INTRODUCÇÃO


Não é o portuguez a unica lingua usada em Portugal: além dos differentes dialectos com que ella se apresenta no proprio territorio do continente 1, e d’um certo numero de modos de fallar,

O estudo da Dialectologia portugueza hei-de fazê-lo noutra occasião; por isso limito-me a notar aqui algumas particularidades phoneticas: no territorio que vae do rio Minho a pouco alem do rio Douro e se extende a uma parte da Beira-Alta (Sinfães), a lingua portugueza apresenta estes phenomenos caracteristicos ao observador: terminação (archaica) om em vez de ão, como coraçom, etc.; fórmas verbaes sem nasalisação, como fóro, viéro (por fôrão, i. e., fôrom, vierom); os dissyilabos uim, oi reduzidos a diphthongos em ruim, mainho (moinho) etc.; representação do es inicial da linguagem litteraria por s, como sp’rito, strella, star, etc.; transformação constante del em r, fazendo apparecer antes do r um love u, como áurdeia (aldeia), durma (alma), etc.; no Alemtejo e Algarve os diphthongos ei e eu são reduzidos a ê, como dinhéro, candiêro, mê, té, sé, ê, etc.; o diphthongo ou é condensado em 0, como só, ando, etc.; a 1.a pess. do preter. perf. da 1.* conj. acaba em i (ex. andi=andci, etc.) por analogia com a 2.3. conj. Além d’estas particularidades mais salientes, ha outras secundarias: assim no N. do paiz diz-se n-i-agua (a agua), a-i-égua (a egua), i. e., faz-se apparecer um leve i entre o a e e finans atonos ou tonicos d’uma palavra, e oa e tonicos iniciaes da palavra seguinte, — factos que creio se não dão no Sal; numa pequena povoação (Pena-Lobo) da Beira-Baixa, o & tonico da penultima syllaba é transformado em é, como buréco (buraco), aguilhéda (aguilhada).

O galego é outro dialecto portuguez que, lado de phenomenos communs. ao portuguez archaico, e ainda ás vezes ao port. pop. moderno, apresonta phenomenos proprios que lhe dão uma individualidade notavel.

No Brazil e nas nossas possessões da Asia e Africa, faltão-se tambem dialectos do portuguez, estudados pelo snr. Ad. Coelho no seu opusculo Os dialectos romanicos ou neo-latinos na Africa, Asia e America (extracto do Boletim da Soc. de Geogr. de Lisboa, 7.3, 2. serie), e pelo sor. H. Schuchardt no seu opusculo Kreolische Studien, 1, Wien 1882. Ambos estos glottologos prepárão novos estudos sobre os dialectos creolos.

Ha ainda outro dialecto portuguez que não foi estudado: é o fallado no archipelago da Madeira. Do Romanceiro d’este archipelago, publicado pelo snr. A. Rodrigues de Azevedo (Funchal 1880), unico texto que conheço do dialecto, vejo que o caracter distinctivo d’elle é usarem-se exclusivamente

  • Este facto foi primeiramente observado, que et saiba, pelo sr. Ad. Coelho (la

Querides da ling. Port, pag. 65, dot.) que de oxprime assim: «O r tem às vezes p’este caso uma pronúncia muito guttural; parece onvir-se atrás d’elle am u contARTA, Omermo som que o inglez w». — É nos arredores de Guimarães que eu tenho notado mato particularmente

o phenomeno.
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particulares ás creanças 2, aos rapazes 3, aos pedreiros 4, etc. — falla - se aqui tambem o mirandez, que constitue o objecto d'este estudo .

