O Cura, a quem toca a cura

1O Cura, a quem toca a cura
de curar esta cidade,
cheia a tem de enfermidade
tão mortal, que não tem cura:
dizem, que a si só se cura
de uma natural sezão, que lhe dá na ocasião
de ver as Moças no eirado,
com que o Cura é o curado,
e as Moças seu cura são.
  
2Desta meizinha se argúi,
que ao tal Cura assezoado
mais lhe rende o ser curado,
que o Curado, que possui,
grande virtude lhe influi
o curado exterior:
mas o vício interior
Amor curá-lo procura,
porque Amor todo loucura,
se a cura é de louco amor.
  
3Disto cura o nosso Cura,
porque é curador maldito,
mas ao mal de ser cabrito
nunca pôde dar-lhe cura:
É verdade, que a tonsura
meteu o Cabra na Sé,
e quando vai dizer "Te
Deum laudamus" aos doentes,
se lhe resvela entre dentes,
e em lugar de Te diz me.
  
4Como ser douto cobiça,
a qualquer Moça de jeito
onde pôs o seu direito,
logo acha, que tem justiça:
a dar-lhe favor se atiça,
e para o fazer com arte,
não só favorece a parte,
mas toda a prosápia má,
se justiça lhe não dá,
lhe dá direito, que farte.
  
5Porque o demo lhe procura
tecer laços, e urdir teias,
não cura de almas alheias,
e só do seu corpo cura:
debaixo da capa escura
de um beato capuchinho
é beato tão maligno
o cura, que por seu mal
com calva sacerdotal
é sacerdote calvino.
  
6Em um tempo é tão velhaco,
tão dissimulado, e tanto,
que só por parecer santo
canoniza em santo um caco:
se conforme o adágio fraco
ninguém pode dar, senão
aquilo, que tem na mão,
claro está que no seu tanto
não faria um ladrão santo,
senão um Santo Ladrão.
  
7Estou em crer, que hoje em dia
já os cânones sagrados
não reputam por pecados
pecados de simonia:
os que vêem tanta ousadia,
com que comprados estão
os curados mão por mão,
devem crer, como já creram,
que ou os cânones morreram,
ou então a Santa unção.