D. Pedro tinha razão. Para o seu caráter independente, era afinal uma verdadeira humilhação aquela constante necessidade de recorrer aos serviços do Satanás. O que ele mais desejava, havia muito, era um amor que pudesse satisfazer o seu orgulho de homem. Aquilo rebaixava-o diante de si mesmo; parecia-lhe, ao receber um beijo, que não era o homem, forte e apaixonado, que o recebia, vencedor pela força e pela paixão, mas o príncipe, vencedor pelo nome e pelo prestígio da posição.

E esse amor, que ele sonhava no íntimo, essa esperada paixão desinteressada e nobre, apareceu-lhe (nem o podia imaginar o Satanás!) no mesmo dia em que Branca deixara que o seu coração se dependurasse cativo dos belos bigodes negros de Paulo de Andrade.

Quando a procissão passara, um ano antes, pelo lugar em que estavam Branca e d. Emerenciana, naquela tarde radiante em que a moça pela primeira vez sentira o coração bater sob o domínio de um olhar de homem, o príncipe, que empunhava uma das varas do pálio, viu de relance a filha do seu alter ego.

Dessa tarde em diante, houve para ele a ansiedade indizível de rever e de possuir aquela criatura loura, cujos olhos refletiam a mais pura inocência e toda a ingenuidade de uma criança... Ah! o príncipe já andava farto de mastigar frutos maduros: o que ele agora queria, era o sabor excitante dos pêssegos verdes, ainda não cobertos de penugem.

Viu-a de novo na festa de S. Sebastião, viu-a nos Te-Deuns solenes dos dias de gala, viu-a a passeio, viu-a no largo do Paço, onde naquele tempo as famílias iam tomar fresco, pelas tardes abrasadas do verão. E privado até então de uma ocasião própria para lhe falar, o príncipe ardia em impaciência e em febre: entre duas conquistas fáceis das que lhe arranjava o Satanás, aparecia-lhe sempre a loura imagem de Branca, dominando tudo, apagando tudo com o seu brilho e a sua pureza de estrela inacessível.

Na ocasião em que, por basófia, d. Pedro atirou ao Satanás aquela frase orgulhosa em que vinha explodir, despeitada, a sua altivez, estavam as cousas nesse pé...

O príncipe, sem que uma só palavra pudesse trair as suas ocultas intenções, não falou mais, ao Satanás na aventura em que se tinha empenhado.

Não que esse escrúpulo natural de cavalheiro o retivesse, não querendo magoar na parte mais sensível da alma o seu fiel servidor; ele não sabia que Branca era filha de Pallingrini. O que lhe retinha a indiscrição, era o desejo de poder um dia, mostrando-lhe e provando-lhe que os seus serviços não eram indispensáveis, dizer-lhe:

- Vês? Possuo esta, que é melhor do que todas as outras; e não foste tu que ma deste. Não me foi dada pela tua dedicação, nem pelo meu nome, nem pelo meu prestígio. Amou-me, porque me achou belo, porque me achou forte e valente, porque satisfiz o seu ideal, porque encontrou em mim o homem que lhe devia rasgar diante dos olhos o horizonte ilimitado da vida e do amor! Já vês que os teus serviços não são indispensáveis...

E redobrou de vigilância e de esforços. Afinal, conseguiu saber onde morava a sua desconhecida: seguiu-a de uma vez que a encontrou, embuçado, à saída de uma novena do Parto.

E começou todas as noites a rondar a casa da rua do Conde, na esperança de ver sair alguém cuja conivência pudesse comprar a peso de ouro, na esperança de que um acaso providencial viesse inesperadamente em seu auxílio.

Uma noite, acreditou ter conseguido O que queria. Estava à espreita, num terreno que havia em frente à casa, e onde se estavam fazendo obras, quando viu um embuçado chegar, olhar demoradamente a varanda verde, por cujas janelas passava a luz do interior, bater três vezes com os copos da espada e entrar, depois de longamente ter escrutado todo o arredor com um olhar cuidadoso.

Que poderia dizer aquilo? Um homem...

Mas não esperou muito. Viu o homem sair pouco depois, com as mesmas precauções com que entrara. Deixou-o seguir um pouco, e acompanhou-o depois, até que o viu entrar na tasca do Trancoso. Foi aí que se convenceu de que o homem que gozava a felicidade, até então inacessível para ele, de entrar naquela casa, que se lhe afigurava uma fortaleza inespugnável, era o Satanás.

Procurou a princípio descobrir que relações podia haver entre ele e a sua desconhecida. Mas, desistiu:

- Se é amante dela, melhor! Mais completa será a lição.

Empregou pessoas dedicadas para auxiliá-lo a espionar a casa. E ao cabo de alguns dias soube que a menina chamava-se Branca e vivia em companhia de uma velha espanhola. A obra de sedução prosseguiu. D. Emerenciana, a todas as ofertas de dinheiro, opôs uma resistência inabalável; só obteve como resultado excitar a impaciência e o desejo do príncipe, que se resolveu a empregar os meios violentos.

Organizou-se o plano de ataque. Uma noite, o príncipe escondeu-se nas obras que se faziam na rua do Conde, com dous homens dispostos a tudo. Todos armados, todos cautelosamente embrulhados em compridos capotes.

Das dobras do capote de um dos homens que acompanhavam o príncipe o mais alto e mais magro, o que parecia um grande ponto negro de admiração - via-se emergir uma durindana formidável. Era d. Bias. O momento não se fez esperar; por volta da meia noite viram chegar à casa o vulto do Satanás.