as formas archaicas lo, los, la, las dos artigos definidos. Como o archipelago foi descoberto no primeiro quartel do sec. xv, póde- se concluir que aquellas formas erão ainda vulgares no continente nessa epocha . Hoje, como sesabe, essas formas apparecem apenas como resultado de assimilação (pelo, todolo, vê-lo , ei-lo, etc.); comtudo encontrei lo numa canção popular que recolhi numa serra da Beira - Alta (Vid . o meu livro Tradições popul. de Portugal, 337 —k ), e parece que durárão na Galliza até ao sec. xv, segundo uma nota de Saco Arce (Gr. gallega) aproveitada pelo snr. M. Fatio in Rómania, iv, pag . 32, not. 1. No Cancioneiro da Vaticana abundão essas fórmas archaicas. -0 dialecto da Madeira apresenta outros factos curiosos, como : nā (por não), forma usual no Sul do continente ( Lisboa, etc.), e que representará a transição de nom para não ; o superlativo indicado por mui-muito, como em Gil Vicente (Obras, ii,283, ed. Hamburgo ), no dialecto creolo de S. Thiago (Ad . Coelho, Os dialectos romanicos, etc., pag . 150 e 195 do Boletim ) e em hisp .; nhôra por senhôra, facto corrente nos dialectos creo los (Ad . Coelho , ib., p . 149, etc.), e na linguagem popular do continente (Beira -Alta ); vinhemos , forma usada no continente ( Traz-os-Montes, etc.) , e em gallego ; ambinhos, deminutivo de ambos, formaque existe no continente numa cantiga popular ( Ap . Trad. pop. de Portugal, pag. 114), etc.

2 Cf. as minhas Trad. pop . de Portugal, § . 345 .

3 Na Beira -Alta , os rapazes costumão juntar á vogal ou diphthongo de cada syllaba um p , por ex . : estamos satisfeitos, diz-se : « es-pis-tå -på -mos pus sa- på -tis-pis-fei-pei-tos-pus. No Minho, segundo me informa um meu condiscipulo, os rapazes costumão junctar, tambem por brincadeira, greg (com e surdo como em Gregorio) ; o citado exemplo diz- se assim : « es-gre gis- ta -gregå -mos-gregus sa- gregå - tis-gregis-fei-greguei-tos -gregús » . - Não se cuide que estas formações de linguagem são sem importancia ou exclusivas do nosso paiz. A proposito do estudo de C. Nigra Fonetica del dialetto di Val Soana (in Archivio glottolog. italian ., t . III, n.o 1) diz o snr. P. Meyer numa critica in Romania , iv, 293-4 : « Le gergo de Val- Soanna est le résultat d'une modification absolument arbitraire du patois de cette vallée. Les habitants de Val-Soanna l'emploient lorsqu'ils veulent éviter d'être compris par des personnes étrangères à leur vallée, qui autrement pourraient entendre le dia lecte naturel du pays. Il est curieux de constater combien sont pauvres les procédés de modification mis en œuvre. Le principal consiste dans l'interca lation du groupe oth, ath, ith ( th anglais dans think ), ainsi port- oth - jér (por ter ), port-oth -iré (je porterai ), etc. On voit que c'est le principe sur lequel est fondé le javanais (voir les annonces du Figaro du dimanche, passim) — ». Na introducção de M. Cubi y Soler aos Ensayos poeticos en dialecto bercia no, por F. y Morales (Leon 1861) leio tambem : « ... en castellano vemos que los niños se forman una jerigonza que consiste en la introduccion del sonido guede, gada, etc. , en medio de cada silaba . Para decir v. g . Como es tamos ose espresan asi : cogodo — mógodo éguedes – tágades— mógodos? En catalan se usa por lo comon la x, representando el sonido de ch francés en chanson . En esta jerga esa frase se diria : coxó - moxó eséstaxá — moxós ? Los grandes poliglotas han encontrado esta costumbre en muchas partes, so bre todo en Asia — » (ob . cit., pag. xiii, not . ) ,

