Feitas as revelações e escorropichado o primeiro pichel ali na bodega do Trancoso, d. Bias pôs-se a refletir sobre o caso.
- O Satanás tinha partido na direção da rua do Conde. Lá chegando ele deveria necessariamente intrometer-se naquele drama tenebroso, cujos pormenores, ele, d. Bias, não conhecia, e cujo desenlace ficava para além, misterioso e vago como uma ameaça constante. E o Satanás, que não devia morrer, porque os homens daquela têmpera nunca morrem a botes de espada, o Satanás viria tomar-lhe contas, pedir-lhe satisfações do auxílio que prestara ao príncipe para que este lhe roubasse sua amante. E d. Bias esbugalhou os olhos em derredor, assustado e trêmulo. Sentiu a espada do escultor prancheando-lhe o costado manejada pelo pulso valente de Pallingrini. Supôs até o aço frio e cortante a entrar-lhe pelas carnes adentro. Teve medo, muito medo. E apalpou os ossos para saber se eles ainda estavam inteiros e bons, se não se tinham já esmigalhado com esta perspectiva infalível de uma vindita do Satanás.
- Também, quem lhe encomendara o sermão? quem lhe mandara meter-se nessas cousas e intrigas amorosas do príncipe? Já quando promovera a entrevista com Zabanila, a esperança dos lucros fabulosos que fizera, empanara-se com a expectativa da rivalidade com o mestre d'armas. Este pespegara-lhe uns cachações. E bastava. Pela primeira vez não tinha apetite de repetir.
E d. Bias reconheceu a necessidade de fugir; de esconder-se, fosse lá onde fosse.
Saiu.
Na rua teve uma idéia, idéia luminosa, dessas que só aparecem uma vez na vida de um homem.
Mau grado a sua nenhuma vocação para semelhantes empresas, atravessou o campo da Alampadosa todo inteiro, enveredou pela rua da Cadeia, e veio andando, pé aqui, pé ali, evitando as poças de água, aproveitando as pedras mais altas, às vezes esgueirando-se rente às paredes.
Chegou ao convento do Carmo e bateu, de espaços em espaços, compassadamente, numa porta baixa e estreita que dava para o largo. Abriram-na. Ele entrou.
- Então?
- Novidades.
- Mas ela está dormindo.
- Bem. Eu durmo aqui para esperar. Mas que ninguém saiba de minha presença nestes lugares.
E dormiu por sobre um caixote oblongo, desses que então serviam para guardar roupas de mulher.
No dia seguinte, pelo meio-dia, mandaram-no chamar.
D. Bias foi introduzido num vasto aposento luxuoso, onde morava ostensivamente a amante ostensiva de d. Pedro. Aposento de amores, onde a fantasia da mulher pusera alguma cousa de asiático, ele era suntuoso de comodidades, cheio de coxins forrado a pano da Pérsia com tachas de ouro e prata.
Ela, a quase rainha, esperava-o, molemente reclinada sobre o leito, com as grandes carnações leitosas e fortes de mulher sadia, apenas envoltas em uma vasta túnica de cachemira branca, bordada a ouro. Uma dama penteava-lhe com pente de ouro os longos cabelos castanhos e sedosos. E a Domitila sorria, triunfalmente bela.
D. Bias ajoelhou-se.
- Senhora! disse. - Senhora, eu tenho vigiado.
- E já descobriste porventura alguma cousa, oh! tu! meu belo fidalgo das Espanhas.
- Já, minha senhora.
- Pois conta-me lá a tua espionagem, fez a régia amante com um grande sossego de indiferenças.
Ela estava agora tranqüila de sua vida. Tinha conseguido do príncipe a promessa de um título, cuja coroa, reluzente de ouro e pedrarias, viesse lhe adornar os altos penteados à Maria Antonieta, de que tanto gostava. E essa viagem a Santos, que acabava de se efetuar naquela madrugada, fora ela quem a exigira, desejosa de converter esta cidade no feudo de seus amores.
Já não lhe vinham mais os ciúmes primitivos, que tanto acidentaram o primeiro período de suas ligações. Sentia-se feliz, forte e soberana, dominando o coração de d. Pedro e podendo permitir-lhe as pequenas escapadas das aventuras noturnas. E esquecia-se até de que encarregara d. Bias de vigiar os passos do seu régio amante.
D. Bias, porém, perorou longamente, espanholamente.
Contou o caso da rua do Conde, fazendo-o tenebroso, cavalgando a rédeas soltas no Rocinante das suas fantasias - d. Quixote dos ideais, ele mesmo, magro e esgalgado, lutador impertérrito de longa durindana para a batalha solene dos moinhos de vento.
