Uma semana tinha decorrido, depois que Manuel Canho deixara Ponche-Verde.
Deviam ser 10 horas da manhã.
Estava Jacintinha sentada no alpendre da casa ocupada em bordar a crivo uma nesga de cambraieta. Seus dedos ágeis iam debuxando os relevos do desenho, estampado em um molde cujos lavores apareciam sob a transparência do linho.
A linda menina prometera a Nossa Senhora cobrir com uma toalhinha bordada por suas mãos o berço de seu adorado Menino Jesus, para que a Virgem em sua infinita bondade conservasse à mãe o filho ausente.
Por isso, desde muitos dias se ocupava a menina tão assiduamente com esse trabalho. Estava impaciente por cumprir a promessa, e assegurar para seu querido irmão a proteção da Mãe de Deus. Em sai fé ingênua, imbuída das crenças populares, pensava ela que o favor divino dependia dessa humilde oblação. Acabada a toalhinha e levada ao altar para servir no dia de Natal, Manuel ficaria invulnerável; não haveria mal que lhe chegasse mais.
Soou no campo o tropel de uma cavalo. Erguendo os olhos com a curiosidade própria de sua vida retirada e monótona, viu Jacintinha um cavaleiro desconhecido; pelo ar, como pelo trajo, dava mostra de não ser do lugar. Tinha um chapéu de abas curtas e reviradas, com galão à moda espanhola; calções e jaleco de pano verde-escuro bordado com torçal escarlate; faixa de seda vermelha; e botas à escudeira.
O cavaleiro também de seu lado já tinha descoberto Jacintinha, e olhava para ela atentamente. Passando além da casa, voltou-se na sela e assim caminhou algum tempo para não perder de vista a moça.
Seguiu o desconhecido na direção do pequeno povoado, que se compunha apenas de uma dúzia de casebres agrupados na margem do arroio. Não havia decorrido meia hora, quando ele tornou pelo mesmo caminho, passando segunda vez em frente à casa. Agora, porém, trazia o cavalo, a sacar, não só para mais garbo do andar como para disfarce da demora.
Esse passo alto e cadente, que o animal tira com nobreza, apesar de vivo e pronto, pouco avança; e sucede muitas vezes, colhendo a rédea o cavaleiro, ser marcado no mesmo lugar, à semelhança de um soldado quando executa uma evolução. Foi justamente o que sucedeu daquela vez.
Quase fronteiro ao alpendre, o desconhecido fez o cavalo brincar no mesmo terreno, sem adiantar uma polegada; ao contrário, de vez em quando empinava o garboso ginete, que passarinhando recuava a escarvar o chão.
No meio destes floreios o cavaleiro cortejo com um gesto de galanteria a moça, que excitada pelo rumor erguera os olhos, porém logo os abaixou confusa para o bordado, onde ficaram pregados.
Depois de algumas escaramuças, para chamar de novo a atenção da menina, vendo que era baldado o intento, usou o cavaleiro de uma estratégia. Fez empinar o ginete e soltou um grito fingindo espanto ou medo. Assustada, Jacintinha voltou-se, cuidando que uma desgraça sucedera ao desconhecido.
Mas este, risonho e sempre galante, fez um novo cortejo com o chapéu, e partiu a galope, antes que a menina voltasse a si da surpresa.
No dia seguinte repetiu-se a cena da véspera, com a diferença de que Jacintinha já prevenida noa mostrou a mesma curiosidade, embora até certo ponto a sentisse. Em vez de olhar de frente para o cavaleiro, ela acompanhava de esguelha seus movimentos, parecendo unicamente ocupada com o bordado.
A insistência do desconhecido em passar todas as manhãs afugentou Jacintinha do alpendre ao cabo de três ou quatro dias. De dentro da casa, pela fresta da janela, sem ser vista, reparava quando o mancebo já de volta de seu passeio, sumia-se ao longe; e então ia tomar o cantinho do costume.