4 Os pedreiros, os ciganos, os contrabandistas, etc. , usão entre si uma
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A zona geographica do mirandez limita -se, porém, aos arre dores da cidade de Miranda -do- Douro, em Traz- os -Montes. É evi dente que, ao lado do mirandez, - lingua popular — , vive o por tuguez como lingua official e empregada pelas classes illustradas, ou ainda pelas populares, quando estas se querem tornar intelligi veis ante as pessoas que desconhecem o dialecto. Os mirandezes châmão gráve á lingua portugueza , sendo até vulgar a expressão : « tu fallas grave ? » (i. é , « fallas mais apurado ? ») . Em algumas povoações, como Villar-Sêcco, diz - se pâ -li ( = para alli ), em virtude do que os habitantes de outras povoa ções , onde tal expressão se não usa, exclâmão escarnecendo os de Villar-Sêcco : « vaes pâ-li ? » . Estas denominações de despréso são muito vulgares nas differentes linguas, como o lat. barbarus, e ainda mais . Cfr. as geadas gallegas. Sería, com tudo , muito conveniente que, assim como na Irlan da, com a Sociedade para a conservação da lingua irlandeza, na Escocia , com The Scottish Celtic Review , etc. , na Baixa Bretanha, com a Revue celtique, e um sem número de outras publicações, na Provença , com o Armana Prouvençau, etc. , na Catalunha, na Andaluzia , nas Asturias, na Galliza , na Sicilia, etc. , etc. , com differentes trabalhos folkloricos e litterarios, se tem operado um salutar movimento de renascença linguistica, — tambem os mirandezes fizessem todos os esforços, não direi já por meio de uma sociedade ou um jornal especial , mas ao menos pela conversação familiar, pela correspondencia epistolar, pela publicação de artigoslitterarios e tradições populares , para manterem o seu dialecto intacto o mais possivel contra as invasões do portuguez e do hispanhol. Assim se produziria um facto de alto interesse glottologico, e ao mesmo tempo se firmaria uma das raizes do amor da patria,

gíria notavel. Assim , segundo me informão dois meus condiscipulos, os pedreiros em Paredes é S. Martinho de Moiros dizem mói por eu, tói por teu , sói por elle, galério por chapeu , gômbias por pernas ( este termo é tambem

usado vulgarmente), etc. Em mói, tói, sói , parece que temos uma pronúnciaerrada do francez moi, toi, soi ; em galério ha o latim galerus ; em gâmbias o lat . gamba (Diez, Gr. des 1. rom . , 1, 34 ; cf. cambas no Poema de Alex ., e o port. cambado ).
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porque entre os elementos que constituem uma sociedade qualquer, — familia, municipio, tribu ou nação, — com certeza a lingua um dos mais importantes.

O presente estudo sahiu já, um pouco mais imperfeito do que agora, em folhetins dos n.os 472, 473, 479, 482 e 483 do jornal de Penafiel O Penafidelense (Julho-Agosto de 1882).

As primeiras informações que colhi a respeito do dialecto mirandez devo-as, na maxima parte, ao estudioso alumno da Academia Polytechnica do Porto o meu amigo o snr. Manoel Antonio Branco de Castro, natural da freguezia de Duas-Igrejas (concelho de Miranda); depois augmentei-as, já com novos materiaes fornecidos pelo mesmo alumno na occasião das ferias de Agosto e Setembro d’este anno, já com o interrogatorio pessoal, que fiz a uma mulher mirandeza analphabeta, e a outras pessoas com quem me pôz em relação o digno major de cavalleria n.º 7, de Bragança, o snr. J. Ferreira Sarmento. Materiaes de ordem diversa vierão de algum modo tornar mais completo este trabalho, que eu, ainda assim, publico, não como definitivo, mas como simples notas, cuja deficiencia provém de mais a mais de constituirem ellas o meu primeiro ensaio glottologico, e de nada existir escripto sobre o mirandez, além do que eu tinha publicado.

Nas comparações que faço com outros dialectos romanicos, tenho em vista principalmente mostrar a generalidade das leis. Muita gente, sem duvida por não possuir sequer os rudimentos da glottologia, sciencia moderna nos seus methodos, suppõe que a linguagem popular é desconnexa, arbitraria, corrupção estupida da linguagem litteraria; e no emtanto nada ha mais falso, porque, como muito bem notou É. Littré, «beaucoup de mots et de tournares, oubliés ailleurs, survivent dans les différents patois; en lisant les glossaires, en causant avec les paysans et les ouvriers, on trouve que le vieux langage est moins mort qu’on ne croyait» (Hist. de la langue française, ii, 94, ed. 1878).

