Uma semana depois do casamento, Juca o filho mais moço da viúva, que teria cerca de três anos, adoeceu.

A princípio a enfermidade se apresentou sem o mínimo caráter de gravidade; não fizeram caso. Dias depois o mal tomou de repente um aspecto assustador, e ao cabo de algumas horas sucumbiu a criança.

Ficou a mãe inconsolável, não só da perda de seu filho mais querido, como também do pouco zelo que tivera no começo da moléstia. O marido a acompanhou no pesar; os vizinhos e pessoas da casa, todos, se mostraram sensibilizados com a morte do menino.

Manuel foi exceção no luto, como havia sido na alegria.

Enquanto os mais choravam, ele brincava risonho com o irmãozinho morto e já posto no caixão.

Uma rapariga, que ali estava, pergunto-lhe:

— Você não tem pena de seu maninho?

— Pena de quê?... Ele vai para onde está nosso pai. não quis o outro que lhe deram, não!... Também eu hei de ir, mas depois que tiver feito uma coisa!

Com a perda do irmão, ainda mais arredio da casa tornou-se o menino, do que era desde o casamento. Passava o tempo a campear, comia nos ranchos com os peões, e muitas vezes sucedeu por lá dormir. A mãe descansava sabendo que ele estava bom; e deixava-o em plena liberdade. A presença do filho produzia um vexame inexplicável, se não era um vago remorso.

Alguns meses passados, Loureiro falou em mudar-se para sua casa do Alegrete; a mulher acedeu prontamente a esse desejo, e começaram os preparativos. Ambos sentiam certa repugnância por estes lugares.

Manuel declarou desde logo que não sairia da casa paterna, senão amarrado. Resolveram pois não contrariá-lo; havia na vizinhança um velho peão, homem de confiança, a quem se podia incumbir a guarda do menino, até que o isolamento em que ia ficar vencesse a sua obstinação.

Tinha o negociante destinado a tarde da véspera da partida para fazer suas despedidas aos moradores da estância. Nesse desígnio se encaminhou para a varanda onde guardavam os animais.

Ali estava Manuel sentado em um cepo, divertindo-se em escovar o pêlo de um cavalo. O animal nada tinha de bonito; era alto, ossudo e esgalgado, mas saía-lhe fogo dos olhos, e a firmeza dos jarretes anunciava sua força e impetuoso vigor. Chamava-se Morzelo; fora o cavalo predileto de João Canho, o sócio de seus triunfos nas parelhas, o companheiro fiel de suas excursões e viagens. Não havia em toda a campanha de Bagé um corredor de fama como aquele.

— Arreie meu cavalo, disse o Loureiro a um peão que saía da choça.

— O cavalo está se ferrando.

— Não há aí outro animal?

— Só o Morzelo, que foi do defunto.

— Pois arreie.

Manuel estremecera. Vendo entrar o peão, atirou-se ao peito do cavalo, cingindo-lhe o pescoço com os braços, e procurando defendê-lo com seu corpo contra o intento do rapaz, que se preparava par selar o animal.

— Não arreia que eu não deixo! exclamou o menino com raiva.

Lágrimas de cólera e dor saltavam-lhe dos olhos, e caíam sobre a cabeça do animal que ele apertava ao peito para subtraí-lo ao freio. O Morzelo, dócil e submisso, deixava abraçar-se pelo menino; mas a sua pupila negra às vezes incendiava-se e desferia rápidas centelhas.

Acudiu o negociante que ouvira os gritos de Manuel e, retirando-o à força, acenou ao peão indeciso:

— Ponha o freio!

— Não há de pôr! gritou Manuel. Quer tomar o cavalo de meu pai, como já tomou a mulher. Está muito enganado!

O teimoso menino, aproveitando-se da comoção que suas palavras tinham produzido no negociante, escapou-se e travou do freio, forcejando por tirá-lo da mão do peão. Nova luta se travou entre Loureiro e o enteado, a quem o desespero duplicava as forças.

O negociante irritado subjugou o menino contra as varas da ramada, enquanto o peão, assoviando com certa indiferença escarninha, acabava de arrear o animal.

— Solta-me, demônio! gritava Manuel.

— Meio, sossegue, se não quer que o amarre.

— Tu és capaz?

O peão acabara de selar o cavalo, que puxara para fora da ramada. Prendendo Manuel dentro da palhoça, o negociante saltou na sela, antes que o alcançasse o menino que forcejava por abrir a cancela, mal segura com uma correia.

Vendo Loureiro montado no cavalo, sucumbiu o menino. Com o semblante horrivelmente pálido, os braços caídos e o corpo vacilante, seus olhos pasmos projetavam-se das órbitas, com o arrojo de sua alma, para o animal que não podia proteger.

Entretanto o Morzelo, parado ainda, fitava de esguelha a pupila nos olhos do menino, soltando um relincho soturno, que lhe arregaçava o beiço, e mostrava a branca dentadura. Seria acaso um riso sardônico do cavalo?

O caso é que os olhos do menino irradiaram; e do choque dos dois lampejos súbitos, chispou uma centelha ardente. Nesse momento, não obedecendo o Morzelo ao toque das rédeas, o negociante roçou-lhe as esporas. Estremeceu todo o brioso cavalo, mas estacou, na aparência calmo; foi quando o negociante fincou-lhe as rosetas, que ele girou sobre os pés com espantosa rapidez, e atirou-se pelo campo fora aos trancos, semelhante a uma bala que salta fazendo chapeletas.

O menino seguia a cena com ansiedade; seu peito ofegava; a respiração ardente lhe crestava os lábios entreabertos; por vezes seu rosto como que imbutia-se em uma lividez marmórea, cuja expressão era má e sinistra.

De repente soaram dois gritos: um de prazer, outro de angústia.

O Morzelo, abolando o corpo, rodara pela cabeça, esmagando o cavaleiro no chão duro e pedregoso. Quando o peão chegou em socorro do negociante, já o achou moribundo.

A esse tempo o cavalo correra para Manuel que o abraçou, e saltando ligeiramente na sela, começou a ginetear pelo campo. O árdego animal, pouco antes furioso contra um cavaleiro destro e robusto, agora dócil e submisso sob a mão débil de um menino, escaramuçava pelo gramado soltando relinchos de alegria, e amaciando o galope para não sacudir o gauchito.