III

O AGOURO


Sobre uma pequena ondulação, que cingem de um e outro lado dois pequenos córregos, está assentada a cidade, então villa de Jaguarão, á margem esquerda do rio do mesmo nome.

Naquella tarde do dia 29 de setembro de 1832, havia no povoado uma agitação, que indicava algum facto extraordinário. Os habitantes em turmas enchiam as ruas, e especialmente a das Palmas, que fica fronteira ao quartel.

A razão desse ajuntamento, e do alvoroto que se percebia entre o povo, podia conhecel-a quem se desse ao trabalho de escutar as fallas daquelles bandos de curiosos.

— Foram batidos?

— Completamente. Rivera cahiu sobre elles que foi uma lastima.

— E Bento Gonçalves os prendeu?

— Não vae desarma-los?

— Ande lá, acodiu um tropeiro, que o Lavalleja é um duro. Ha de tirar a desforra.

Com effeito Juan Lavalleja, o heróe da independência de Montevidéu, sua pátria, tendo-se revoltado contra o presidente da republica, Fructuoso Rivera, fora afinal derrotado pelas forças legaes e obrigado a passar a fronteira.

Pisando território brazileiro foi o caudilho intimado pelo coronel Bento Gonsalves, commandante da fronteira do Jaguarão para entregar as armas, ao que submetteu-se sem resistência.

Fronteiro ao quartel, e em face da nossa tropa, formou a força rebelde. Os soldados com o semblante carregado esperavam o momento solemne de depor as armas. O sentimento dessa humilhação era partilhado por grande parte da população, imbuida de certo espirito militar.

Lavalleja dirigiu a seus companheiros de infortunio palavras de animação, que produziram effeito contrario. A cholera concentrada prorompeu em queixas amargas e violentas recriminações.

Afinal consummou-se o acto. Os soldados deixaram as armas em terra, e foram recolhidos presos ao quartel. D. Juan Lavalleja entregou a espada ao coronel Bento Gonsalves, que o hospedou em sua casa, emquanto não lhe dava destino.

Dispersava-se o povo, commovido pela triste cerimonia, quando o galope do cavallo de Manoel Canho resoou no principio da rua das Trincheiras.

O gaúcho apeou á porta de uma venda que dava pousada. Depois de recolher seus animaes ao potreiro, e guardar os arreios no canto que lhe destinaram, sentou-se no alpendre e pediu uma cuia de mate.

Já sabia o que desejava. O coronel estava na villa; logo mais, quando elle tivesse dado as providencias sobre o destino da gente desarmada, iria o rapaz procural-o.

No alpendre estavam diversas pessoas conversando sobre o acontecimento do dia:

— Se é verdade o que dizem; observou um selleiro com ar de mistério, o coronel não desarmou o homem lá muito pelo seu gosto.

— Ora esta do Lucas Fernandes! Si elle não quizesse quem o obrigava? Não é assim?

— De certo!

— Ainda não é tempo.

— De que? perguntou um ferrador.

— Olhem; desta ninguém me tira. O coronel antes queria ter filado o Fructuoso, do que o Lavalleja!

— Mas por que felix?

— Vocês verão.

O coronel Bento Gonsalves da Silva, veterano da guerra da Cisplatina, e commandante da fronteira de Jaguarão e Bagé, era então o homem mais respeitado em toda a campanha do Rio Grande do Sul. Franco e generoso, bravo como as armas, vasado na mesma tempera de Ozorio e Andrade Neves, montando á cavallo como o Cid campeador; era Bento Gonsalves o idolo da campanha.

Os homens o adoravam; as mulheres o admiravam. O mais sacudido rapaz achava cousa muito natural que as moças bonitas chegassem á janella para vêr passar o elegante velho, com seu talhe alto e espigado, e seu peito amplo e bombeado como a petrina do brioso ginete.

Sensível a essa fineza do bello sexo, o veterano alisava o bigode grizalho, pagando com um sorriso os olhares coados pelas rótulas. Ao mesmo tempo consolava os rapazes, fazendo-lhes um aceno com a mão, ou dirigindo-lhes algum dito picaresco.

Da influencia que exercia Bento Gonsalves sobre o animo da população, pôde bem dar uma idéa o que dizia ha pouco um dos camaradas reunidos no alpendre da pousada: «Si elle não quizesse quem o obrigava?» Estas palavras traduziam a convicção daquella gente. Para os habitantes do interior, o coronel era o rei da campanha: ninguém tinha o direito de lhe dar ordens; desarmara Juan Lavalleja porque assim lhe approuvera; como poderia protege-lo, unir-se a elle, e marchar sobre Fructuoso Rivera.

Havia então no Rio Grande do Sul outros coronéis, e entre elles o veterano Bento Ribeiro, que devia figurar posteriormente na historia de sua província de uma maneira tão triste; apagando as paginas brilhantes que sua espada leal tinha escripto em mais de um campo de batalha.

Mas o coronel por excellencia, aquelle em quem o povo havia personificado o titulo, como o mais bravo e digno, era Bento Gonsalves. De uma á outra fronteira da província, os estancieiros muitas vezes não sabiam ou não se lembravam quem era o presidente e o commandante das armas; mas qualquer pião ouvindo fallar no coronel, sabia de quem se tratava; e não se metessem a tasquinhar nelle, que a faca de ponta saltava logo da bainha.

