Nos fins de Maio de 1871 havia grande alvoroço na Casa Havanesa, ao Chiado, em Lisboa. Pessoas esbaforidas chegavam, rompiam pelos grupos que atulhavam a porta, e alçando-se em bicos de pés esticavam o pescoço, por entre a massa dos chapéus, para a grade do balcão, onde numa tabuleta suspensa se colavam os telegramas da Agência Havas; sujeitos de faces espantadas saíam consternados, exclamando logo para algum amigo mais pacato que os esperava fora:
— Tudo perdido! Tudo a arder!
Dentro, na multidão de grulhas que se apertava contra o balcão, questionava-se forte; e pelo passeio, no Largo do Loreto, defronte ao pé do estanco, pelo Chiado até ao Magalhães, era, por aquele dia já quente do começo de Verão, toda uma gralhada de vozes impressionadas onde as palavras - Comunistas! Versalhes! Petroleiros! Thiers! Crime! Internaciona1! voltavam a cada momento, lançadas com furor, entre o ruído das tipóias e os pregões dos garotos gritando suplementos.
Com efeito, a cada hora, chegavam telegramas anunciando os episódios sucessivos da insurreição batalhando nas ruas de Paris: telegramas despedidos de Versalhes num terror dizendo os palácios que ardiam, as ruas que se aluíam; fuzilamentos em massa nos pátios dos quartéis e entre os mausoléus dos cemitérios; a vingança que ia saciar-se até à escuridão dos esgotos; a fatal demência que desvairava as fardas e as blusas; e a resistência que tinha o furor duma agonia com os métodos duma ciência, e fazia saltar uma velha sociedade pelo petróleo, pela dinamite e pela nitroglicerina! Uma convulsão, um fim do mundo - que vinte, trinta palavras de repente mostravam, num relance, a um clarão de fogueira.
O Chiado lamentava com indignação aquela ruína de Paris. Recordavam-se com exclamações os edifícios ardidos, o Hotel de Ville, "tão bonito", a Rua Royale, "aquela riqueza". Havia indivíduos tão furiosos com o incêndio das Tulherias como se fosse uma propriedade sua; os que tinham estado em Paris um ou dois meses abriam-se em invectivas, arrogando-se uma participação de parisienses na riqueza da cidade, escandalizados por a insurreição não ter respeitado os monumentos em que eles tinham posto os seus olhos.
— Vejam vocês! exclamava um sujeito gordo. O palácio da Legião de Honra destruído! Ainda não há um mês que eu lá estive com minha mulher... Que infâmia! Que patifaria!
Mas espalhara-se que o ministério recebera outro telegrama mais desolador: toda a linha do boulevard da Bastilha à Madalena ardia, e ainda a Praça da Concórdia, e as avenidas dos Campos Elísios até ao Arco do Triunfo. E assim tinha a revolta arrasado, numa demência, todo aquele sistema de restaurantes, cafés-concertos, bailes públicos, casas de jogo e ninhos de prostitutas! Então houve por todo o Largo do Loreto até ao Magalhães um estremecimento de furor. Tinham pois as chamas aniquilado toda aquela centralização tão cômoda da patuscada! Oh que infâmia! O mundo acabava! Onde se comeria melhor que em Paris? Onde se encontrariam mulheres mais experientes? Onde se tornaria a ver aquele desfilar prodigioso duma volta do Bois, nos dias ásperos e secos de Inverno, quando as vitórias das cocottes resplandeciam ao pé dos fáetons dos agentes da Bolsa? Que abominação! Esqueciam-se as bibliotecas e os museus: mas a saudade era sincera pela destruição dos cafés e pelo incêndio dos lupanares. Era o fim de Paris, era o fim da França!
Num grupo ao pé da Casa Havanesa os questionadores politicavam: pronunciava-se o nome de Proudhon que, por esse tempo, se começava a citar vagamente em Lisboa como um monstro sanguinolento; e as invectivas rompiam contra Proudhon. A maior parte imaginava que era ele que tinha incendiado. Mas o poeta estimado das Flores e Ais acudiu dizendo "que, à parte as asneiras que Proudhon dizia, era ainda assim um estilista bastante ameno". Então o jogador França berrou:
— Qual estilo, qual cabaça! Se aqui o pilhasse no Chiado rachava-lhe os ossos!
E rachava. Depois do conhaque o França era uma fera.
Alguns moços, porém, a quem o elemento dramático da catástrofe revolvia o instinto romântico, aplaudiam a heroicidade da Comuna - Vermorel abrindo os braços como o Crucificado, e sob as balas que o traspassavam gritando: Viva a humanidade! O velho Delecluze, com um fanatismo de santo, ditando do seu leito de agonia as violências da resistência...