Apresentando aos mestres da glottologia este curto ensaio sobre um dialecto, evolução legitima do latim popular outr’ora fallado na Lusitania, espero que as luzes da critica me elucidem no que esse ensaio tiver de defeituoso, e me animem assim a proseguir numa ordem de estudos tão novos, tão importantes, tão bellos, e ao

mesmo tempo tão pouco cultivados na peninsula iberica, onde ape
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nas sei de quatro ou cinco individuos que me possão dar uma opi nião segura sobre o assumpto . Eis a lista das obras que principalmente consultei para as comparações com o mirandez:

Glottologia romanica em geral

Grammaire des langues romanes, par F. Diez (trad . fr. em 3 vol. Paris, 1874-1877); Studien zur romanischen Wortschöpfung, von Carolina Mi chaëlis (Leipzig 1876 ); Étude sur le rôle de l'accent latin dans la langue française, par Gaston Paris. ( Paris -Leipzig, 1862); Romania, recueil trimestriel consacré à l'étude des langues et des littératures romanes, publié par P. Meyer et G. Paris.

Portuguez

Questões da lingua portugueza, por F. Adolpho Coelho (Por to, 1874); Theoria da conjugação em latim e portuguez, pelo mesmo

(Lisboa, 1871 ); Grammatica portugueza, de A. Epiphanio Dias (Porto , 1878); Linguagem popular portugueza, por J. Leite de Vasconcel

los (in Penafidelense, 1882).

Gallego

Gramatica gallega, de Saco Arce (Lugo , 1868) . Manualetti d'introduzione agli studj neolatini, ii, Portoghe

se e gallego, por E. Monaci ( textos ), e F. d’Ovidio (grammatica) ( Imola, 1881 ); Diccionario gallego, de Cuveiro Piñol (Barcelona, 1876) .

Leonez

Das Altleonesische, — ein Beitrag zur Kenntniss des

spanischen, von Dr. Gessner (Berlin, 1867);
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Libro de Alexandre, estudo de A. Morel Fatio ( in Romania, IV ); Poema de Alexandre Magno (in Coleccion de poesias castel lanas anteriores al siglo xv , por Sanchez - Paris , 1842): como texto;

Études de phonologie espagnole et portugaise, por J. Cornu (extracto da Romania, t. 1x ) 5.

Asturiano

A introducção de Varnhagen ás Trovas e Cantares (Madrid, 1849 ) ; Coleccion de poesias en dialecto asturiano (Oviedo, 1839) : como texto 6 .

Andaluz

El Folklore andaluz, revista sevilhana ( 1882) : como texto ; Cantos populares españoles, de F. Rodriguez Marin (Sevilha, 1882 , 2 vol.): idem 7.

Catalão

Estudios de lengua catalana, por M. Milá y Fontanals (Barcelona, 1875) Convém ainda fazer uma nota : na transcripção dos termos mirandezes empreguei de ordinario a orthographia phonetica , re ferindo - a á portugueza ; de modo que , com as indicações que dou, quem souber pronunciar bem o portuguez, sabe egualmente pronunciar o mirandez . Porto, 8 de Novembro de 1882.


5 Trabalho que eu devo á amabilidade de seu illustrado auctor. 6 A distincta romanista, a snr.& D. Carolina Michaëlis, agradeço o obsequio que me fez emprestando -me este livro e o citado estudo de Gessner. 7 Sobre o dialecto andaluz ha um estudo moderno do profess. H. Schuchardt; mas até á data em que escrevo não me foi possivel lêlo : conheço-o apenas 8 por algumas criticas bibliographicas. Ao snr. Milá y Fontanals, um dos mais doutos folkloristas da peņinsula iberica, agradeço a offerta d'este seu trabalho.