Drama em 3 atos

Em colaboração com Urbano Duarte

1884


A Alfredo Bastos

oferecem

os sinceros e saudosos amigos

A.A.&U.D.


PRÓDOMO

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O Escravocrata, escrito há dois anos e submetido à aprovação do Conservatório Dramático Brasileiro sob o título A família Salazar, não mereceu o indispensável placet. Embora não trouxesse o manuscrito nota alguma com declaração dos motivos que ponderaram no ânimo dos ilustres censores, para induzi-los à condenação do nosso trabalho, somos levados a crer que essa mudez significa - ofensa à moral, visto como só nesse terreno legisla e prepondera a opinião literária daquela instituição.

Resolvemos então publicá-lo, a fim de que o público julgue e pronuncie.

Sabemos de antemão quais os dois pontos em que a crítica poderá atacá-lo: imoralidade e inverossimilhança. Conhecendo isso, sangramo-nos em saúde.

O fato capital da peça, pião em volta do qual gira toda a ação dramática, são os antigos amores de um mulato escravo, cria de estimação de uma família burguesa, com a sua senhora, mulher nevrótica e de imaginação desregrada; desta falta resulta um filho, que, até vinte e tantos anos de idade, é considerado como se legítimo fosse, tais os prodígios de dissimulação postos em prática pela mãe e pelo pai escravo, a fim de guardarem o terrível segredo.

Bruscamente, por uma série de circunstâncias imprevistas, desvenda-se a verdade; precipita-se então o drama violento e rápido, cujo desfecho natural é a consequência rigorosa dos caracteres em jogo e da marcha da ação.

Onde é que se acha o imoral ou o inverossímil?

As relações amorosas entre senhores e escravos foram e são, desgraçadamente, fatos comuns no nosso odioso regime social; só se surpreenderá deles quem tiver olhos para não ver e ouvidos para não ouvir.

Se a cada leitor em particular perguntássemos se lhe ocorre à memória um caso idêntico ou análogo ao referido no Escravocrata, certo estamos de que ele responderia afirmativamente.

A questão de moralidade teatral e literária diz respeito tão somente à forma, à linguagem, à fatura, ao estilo. Se os moralistas penetrassem na substância, na medula das obras literárias, de qualquer época ou país que sejam, de lá voltariam profundamente escandalizados, com as rosas do pudor nas faces incendidas, e decididos a lançar no index todos os autores dramáticos passados, presentes e futuros.

Repetir estas coisas é banalidade; há, porém, pessoas muito ilustradas, que só não sabem aquilo que deveriam saber.

Seria muito bom que todas as mulheres casadas fossem fiéis aos seus maridos, honestas, ajuizadas, linfáticas, e que os adultérios infamantes não passassem de fantasias perversas de dramaturgos atrabiliários; mas infelizmente assim não sucede, e o bípede implume comete todos os dias monstruosidades que não podem deixar de ser processadas neste supremo tribunal de justiça - o teatro.

Não queremos mal ao Conservatório; reconhecemos o seu direito, e curvamos a cabeça. Tanto mais que nos achamos plenamente convencidos de que, à força de empenhos e de argumentos, alcançaríamos a felicidade de ver o nosso drama à luz da ribalta. Mas esses trâmites seriam tão demorados, e a idéia abolicionista caminha com desassombro tal, que talvez no dia da primeira representação do Escravocrata já não houvesse escravos no Brasil. A nossa peça deixaria de ser um trabalho audacioso de propaganda, para ser uma medíocre especulação literária. Não nos ficaria a glória, que ambicionamos, de haver concorrido com o pequenino impulso das nossas penas para o desmoronamento da fortaleza negra da escravidão.


Janeiro de 1884

Artur de Azevedo e Urbano Duarte



PERSONAGENS

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  • SALAZAR, negociante de escravos
  • GUSTAVO, seu filho
  • LOURENÇO, seu escravo
  • SERAFIM, ex-sócio do Clube Abolicionista Pai Tomás
  • DOUTOR EUGÊNIO, médico
  • SEBASTIÃO, sócio de Salazar
  • UM COMPRADOR DE ESCRAVOS.
  • UM CREDOR.
  • UM CAIXEIRO.
  • JOSEFA, irmã de Salazar
  • GABRIELA, mulher de Salazar
  • CAROLINA, sua filha
  • Três mulatas baianas, escravos.

A cena passa-se no Rio de Janeiro.