Continuava a pratica entre os freguezes da venda:

— Cá por mim, si eu fosse o coronel, o que fazia era passar uma colleira vermelha ao pescoço do tal Lavalleja.

Estas palavras eram de um carneador. Colleira chamava elle no seu estylo pitoresco ao degolo que todas as manhãs fazia nas rezes destinadas ao corte da charqueada.

— Ora que mal fez o homem?

— Já se esqueceu do levante de Montevidéu?

— Não vejo crime em libertar um homem sua patria; acodiu o Lucas Fernandes. Fez elle muito bem, e nós cá não estamos muito longe de seguir o mesmo caminho. As cousas vão mal; o governo do Rio não dá importância aos homens da província. Já não demittiram o coronel porque têm medo.

— Lá isso é verdade! Atrevam-se que hão de vêr o bonito.

— Não é por falta de vontade dos de Montevidéo que não cessam de pedir.

— Poderá! Si não fosse o coronel entravam elles por esta fronteira como por sua casa.

Eram os prodromos da revolução que devia proromper três annos depois. A semente ahi estava lançada na população, e se desenvolvia com o vento sedicioso que soprava do Prata.

Uma voz infantil soara na rua perguntando:

— Papai está ahi?

Lucas Fernandes voltou-se para a menina que subia os degráos do alpendre.

— Que queres, Catita?

— Já se foi a tropa, papai?

— Pois não viste?

— Ora! Cuidei que iam brigar!

— Olhem a pequena! exclamou o ferrador a rir. Então você queria vêr-nos brigar com os castelhanos?

— Queria; ha de ser bonito!

— Assim gaúchinha! acodiu um tropeiro repuxando o bigode.

— Ainda hasde ter este divertimento, Catita, redarguiu o Lucas Fernandes. Tão depressa achasses tu um bom marido.

— Pois não ha de achar? Tão guapa moçoila!

Aqui estou eu que se ella não refugar Hein?

Catita, que diz? Ha de ser minha noiva.

— Quem conta com soldado? O noivo delia é cá o degas, que já nos ajustámos! tornou o tropeiro piscando o olho.

Sorria no entanto a menina com certo arzinho de malicia que frisava o botão de rosa da bouquinha a mais gentil. Ao mesmo tempo movendo lentamente a fronte em signal de recusa, meneava as duas longas trancas de cabellos negros, que, ondeando pelas espaduas, desciam até á bainha da saia curta de lila encarnada com vivos pretos.

Era realmente um feitiço a Catita. Seu talhe de doze annos, esbelto e airoso, não tinha as fôrmas da donzella, mas já no requebro faceiro resumbrava a graça feminina. Os olhos negros, como os cabellos, ella os trazia sempre a meio vendados pelas roseas palpebras; porisso, quando alguma vez se desvendavam, parecia que seu rosto se tinha banhado em jorros de luz.

A tez, quem a visse, em repouso, sob a negra madeixa, cuidaria ser alva; mas nas inflexões do collo e dos braços percebia-se, como sob a transparência da opala, uns reflexos de ouro fusco. Então conhecia-se! que era morena; e o tom calido da sua cutis lembrava o aspecto das brancas praias de areia, illuminadas pelos últimos raios do sól.

— Estão ahi perdendo seu tempo. Ella já me deu sua palavra. Não é, moça?

— Sahe-te, gabola, que o dunga está aqui; disse um pião plantando-se no meio da casa com a mão esquerda no quadril, e a direita no ar brandindo a faca.

— Está bem, não vae a brigar; acodiu Lucas Fernandes rindo. Qual delles escolhes, Catita?

— Eu, papai?

— Pois então?

— Eu... disse a menina esticando a perna bem torneada, e arqueando o pezinho calçado com um sapato de marroquim azul.

Suspensa um momento nessa figura de dança, emquanto percorria com olhar brejeiro os sujeitos da roda, acabou a frase descrevendo uma pirueta graciosa.

— Eu não escolho nenhum!

— Ora ahi está! disse o Lucas soltando uma gargalhada.

— Qual! Já está fazendo melurias.

— Meu noivo... Querem saber qual é?

— Então sempre escolhe!

— Ai que já estou me lambendo!

— Quem é?

— Olhe!

No canto opposto do alpendre, estava o Manoel Canho, sentado no parapeito, com o cigarro na boca, e a vista divagando pelos campos que se estendiam além do córrego, ás abas da cidade. Inteiramente alheio ao que passava junto, o gaúcho parecia de todo absorvido em suas cogitações.

Esta expressão de recolho intimo apagava certa aspereza de sua phisionomia. Visto assim de perfil, com a fronte descoberta, os cabellos que a brisa agitava, e o talhe desenhado pelo traje pittoresco do gaúcho, era sem duvida um bonito rapaz.

Foi a elle que se dirigiu Catita; e tocando-he no hombro, voltada para os outros, disse:

— Este!

— Não vale! exclamou o pião.

Sentindo no hombro a mão da menina, o gaúcho voltou-se com um olhar interrogador.

— É você que eu quero para meu noivo: disse-lhe Catita a sorrir.

— Quando fôr viuva, então sim, serei seu noivo! respondeu o gaúcho em amargo tom de ironia.

Afastou-se a menina com um espanto misturado de pezar. Da gente da roda, uns não viram no dito do gaúcho mais do que uma chufa, e riram; outros não lhe deram attenção.

Catita, porém, tomou aquella estranha resposta de Canho como agouro: e teve nessa noite um sonho bem triste.