— São grandes homens! exclamava um rapaz exaltado.
Em redor as pessoas graves rugiam. Outras afastavam-se pálidas, vendo já as suas casas na Baixa a escorrer de petróleo e a mesma Casa Havanesa presa de chamas socialistas. Então era em todos os grupos um furor de autoridade e repressão: era necessário que a sociedade, atacada pela Internacional, se refugiasse na força dos seus príncipes conservadores e religiosos, cercando-os bem de baionetas! Burgueses com tendas de capelistas falavam da "canalha" com o desdém imponente dum La Tremouille ou dum Ossuna. Sujeitos, palitando os dentes, decretavam a vingança. Vadios pareciam furiosos "contra o operário que quer viver como príncipe". Falava-se com devoção na propriedade, no capital!
Doutro lado eram moços verbosos, localistas excitados que declaravam contra o velho mundo, a velha idéia, ameaçando-os de alto, propondo-se a derruí-los em artigos tremendos.
E assim uma burguesia entorpecida esperava deter, com alguns polícias, uma evolução social: e uma mocidade, envernizada de literatura, decidia destruir num folhetim uma sociedade de dezoito séculos. Mas ninguém se mostrava mais exaltado que um guarda-livros de hotel, que do alto do degrau da Casa Havanesa brandia a bengala, aconselhando à França a restauração dos Bourbons.
Então um homem vestido de preto, que saíra do estanco e atravessava por entre os grupos, parou, sentindo uma voz espantada que exclamava ao lado:
— Ó padre Amaro! Ó maganão!
Voltou-se: era o cônego Dias. Abraçaram-se com veemência, e para conversarem mais tranquilamente foram andando até ao Largo de Camões, e ali pararam, junto à estátua:
— Então você quando chegou, padre-mestre?
Tinha chegado na véspera. Trazia uma demanda com os Pimentas da Pojeira por causa duma servidão na quinta, tinha apelado para a Relação, e vinha seguir de perto a questão na capital.
— E você, Amaro? Na última carta dizia-me que tinha vontade de sair de Santo Tirso.
Era verdade. A paróquia tinha vantagens; mas vagara Vila Franca, e ele, para estar mais perto da capital, viera falar com o Sr. conde de Ribamar, o seu conde, que lá andava obtendo a transferência. Devia-lhe tudo, sobretudo à senhora condessa!
— E de Leiria? A S. Joaneira, vai melhor?
— Não, coitada... Você sabe; ao princípio tivemos um susto dos diabos... Pensávamos que lhe ia suceder como à Amélia. Mas não, era hidropisia... E ali o que há é anasarca...
— Coitada, santa senhora! E o Natário?
— Avelhado! Tem tido os seus desgostos. Muita língua.
— E diga lá, padre-mestre, o Libaninho?
— Eu escrevi-lhe a esse respeito, disse o cônego rindo.
O padre Amaro riu também: e durante um momento os dois sacerdotes pararam, apertando as ilhargas.
— Pois é verdade, disse o cônego. A coisa tinha sido realmente escandalosa... Porque enfim, repare o amigo que o pilharam com o sargento, de tal modo que não havia a duvidar... E às dez horas da noite, na alameda! Já é imprudência... Mas enfim a coisa esqueceu, e quando o Matias morreu, lá lhe demos o lugar de sacristão, que é bem boa posta... Muito melhor que o que ele tinha no cartório... E há-de cumprir com zelo!
— Há-de cumprir com zelo, concordou muito sério o padre Amaro. E a propósito, a D. Maria da Assunção?
— Homem, rosnam-se coisas... Criado novo. Um carpinteiro que morava defronte... O rapaz anda no trinque.
— Palavra?
— No trinque. Charuto, relógio, luva! Tem pilhéria, hem?
— É divino!
— As Gansosos na mesma, continuou o cônego. Têm agora a sua criada, a Escolástica.
— E da besta do João Eduardo?
— Eu mandei-lhe dizer, não? Lá está ainda nos Poiais. O Morgado está mal do fígado! E o João Eduardo diz que está tísico... que eu não sei, nunca mais o vi... Quem mo disse foi o Ferrão.
— Como vai ele, o Ferrão?
— Bem. Sabe quem eu vi há dias? A Dionísia.
— E então?
O cônego disse uma palavra baixo ao ouvido do padre Amaro.
— Deveras, padre-mestre?
