Mal chegado de São Paulo, depois daquele sucesso imprevisto da Independência, que abreviara a viagem de d. Pedro, o Satanás tratou de averiguar ocaso misterioso da rua do Conde.
Remordia-o principalmente o remorso no relativo à Branca e ao abandono em que a deixara. Nem mesmo podia compreender como ele, o homem impassível e calmo, já afeito às vicissitudes da sorte e bem afamado pela imperturbável presença de espírito, que conservava durante os transes mais arriscados da vida, se tinha tornado quase doudo, irrefletido e imprevidente.
A nada concluíam entretanto as suas primeiras pesquisas. Lá, na rua do Conde, a casa de Branca conservava-se impenetrável e quieta, com essa lúgubre fisionomia dos prédios misteriosos que foram o teatro de um crime. E, pela vizinhança, diziam-na apenas mal-assombrada, percorrida durante a noite por fantasmas alvadios de almas penadas, que vinham gemer a sua dor na encenação espetral das crendices populares.
Ninguém sabia de mais nada, e ninguém conseguira esbater luz sobre a treva apavorante daquele crime.
Mistério, mistério!
De Branca nem se ouvia falar. Talvez que ela tivesse remontado para o céu na compostura angelical de suas purezas.
E o Satanás debatia-se, cego e louco, apaixonado e fúnebre, na grande noite das idéias. Lembrou-se, entretanto, de d. Bias. Fora ele quem viera chamá-lo à bodega do Trancoso. E o magro fidalgo das Espanhas bem devia conhecer alguma cousa desse drama sanguinolento e inexplicável. Se ele nada pudesse dizer sobre a sorte de Branca, relataria pelo menos o princípio dessa luta a que assistira, e que prostrara em terra o cadáver de Paulo de Andrade.
E o Satanás dirigiu-se para a tasca da rua do Piolho.
D. Bias lá estava.
Ninguém lhe dissera sobre a chegada do príncipe e sua comitiva. E ele supunha-se muito seguro, longe da espada de Pallingrini.
Ria a bom folgar.
A Domitila, recusando-se embora a pagar-lhe imediatamente os mil cruzados prometidos, recheava-lhe a bolsa, de constante, e permitia-lhe algumas diabruras, que o arredassem por momento da vigilância sobre a prisão de Branca.
E d. Bias fazia-se agora de pagador, e falava alto e fanfarronava à vontade entre aquela gente que lhe ia escorropichando os pichéis.
Fez-se branco, pois, trêmulo como um esqueleto de museu agitado pelo vento, quando o Satanás bateu-lhe ao ombro fortemente.
Mas recuperou logo a presença de espírito. Estava diante do inimigo. E se lhe faltava a coragem de desembainhar a nunca desembainhada durindana, compreendia a necessidade de esgrimir a mentira - a única arma que ele sabia manejar.
- Bem hajas pelo teu regresso! disse. Tu desapareceste de repente, e eu tinha, entretanto, importantes comunicações a fazer.
- E eu ando à procura dessas comunicações, fez o Satanás com a voz soturna, sentando-se do outro lado da mesa e esvaziando um copo que ali estava.
- Então, pergunta. As minhas idéias, assim, se concatenarão melhor e com mais vantagens para ti.
- Pois bem! O que é feito de Branca?
- Que Branca?
- A minha filha! Aquela moça loura que desapareceu bruscamente depois do crime da rua do Conde.
- Era tua filha!
- Sim.
- Pois não sei! afirmou d. Bias resolutamente.
Descobrindo que a sua encarcerada era filha do Satanás, o magro fantasma de d. Quixote teve ímpetos de revelar-lhe tudo. Perpassou-lhe no cérebro a idéia de ajoelhar-se, de rojar-se ao chão, de dizer ao escultor:
- Tua filha! Sou eu quem a tem prisioneira. Mas perdoa-me. Eu, só eu te a posso restituir. Vem comigo. Vem buscá-la. Mas perdoa-me. Conserva-me a vida. E dá-me os mil cruzados que a Domitila me prometeu.
Mas d. Bias amava Branca. A meiga e triste filha do Satanás deixava que ele a abraçasse. Sorria numa alegria infantil de louca. E muito baixinho dizia-lhe ao ouvido uma suave cantilena de amores: - Paulo! meu Paulo!
Por isso ele afirmou:
- Não sei.
O Satanás não lhe permitiria com certeza o prolongamento desses idílios de prisão. E d. Bias amava Branca.