Um dia o desconhecido, suspeitando do que passava, depois de ter acabado seu passeio, escondeu-se por perto. Quando a menina tomou seu lugar, ele aproximou-se sem que o percebessem, e ficou enlevado em contemplar a beleza da irmã de Manuel. Por acaso Jacintinha deu com os olhos nele, assim embebido em êxtase e adoração; estremeceu, empalidecendo de susto; quis erguer-se para fugir, mas caiu sobre o banco, e aí ficou palpitando com a cabeça baixa e o corpo inerte.
O desconhecido tinha desaparecido, e três dias não voltou.
À tarde, aparecendo uns dois peões que vinham ver a viúva e saber notícias do Manuel Canho, falaram das novidades da terra e contaram o que se dizia pelas vendas e povoações a respeito da rusga.
— Agora está arranchado na estância um chileno que veio da outra banda, e vai até Cruz Alta; ele diz que a rusga não tarda.
— Pois decerto, desde que demitiram o compadre, acudiu Francisca.
Jacintinha estremeceu, ouvindo falar no estrangeiro. Foi com a voz trêmula e disfarçando sua confusão que ela perguntou a um dos peões, enquanto o outro continuava a conversa com a mãe:
— Esse sujeito que chegou... também vai para a rusga?
— Qual! Anda vendendo seu negócio, e o mais é que traz coisas bem chibantes! Não quer ver? Ele mostra...
— Não! respondeu Jacintinha banhada em uma onda de púrpura.
Quando se retiraram os peões, a moça no meio das cismas em que se enleava seu espírito, murmurou consigo:
— Qualquer destes dias ele se vai embora e eu fico descansada.
A primeira vez que apareceu o desconhecido, depois de sua ausência de três dias, estava completamente outro do que antes parecia. Já não era o cavaleiro risonho e faceiro, porém um mancebo pensativo, acabrunhado por algum oculto pesar; seu formoso cavalo castanho partilhava a tristeza do senhor: não tinha mais o garbo antigo, andava agora a passo, com o pescoço estendido e a cabeça baixa.
Jacintinha, que deixara o alpendre apenas reconheceu de longe o cavaleiro, acompanhando-o com a vista pela fresta da janela, reparou na mudança que se tinha operado no ar e maneiras do mancebo. Teve um pressentimento de que era ela a causa dessa mágoa, e por sua vez reclinou a cabeça pensativa.
Dias depois a moça descobriu que lhe faltava, lá para certa costura, uma tira de fazenda. Consentindo Francisca na despesa, prometeu fazer a encomenda pelo próximo peão que fosse a SantAna do Livramento.
— Quem sabe se o sujeito que está arranchado na estância não terá?
— Ele é mascate?
— O Antônio disse que era.
— Pois mande-a ver.
O peão incumbiu-se da comissão, e no dia seguinte apresentou-se em casa de Francisca o desconhecido cavaleiro, que não era outro senão D. Romero. Avistando-o, Jacintinha arrependeu-se de sua imprudência, e quis remediá-la não aparecendo ao mascate; mas era tarde. Ele a tinha cortejado com um modo tão delicado!
O chileno mostrou a Francisca e à filha uma grande porção de jóias e galanterias, que trazia para tentar as damas. As duas mulheres se esquivaram, dizendo que estes objetos não eram para elas, e sim para gente rica; mas D. Romero tinha palavras tão insinuantes, maneiras tão corteses, que elas não puderam afinal resistir ao desejo de ver coisas tão bonitas.
Na passagem dos objetos de mão em mão, o chileno aproveitou a ocasião para cerrar os dedos mimosos da moça. Ela zangou-se, mas encontrou um olhar suplicante, que a desarmou. Contudo resguardou-se contra nova tentativa.
D. Romero cativara o agrado de Francisca e desde então era bem recebido sempre que se apresentava em sua casa sob qualquer pretexto.