- Por São Tiago de Compostela! - ganiu d. Bias - temos mouro, senhor, temos mouro! Vou a ele?

O príncipe impôs-lhe silêncio. Como de costume, a demora do Satanás foi curta. Pouco depois saiu e desapareceu no alto da rua, para o lado da rua do Piolho. Os três homens saíram então do esconderijo, e d. Pedro bateu à porta as mesmas três pancadas do Satanás.

A porta abriu-se. Naturalmente d. Emerenciana pensara que era o Satanás que voltava a fazer-lhe qualquer recomendação, de que se esquecera. Mas, em menos de um minuto, agarrada de surpresa mal teve tempo de dar um grito, a velha viu-se solidamente amarrada e amordaçada, e entregue à guarda de d. Bias. O outro homem ficou de guarda à porta, e o príncipe subiu, levando o lampião que d. Emerenciana trouxera.

D. Bias sentou-se filosoficamente a um degrau, pousou a durindana nos joelhos e sacou da profundidade de uma das algibeiras do gibão uma naca de presunto.

- Sinto muito, sinto muito, respeitável dama, não lhe poder oferecer um pouco desta parca refeição. Desculpe...

E continuou esmoendo o presunto com um grande barulho de queixos, que soava na treva da escada como uma tempestade.

Mas, de cima, começou a chegar um barulho de passos e de vozes. Ah! bem que a boa Emerenciana distinguia a voz aflita de Branca. E desesperava-se a velha espanhola, sem poder acudir à sua querida filha, ali amarrada, diante daquele fantasma que comia. Por fim, ouviu-se um grito: e nenhum outro rumor chegou de cima.

Mas o homem que estava à porta, bradou:

- Quem vem lá?

E d. Bias engasgou-se com um pedaço de presunto, compreendendo que o companheiro batia-se lá fora com alguém, ouviu tinir de ferros, ouviu passos de quem fugia, viu a porta abrir-se e um homem entrar, tropeçando no corpo da velha.

Era Paulo de Andrade, que ouvira o grito e a quem a presença do homem armado à porta causara suspeitas. Ao esbarrar no corpo, abaixou-se e reconheceu-o.

D. Bias esgueirou-se como uma sombra pela parede, saltou à rua, disparou, tropeçou na espada, caiu, levantou-se, e foi cair extenuado à porta do Trancoso, de onde o Satanás vinha saindo.

Paulo de Andrade, preocupado em desamarrar a velha, nem dera por ele. Subiu a escada a quatro e quatro, de espada em punho, viu deserta a sala da frente, entrou como um cego no quarto de Branca.

Todo o quarto estava em revolução, cadeiras caídas, roto o cortinado do leito, onde Branca jazia estendida, sem dar acordo de si. O príncipe, vendo entrar o capitão, teve apenas tempo de apanhar a espada e pôr-se em guarda. Paulo arremeteu contra ele:

- Miserável!

Mas estacou de repente, e veio recuando até a parede, com um grande espanto na fisionomia alterada... Reconhecera o príncipe.

Lia-se então na face do moço capitão a luta que dentro dele se travava. Por duas vezes, pareceu atirar-se contra o seu rival. Mas d. Pedro esperava-o, sereno, com o olhar fito no dele. E Paulo, deixando cair a espada, cravou no peito o punhal, indo bater com a fronte na borda do leito, onde Branca continuava sem sentidos.

Quando d. Bias, à porta do Trancoso, conseguiu recuperar o uso da fala, começou a contar o caso ao Satanás, preparando-se para mentir à vontade.

- Ai! imagina, ó Satanás! eu amava, ele amava, elas nos amavam. Tudo pronto já, quando de repente vemos a casa invadida por duzentos homens armados... Duzentos? espera... não! não eram duzentos, mas eram cem. Caem sobre nós. Bati-me, como sabes que me bato sempre! mas...

Mas, onde isso? onde isso?

- Na casa, homem...

- Em que casa?

- Na casa da rua do Conde; ora ouve... Mas o Satanás não quis ouvir mais nada.

Aquele nome de rua do Conde encheu-o de um pressentimento terrível. D. Bias nada dissera mas o escultor ouvia uma voz secreta a gritar-lhe que era a filha quem corria perigo.

Não ouviu mais e correu, deixando em meio da narração o bravo fidalgo de Espanha, que entrou para a taverna, a afogar no seio de um pichel a sua sede de sangue.

O Satanás encontrou a porta aberta. Ah! era verdade! era verdade! Um rugido surdo lhe saiu da garganta, voou pela escada acima, louco de raiva e de terror. E parou à porta, sem movimento e sem voz, diante daquele quadro terrível.

Branca desmaiada ainda. Paulo, estendido no chão, sobre uma poça de sangue, e a velha rezando, ajoelhada diante do oratório.

O Satanás sentiu que a razão lhe ia fugir. Mas compreendeu. Sim! a sua filha fora desonrada por aquele miserável que ali estava estendido. Desonrada! desonrada a sua vida, manchado o seu único amor, calcada aos pés toda a sua felicidade!

Uma nuvem de sangue lhe cresceu diante dos olhos. Ah! era a velha a culpada. E, louco, trôpego, alucinado, embebeu a sua espada até aos copos entre as duas espáduas da espanhola.

O sangue jorrou de repente e borrifou de gotas vermelhas o manto de Nossa Senhora.

Nesse momento, uma gargalhada longa, sinistra, angustiosa, repercutiu no quarto. Branca assistira ao assassinato.

E de pé, cercada pelo véu de ouro dos cabelos, torcia as mãos, e ria, e ria, e ria. Enlouquecera.