— Na Rua das Sousas, a dois passos da sua antiga casa. O D. Luís da Barrosa é que lhe deu o dinheiro para montar o estabelecimento. Pois aqui estão as novidades. E você está mais forte, homem! Fez-lhe bem a mudança...
E pondo-se diante, galhofando:
— Ó Amaro, e você a escrever-me que queria retirar-se para a serra, ir para um convento, passar a vida em penitência.
O padre Amaro encolheu os ombros:
— Que quer você, padre-mestre?... Naqueles primeiros momentos... Olhe que me custou! Mas tudo passa...
— Tudo passa, disse o cônego. E depois de uma pausa: - Ah! Mas Leiria já não é Leiria!
Passearam então um momento em silêncio, numa recordação que lhes vinha do passado, os quinos divertidos da S. Joaneira, as palestras ao chá, as passeatas ao Morenal, o Adeus e o Descrido cantados pelo Artur Couceiro e acompanhados pela pobre Amélia que, agora, lá dormia no cemitério dos Poiais, sob as flores silvestres...
— E que me diz você a estas coisas da França, Amaro? - exclamou de repente o cônego.
— Um horror, padre-mestre... O arcebispo, uma súcia de padres fuzilados!... Que brincadeira!
— Má brincadeira, rosnou o cônego.
E o padre Amaro:
— E cá pelo nosso canto parece que começam também essas idéias...
O cônego assim o ouvira. Então indignaram-se contra essa turba de mações, de republicanos, de socialistas, gente que quer a destruição de tudo o que é respeitável - o clero, a instrução religiosa, a família, o exército e a riqueza... Ah! a sociedade estava ameaçada por monstros desencadeados! Eram necessárias as antigas repressões, a masmorra e a forca. Sobretudo inspirar aos homens a fé e o respeito pelo sacerdote.
— Aí é que está o mal, disse Amaro, é que nos não respeitam! Não fazem senão desacreditar-nos... Destroem no povo a veneração pelo sacerdócio...
— Caluniam-nos infamemente, disse num tom profundo o cônego.
Então junto deles passaram duas senhoras, uma já de cabelos brancos, o ar muito nobre; a outra, uma criaturinha delgada e pálida, de olheiras batidas, os cotovelos agudos colados a uma cinta de esterilidade, pouff enorme no vestido, cuia forte, tacões de palmo.
— Cáspite! disse o cônego baixo, tocando o cotovelo do colega. Hem, seu padre Amaro?... Aquilo é que você queria confessar.
— Já lá vai o tempo, padre-mestre, disse e pároco rindo, já as não confesso senão casadas!
O cônego abandonou-se um momento a uma grande hilaridade; mas retomou o seu ar poderoso de padre obeso, vendo Amaro tirar profundamente o chapéu a um cavalheiro de bigode grisalho e óculos de ouro, que entrava na praça, do lado do Loreto, com o charuto cravado nos dentes e o guarda-sol debaixo do braço.
Era o Sr. conde de Ribamar. Adiantou-se com bonomia para os dois sacerdotes; e Amaro, descoberto e perfilado, apresentou "o seu amigo, o Sr. cônego Dias, da Sé de Leiria". Conversaram um momento da estação, que já ia quente. Depois o padre Amaro falou dos últimos telegramas.
— Que diz vossa excelência a estas coisas de França, senhor conde?
O estadista agitou as mãos, numa desolação que lhe assombreava a face:
— Nem me fale nisso, Sr. padre Amaro, nem me fale nisso... Ver meia dúzia de bandidos destruir Paris... O meu Paris!... Creiam vossas senhorias que tenho estado doente.
Os dois sacerdotes, com uma expressão consternada, uniram-se à do estadista.
E então o cônego:
— E qual pensa vossa excelência que será o resultado?
O Sr. conde de Ribamar, com pausa, em palavras que saíam devagar, sobrecarregadas do peso das idéias, disse:
— O resultado?... Não é difícil prevê-lo. Quando se tem alguma experiência da História e da Política, o resultado de tudo isto vê-se distintamente. Tão distintamente como os vejo a vossas senhorias. .
Os dois sacerdotes pendiam dos lábios proféticos do homem do governo.