- Fora o Satanás que fizera tudo. O Satanás! - a negra alma vagabunda da perversão e maldade! Fora ele quem, sem mais barregãs nem rameiras para oferecer ao seu régio discípulo de esgrima, quisera dar-lhe até a própria amante. Bem lhe conhecia os planos. Satanás queria dominar inteiramente o príncipe, dominá-lo pela amizade e dominá-lo pelo coração, para ficar o senhor absoluto dessa terra dos Brasis. Conspirava. Conspirava até contra ela - a bela nina formosa!
- É preciso matá-lo! Consiga ao menos que o deportem! Nada vos é impossível, a vós que fizestes deportar o conde d'Arcos.
A Domitila fez-se apreensiva. Ela não gostava do Satanás. E vinham-lhe agora receios de ver a fortuna esboroar-se-lhe no momento mesmo que supunha alcançá-la.
- Em todo caso, disse como que meditando, em todo caso agora não pode ser, porque o príncipe e o Satanás partiram esta madrugada para Santos.
- Caramba! resfolegou d. Bias com a notícia de estar longe o homem de quem tinha medo. - Caramba! porque se aqui estivesse, era eu quem o ia matar!
Ela nem sorriu dessa fanfarronada. Mas gritou-lhe imperiosamente:
- Quero essa mulher! Quero a amante de Satanás! Dou-te mil cruzados, se a trouxeres!
E, de pé, ofegante, com um gesto de rainha:
- Vá!
D. Bias saiu.
Caminhou pelas ruas, altivo e malcriado, retinindo a durindana pelas pedras, cofiando o bigode provocadoramente.
Estava longe o Satanás, e ele não tinha medo.
Por isso andou e correu a cidade inteira. Soube logo notícias do drama da rua do Conde. Vieram-lhe calafrios com a noção completa do perigo que correra. Mas dominava-lhe dentro da cabeça a idéia dos mil cruzados que lhe haviam sido prometidos, para o caso de descobrir a amante do escultor-espadachim. E tratou de encontrá-la.
Poucas esperanças tinha a este respeito. Não a conhecia. E as informações dos alguazis amigos, que andavam empenhados em desvendar o mistério da morte de Paulo de Andrade, falavam apenas em suspeitas de que naquela casa residisse uma moça, que devia ter fugido.
Fugido com quem?
Levá-la-ia d. Pedro para algum misterioso antro de amores?
Ou o Satanás tê-la-ia posto a seguro, em algum esconderijo desses que só ele conhecia?
D. Bias estava na incerteza. Não sabia que partido tomar. E pensava até em aproveitar a filha do carpinteiro Custódio, que lhe residia em casa, para fazê-la passar como amante do italiano.
O ponto para ele era receber o dinheiro da Domitila e passar-se imediatamente para qualquer terra longínqua, onde não chegasse o braço vingativo do seu ex-companheiro das bodegas do Mansanares.
Quando seguia, porém, já quase ao anoitecer, pela rua da Vala, chamaram-no de dentro da prisão provisória que ai havia, e onde eram recolhidos os vagabundos notívagos.
Era um alguazil, que ele pusera em meia confidência do negócio, e que lhe mostrou Branca, seminua, com as roupas sangrentas.
A filha de Pallingrini, logo após a brusca partida do pai, precipitara-se sobre o cadáver de Paulo de Andrade. Abraçara-o, beijara-o sofregamente, loucamente, na febre amorosa dessa loucura, que para sempre lhe entenebrecera o cérebro, triturando-lhe o coração.
Depois tivera medo, sentindo rijo e frio, sem aconchegos de abraços e quenturas de beijos, o pálido capitão formoso dos seus amores juvenis.
Teve medo e fugiu.
Perambulou pelas ruas, inconscientemente de si murmurando carícias e meiguices e gritando de repente um grito de horrores.
Prenderam-na.
D. Bias adivinhou-a. Não podia ser outra. Aquele sangue, as palavras incertas que pronunciava, e que podiam todas articular-se ao drama indecifrável da rua do Conde, revelavam-na, garantiam-lhe a autenticidade da descoberta.
E o fidalgo espanhol, aproveitando o alguazil seu amigo, e mais ainda o segredo da noite, que tem sempre um manto escuro para esconder esses mistérios, levou-a para os fundos do convento do Carmo, onde já estavam dadas ordens de recebê-la.
A Domitila nem quis ver a rival que o Satanás lhe pretendia impor. Mas não quis também contar logo o dinheiro que prometera, e ordenou que d. Bias ficasse de guarda a prisioneira.
E a porta pesada de um quarto térreo e sem janelas aferrolhou-se sobre Branca - a pobre criança louca, para quem a sorte se mostrava tão áspera, e que cantava entretanto um alegre bolero espanhol saltitante e amoroso como o pé das sevilhanas.