Também o outro não insistiu.
Não eram essas propriamente as revelações que esperava. Perguntara por perguntar, para dar saída a essa idéia que o obsedava, que lhe fazia o mais forte e o mais insistente das preocupações. E, sem mais referir-se ao caso, continuou o inquérito relativamente aos pródromos do drama.
- Como soubeste que lá em cima, na minha casa, havia gente a se matar?
- Eu te conto, Satanás. Eu conto.
- E toma tento em ti. Fala a verdade. Por que se não...
E um grande murro sobre a mesa completou-lhe o pensamento.
D. Bias começou assim:
- Naquela noite, sabia de uns amores misteriosos, que não te relatarei nem por quinhentos milhões de diabos, nem que venha o inferno todo inteiro em guerra aberta contra mim, porque sou fidalgo das Espanhas e nunca meus lábios traíram o segredo da reputação de uma mulher.
O Satanás olhou-o muito sério, com a força violenta do seu olhar de fogo.
- Escuta! d. Bias. Trata de dizer-me a verdade e deixa-te dessas retóricas.
- Mas...
- O melhor é perguntar. O que fazias tu na rua do Conde por aquelas horas da noite?
D. Bias, então, sentiu uma grande necessidade de expandir-se, de dizer a verdade toda inteira àquele homem que ele se habituara sempre a temer, que o dominava com todo o prestigio da sua força, e que estava ali, defronte dele, a crestá-lo com a chama insistente do seu olhar de fera.
E disse tudo. Disse como d. Pedro o chamara para uma empresa amorosa, como eles se tinham ido postar diante da casa de Branca, como o tinham visto a ele, Satanás, entrar e sair, como tinham entrado depois, como tinham garrotado e amordaçado d. Emerenciana, como o príncipe subira e estivera lá em cima a sós com Branca como a casa tinha sido assaltada pelo valente capitão das guardas, como ele, d. Bias, tinha fugido e vindo lhe pedir socorro.
- Miserável! praguejou o Satanás.
E, para saciar logo a sua sede de vingança, para dar aos músculos nessas grandes tempestades de idéias que lhe espatifava o cérebro, o escultor suspendeu d. Bias pela cintura e atirou-o com durindana e tudo para o meio da sala.
Depois saiu, possesso, louco de raiva, qual fera bravia em cio de vinganças.
D. Bias levantou-se, a mão aos copos da espada, numa compostura honesta de homem insultado, que exige uma reparação imediata e sanguinolenta.
- Por S. Tiago de Compostela! Os fidalgos não fazem assim! Brigam lealmente e não fogem como este Satanás de todos os infernos.
Lá fora Pallingrini foi-se acalmando com a frialdade da noite.
O vento caía-lhe sobre as faces como uma ducha, chamando-o à realidade da vida. E ele fez-se mais quieto, diminuiu o passo, que trouxera acelerado até então, e pôs-se a meditar.
Queria uma vingança, vingança completa, vingança de italiano.
Branca! Ela deveria estar em poder do príncipe. E era preciso reavê-la. Para isso não havia brutalidades e violências que produzissem resultado. Ele tinha necessidade de fazer-se manhoso e hipócrita. D. Pedro seria agora o seu mestre. Ele soubera tão bem compor a fisionomia traidora e fazer-se amigo e confidente naquela recente viagem a Santos, que bem valia a pena imitá-lo.
E, depois... depois, quando à força de vigilância e de astúcia ele tivesse descoberto o esconderijo onde o príncipe lhe guardava a filha, quando tivesse abraçado Branca, quando readquirisse a posse daquele amor imaculado e puro, ideal e santo de pai, depois... viria a luta, luta de gigantes, para a qual ele traria toda a energia do seu temperamento e toda a audácia nunca desmentida do seu viver.
Não lhe bastava a morte de d. Pedro. D. Pedro era valente. E, para ele, a morte era apenas esse fatal desenlace da vida que não assusta aos fortes e que o homem procura muitas vezes.
Para que matá-lo?! Embora o horóscopo fatídico da cigana aí estivesse a dizer que um dos dous devia morrer pela mão do outro, ele não queria matar o príncipe. Queria-o miserável e vencido, morto no seu orgulho, arrastando uns dias infaustos de vilipêndio, martirizado por essa angústia de abatimento que é o suplício dos fortes.
E, horrivelmente calmo, como o espetro sinistro das vinganças, ele cortou as trevas da noite com um gesto largo de ameaça.