— Sufocada a insurreição, continuou o senhor conde olhando a direito de si com o dedo no ar, como seguindo, apontando os futuros históricos que a sua pupila, ajudada pelos óculos de ouro, penetrava - sufocada a insurreição, dentro de três meses temos de novo o império. Se vossas senhorias tivessem visto como eu uma recepção nas Tulherias ou no Hotel de Ville, nos tempos do império, haviam de dizer, como eu, que a França é profundamente imperialista e só imperialista... Temos pois Napoleão III: ou talvez ele abdique, e a imperatriz tome a regência na menoridade do príncipe imperial... Eu aconselharia antes, e já o fiz saber, que era esta talvez a solução mais prudente. Como consequência imediata temos o papa em Roma, outra vez senhor do poder temporal... Eu, a falar a verdade, e já o fiz saber, não aprovo uma restauração papal. Mas eu não lhes estou aqui a dizer o que aprovo, ou o que reprovo. Felizmente não sou o dono da Europa. Seria um encargo superior à minha idade e às minhas enfermidades. Estou a dizer o que a minha experiência da Política e da História me aponta como certo. Dizia eu...? Ah! a imperatriz no trono de França, Pio Nono no trono de Roma, aí temos a democracia esmagada entre estas duas forças sublimes, e creiam vossas senhorias um homem que conhece a sua Europa e os elementos de que se compõe a sociedade moderna, creiam que depois deste exemplo da Comuna não se torna a ouvir falar de república, nem de questão social, nem de povo, nestes cem anos mais chegados!...
— Deus Nosso Senhor o ouça, senhor conde, fez com unção o cônego.
Mas Amaro, radiante de se achar ali, numa praça de Lisboa, em conversação íntima com um estadista ilustre, perguntou ainda, pondo nas palavras uma ansiedade de conservador assustado:
— E crê vossa excelência que essas idéias de república, de materialismo, se possam espalhar entre nós?
O conde riu: e dizia, caminhando entre os dois padres, até quase junto das grades que cercam a estátua de Luís de Camões:
— Não lhes dê isso cuidado, meus senhores, não lhes dê isso cuidado! É possível que haja aí um ou dois esturrados que se queixem, digam tolices sobre a decadência de Portugal, e que estamos num marasmo, e que vamos caindo no embrutecimento, e que isto assim não pode durar dez anos, etc., etc. Baboseiras!...
Tinham-se encostado quase às grades da estátua, e tomando uma atitude de confiança:
— A verdade, meus senhores, é que os estrangeiros invejam-nos... E o que vou a dizer não é para lisonjear a vossas senhorias: mas enquanto neste país houver sacerdotes respeitáveis como vossas senhorias, Portugal há-de manter com dignidade o seu lugar na Europa! Porque a fé, meus senhores, é a base da ordem!
— Sem dúvida, senhor conde, sem dúvida, disseram com força os dois sacerdotes.
— Senão, vejam vossas senhorias isto! Que paz, que animação, que prosperidade!
E com um grande gesto mostrava-lhes o Largo do Loreto, que àquela hora, num fim de tarde serena, concentrava a vida da cidade. Tipóias vazias rodavam devagar; pares de senhoras passavam, de cuia cheia e tacão alto, com os movimentos derreados, a palidez clorótica duma degeneração de raça; nalguma magra pileca, ia trotando algum moço de nome histórico, com a face ainda esverdeada da noitada de vinho; pelos bancos de praça gente estirava-se num torpor de vadiagem; um carro de bois, aos solavancos sobre as suas altas rodas, era como o símbolo de agriculturas atrasadas de séculos; fadistas gingavam, de cigarro nos dentes; algum burguês enfastiado lia nos cartazes o anúncio de operetas obsoletas; nas faces enfezadas de operários havia como a personificação das indústrias moribundas... E todo este mundo decrépito se movia lentamente, sob um céu lustroso de clima rico, entre garotos apregoando a lotaria e a batota pública, e rapazitos de voz plangente oferecendo o Jornal das pequenas novidades: e iam, num vagar madraço. Entre o largo onde se erguiam duas fachadas tristes de igreja, e o renque comprido das casarias da praça onde brilhavam três tabuletas de casas de penhores, negrejavam quatro entradas de taberna, e desembocavam, com um tom sujo de esgoto aberto, as vielas de todo um bairro de prostituição e de crime.
— Vejam, ia dizendo o conde: vejam toda esta paz, esta prosperidade, este contentamento... Meus senhores, não admira realmente que sejamos a inveja da Europa!
E o homem de Estado, os dois homens de religião, todos três em linha, junto às grades do monumento, gozavam de cabeça alta esta certeza gloriosa da grandeza do seu país, - ali ao pé daquele pedestal, sob o frio olhar de bronze do velho poeta, ereto e nobre, com os seus largos ombros de cavaleiro forte, a epopéia sobre o coração, a espada firme, cercado dos cronistas e dos poetas heróicos da antiga pátria - pátria para sempre passada, memória quase perdida!
Outubro 1878 - Outubro 1879. ==Página:O Crime do Padre Amaro.djvu/627==