O Domínio Público no Direito Autoral Brasileiro/Capítulo 1/1.3.1.


1.3. O domínio público

 

1.3.1. Distinção do domínio público no direito administrativo

 

Apesar de esta ser uma tese de direito civil, que trata do instituto do domínio público no âmbito do direito autoral, julgamos relevante fazer menção breve, neste tópico, ao domínio público do direito administrativo, de modo a explicitar as diferenças entre um e outro. A relevância decorre de dois aspectos: em primeiro lugar, para que se fique evidenciado que apesar de serem institutos homônimos guardam entre si imensas distinções; em segundo lugar, porque da análise do domínio público em direito administrativo, alguns conceitos nos serão úteis quando da discussão acerca da natureza jurídica do domínio público no direito autoral.

Uma vez que nossa pretensão aqui é meramente incidental, não nos aprofundaremos em questões típicas do direito público. Vamos nos ater apenas a algumas considerações sobre determinadas facetas do direito administrativo que tangenciam o direito civil[1], tais como a disciplina dos bens públicos.

Quanto aos bens públicos, o CCB aponta, em seu art. 99, a forma como podem ser classificados. In verbis:

Art. 99. São bens públicos:

I – os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;

II – os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias;


III – os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.

Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado.

Nos artigos subsequentes, o CCB determina que os bens de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação (art. 100). Já os bens dominicais podem ser alienados (art. 101), pois como esclarece o parágrafo único acima transcrito, bens dominicais são aqueles a que se tenha dado estrutura de direito privado.

Para José Cretella Jr., ao analisar-se a denominação bens públicos, há que se verificar que “[o] atributo público significa, numa primeira acepção, do ‘Público’, do Estado, estatal, da Administração, quando aparece, por exemplo, na expressão serviço público (=serviço desempenhado pelo Estado)”. Já numa segunda acepção, deve significar “para o ‘público’, para o povo, para o administrado”. Ou seja, “bem público é o que, sendo do domínio do Estado, serve de qualquer maneira aos interesses públicos”[2].

“Quanto à locução domínio público”, para Odete Medauar “significa o conjunto de bens públicos, incluindo todos os tipos. Em ordenamentos estrangeiros, em especial no francês e no italiano, os vacábulos domínio ou domínio público abrangem somente dois tipos de bens públicos, os de uso geral do povo (exemplo: ruas, praças) e os bens empregados no serviço público (exemplo: prédio de uma escola pública)”. Segundo a autora, “[t]ais odernamentos utilizam a expressão domínio privado do Estado para designar os bens destinados ao uso direto da própria Administração, que podem ser mais facilmente alienados; embora autores brasileiros também empreguem essa expressão, parece que gera confusão, levando a supor que o Estado teria um domínio privado, o que é incorreto (...)”[3].

Diante de tal definição, percebe-se, portanto, que o domínio público de que trata este trabalho não se confunde, em hipótese alguma, com o domínio público do direito administrativo[4]. Afinal, o domínio público para o direito autoral significa o conjunto de bens que não mais têm seus aspectos patrimoniais, nem parte dos morais, submetidos ao monopólio legal – quer por decurso de prazo, quer por qualquer dos outros motivos a que iremos nos referir ao longo deste trabalho, de modo que fica livre a qualquer pessoa fazer uso da respectiva obra, independentemente de autorização.

Uma diferença evidente entre o domínio público no direito autoral e seu homônimo do direito administrativo é que o primeiro não se encontra regido por normas de direito público. Além disso, outra diferença reside no fato de que que, no primeiro, é impossível sua apropriação por terceiros em decorrência de autorização estatal (em regra, e a bem da verdade, essa impossibilidade é absoluta). Já o bem em domínio público no direito administrativo poderá, em certas circunstâncias, ser desafetado.

Segundo Carvalho Filho, “pode conceituar-se a afetação como sendo o fato administrativo pelo qual se atribui ao bem público uma destinação pública especial de interesse direto ou indireto da Administração. E a desafetação é o inverso: é o fato administrativo pelo qual um bem público é desativado, deixando de servir à finalidade pública anterior”[5].

Ocorrendo a desafetação, muda a classificação jurídica do bem e assim as possibilidades de sua destinação. Por exemplo, um bem de uso especial que passasse pelo fenômeno da desafetação se tornaria um bem dominical, podendo, como consequência, ser alienado a terceiros.

Apesar de sob determinadas circunstâncias haver uma reapropriação dos direitos autorais antes em domínio público, o fenômeno é em tudo distinto do processo de desafetação por que podem vir a passar os bens públicos, como se verá no terceiro capítulo desta tese.

Este material foi publicado por seu autor/tradutor, Sérgio Branco (ou por sua vontade) em Domínio público. Para locais que isto não seja legalmente possível, o autor garante a qualquer um o direito de utilizar este trabalho para qualquer propósito, sem nenhuma condição, a menos ques estas condições sejam requeridas pela lei.

 
  1. “Há a costumeira controvérsia sobre o entorno da disciplina, se deveria ser feita pelo Direito Civil ou pelo Administrativo e Constitucional. A unificação traz a benesse de sistematizar a matéria, já que a teoria liberal da propriedade e seu regime não se diferem tanto nas duas esferas. Um ponto negativo é o encerro da questão dentro do direito privado, o que retiraria as minúcias necessárias à organização da esfera pública”. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito Civil – Parte Geral. São Paulo: ed. Atlas, 2006; p. 116.
  2. Grifos no original. CRETELLA Jr., José. Tratado do Domínio Público. Rio de Janeiro: Forense, 1984; pp. 18-19.
  3. Grifos no original. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo: ed. Revista dos Tribunais, 2005; p. 274.
  4. Segundo Stéphanie Choisy, o termo “domínio público”, aplicável ao direito autoral e ao direito administrativo com características distintas seria, em razão disso, um termo polissêmico de justaposição. CHOISY, Stéphanie. Le Domaine Public en Droit d’Auteur. Cit.; p. 165.
  5. Grifos no original. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Cit.; p. 854.