus deveres de devoto e toca figle nas missas cantadas. Enfim, amigo, estas coisas são assim. E parece que são boas, porque há milhares de pessoas respeitáveis que as consideram boas, o Estado mantém-nas, gasta até um dinheirão para as manter, obriga-nos mesmo a respeitá-las, - e eu, que estou aqui a falar, pago todos os anos um quartinho para que elas continuem a ser assim. Tu naturalmente pagas menos...

— Pago sete vinténs, senhor doutor.

— Mas enfim vais às festas, ouves música, sermão, desforras-te dos teus sete vinténs. Eu, o meu quartinho perco-o; consolo-me apenas com a idéia de que vai ajudar a manter o esplendor da Igreja - da Igreja que em vida me considera um bandido, e que para depois de morto me tem preparado um inferno de primeira classe. Enfim, parece-me que temos cavaqueado bastante... Que queres mais?

João Eduardo estava acabrunhado. Agora que escutava o doutor, parecia-lhe, mais que nunca, que se um homem de palavras tão sábias, de tantas idéias, se interessasse por ele, toda a intriga seria facilmente desfeita e a sua felicidade, o seu lugar na Rua da Misericórdia recobrados para sempre.

— Então vossa excelência não pode fazer nada por mim? disse muito desconsolado.

— Eu posso talvez curar-te de outra pneumonia. Tens outra pneumonia a curar? Não? Então...

João Eduardo suspirou:

— Sou uma vítima, senhor doutor!

— Fazes mal. Não deve haver vítimas, quando não seja senão para impedir que haja tiranos - disse o doutor, pondo o seu largo chapéu desabado.

— Porque no fim de tudo, exclamou ainda João Eduardo que se prendia ao doutor com uma sofreguidão de afogado, no fim de tudo o que o patife do pároco quer, com todos os seus pretextos, é a rapariga! Se ela fosse um camafeu, bem se importava o maroto que eu fosse um ímpio ou não! O que ele quer é a rapariga!

O doutor encolheu os ombros.

— É natural, coitado - disse, já com a mão no fecho da porta. Que queres tu? Ele tem para as mulheres, como homem, paixões e órgãos; como confessor, a importância dum Deus. É evidente que há-de utilizar essa importância para satisfazer essas paixões; e que há de cobrir essa satisfação natural com as aparências e com os pretextos do serviço divino... É natural.

João Eduardo então, vendo-o abrir a porta, desvanecer-se a esperança que o trouxera ali, furioso, vergastando o ar com o chapéu:

— Canalha de padres! Foi raça que sempre detestei! Queria-a ver varrida da face da Terra, senhor doutor!

— Isso é outra tolice, disse o doutor, resignando-se a escutá-lo ainda, e parando à porta do quarto. Ouve lá. Tu crês em Deus? No Deus do Céu, no Deus que lá está no alto do Céu, e que é lá de cima o princípio de toda a justiça e de toda a verdade?

João Eduardo, surpreendido, disse:

— Eu creio, sim senhor.

— E no pecado original?

— Também...

— Na vida futura, na redenção, etc.?

— Fui educado nessas crenças...

— Então para que queres varrer os padres da face da Terra? Deves pelo contrário ainda achar que são poucos. És um liberal racionalista nos limites da Carta, ao que vejo... Mas se crês no Deus do Céu, que nos dirige lá de cima, e no pecado original, e na vida futura, precisas duma classe de sacerdotes que te expliquem a doutrina e a moral revelada de Deus, que te ajudem a purificar da mácula original e te preparem o teu lugar no Paraíso! Tu necessitas dos padres. E parece-me mesmo uma terrível falta de lógica que os desacredites pela imprensa...

João Eduardo, atônito, balbuciou:

— Mas vossa excelência, senhor doutor... Desculpe-me vossa excelência, mas...

— Dize, homem. Eu quê?

— Vossa excelência não precisa dos padres neste mundo...

— Nem no outro. Eu não preciso dos padres no mundo, porque não preciso do Deus do Céu. Isto quer dizer, meu rapaz, que tenho o meu Deus dentro de mim, isto é, o princípio que dirige as minhas ações e os meus juízos. Vulgo Consciência... Talvez não compreendas bem... O fato é que estou aqui a expor doutrinas subversivas... E realmente são três horas...

E mostrou-lhe o cebolão.

À porta do pátio, João Eduardo disse-lhe ainda:

— Vossa excelência então desculpe, senhor doutor...

— Não há de quê... Manda a Rua da Misericórdia ao diabo!

João Eduardo interrompeu com calor:

— Isso é bom de dizer, senhor doutor, mas quando a paixão está a roer cá por dentro!...

— Ah! fez o doutor, é uma bela e grande coisa a paixão! O amor é uma das grandes forças da civilização. Bem dirigida levanta um mundo e bastava para nos fazer a revolução moral... - E mudando de tom: - Mas escuta. Olha que isso às vezes não é paixão, não está no coração... O coração é ordinariamente um termo de que nos servimos, por decência, para designar outro órgão. É precisamente esse órgão o único que está interessado, a maior parte das vezes, em questões de sentimento. E nesses casos o desgosto não dura. Adeus, estimo que seja isso!