O alazão arrojou-se e fendeu os ares como uma águia; os pés nem pareciam tocar a terra, de tão rápida que era a corrida.

Com pouco vencendo a grande distância, aproximou-se da mula, que no auge da fúria, disparava em trancos formidáveis. A borda do precipício já não estava longe, e não tardaria que o animal num daqueles saltos precipitasse do barranco abaixo.

A gentil cavaleira sentira a iminência do perigo, e parecia que se preparava para evitá-lo. Sua mão, colhendo as amplas dobras da saia do roupão, revelava a intenção de saltar da sela. Naquelas circunstâncias, em um terreno tão áspero e com a sanha do animal, a resolução da moça podia ser-lhe fatal.

Mas que fazer? Diante estava o precipício do qual aproximava-se com espantosa velocidade. Se tinha de morrer, Catita preferia que fosse antes ali sobre o campo, do que no fundo de um barranco onde talvez seu lindo corpo chegaria dilacerado pelas pontas de pedra e tocos das árvores. Essa idéia triste porém, não se demorou no espírito da moça, passou como uma borboleta agoureira roçando as asas negras por seu espírito e logo se desvaneceu.

A destemida cavaleira, fiada em sua agilidade, contava livrar-se do furioso animal saltando da sela no momento oportuno. Para ela, a catástrofe iminente, cujo desfecho estava tão próximo, ainda não passava de um divertimento. Com a descuidosa imprevidência da mocidade, não podia acreditar que um incidente comum se convertesse para ela em uma desgraça.

Observando os movimentos da moça, Manuel hesitou um instante. Seu plano concebido de relance, na ocasião de saltar sobre o costado do alazão, era alcançar a mula, e travando-lhe do freio subjugá-la para que a moça pudesse apear-se sem perigo. Se, apesar da velocidade do Juca, não houvesse tempo de apanhar a mula por causa da pequena distância em que já estava da barranca, então como recurso extremo, o gaúcho tivera uma idéia:

— É laçar mula e moça tudo junto! disse o Canho consigo.

Por isso tinha passado a mão ao laço no momento de partir; mas percebendo agora na cavaleira o intento de saltar do animal receou ver burlado seu plano. Podia, no momento de alcançar ele a mula, ter já saltado a moça que ficaria então esmagada pelas patas do alazão. Também no atirar o laço via o perigo de esbarrar a mula bruscamente na ocasião de pular a cavaleira, a qual perdendo o equilíbrio, sucumbiria aos coices do animal enfurecido.

Nesta perplexidade, ainda mais se complicou o caso com um grito que feriu o ouvido do gaúcho, reboando pela campanha:

— Salta, Catita!

Era a voz estrepitosa de Lucas Fernandes que, advertido pelo grito do preto, transmontara a galope, em companhia de Félix, uma pequena coxilha, e vendo o que passava, compreendera o perigo da filha e a única esperança de salvação que restava.

— À direita! acrescentara Félix.

Um movimento que fez a moça para voltar o rosto e um rápido aceno da mão indicavam que ela ouvira a advertência do pai, e apenas aguardava um momento oportuno para seguir seu conselho. Ao Canho não escapou esta muda resposta, que pôs o remate à sua contrariedade.

— Não salte! exclamou ele em tom resoluto.

Ouvindo a recomendação do gaúcho em contrário à sua ordem, o Lucas perfilou-se na sela e arrancou do peito um berro formidável:

— Salta, com mil demônios!

— Não, replicou o gaúcho imperiosamente.

Catita, voltando a custo o rosto, viu de través Manuel que estava apenas a três braças de distância, e compreendeu que ele vinha em seu auxílio. Revoltou-se a vaidade da moreninha contra esse importuno. Antes despenhar-se do precipício, do que dever a salvação a alguém.

Estaria a moça presa já da vertigem dessa corrida veloz, ou era a petulância natural de seu ânimo juvenil, que a fazia brincar assim com a morte? Por uma ou outra causa ela, que um instante concebera a esperança de refrear a mula, castigou-a de novo com força. O animal, já colérico, exasperou-se, arrancando como uma péla.

Mas o alazão, sentindo a leve pressão dos joelhos do Canho, projetou-se como a haste de uma lança arremessada com vigor; e em dois tempos alongou-se pelo flanco da mula, disposto a espedaçar-lhe a cabeça ao menor sinal do gaúcho.

Deitando-se sobre o pescoço do cavalo para tomar o freio à mula, sentiu Manuel uma doce pressão na ilharga, ao mesmo tempo que ressoava a seus ouvidos uma risada zombeteira. Catita estava sentada na garupa do alazão, com a mão passada pela cintura do gaúcho.

Como isto acontecera, ninguém poderá compreender, tão rápidos e imprevistos foram os movimentos da moça.

Convencida do risco de atirar-se do animal abaixo, Catita hesitava quando percebeu Manuel. Precipitando a corrida da mula para evitar que o gaúcho a salvasse, ela não pretendia sacrificar-se como parecera. Tinha avistado adiante uma árvore, sob cujos ramos ia passar.

Foi ali que Manuel alcançou a mula. Já suspensa a um dos galhos a moça sentou-se tranqüilamente nas ancas do cavalo, e ali ficou de garupa, como naquele tempo era usa viajarem as mulheres que tinham medo de montar.

Com a surpresa que sofreu, Manuel esteve um instante perplexo, não sabendo a que atender, se à moça que ria-se ainda, se à mula que fugia sempre. Foi quando o animal com as mãos já erguidas sobre o precipício ia despenhar-se, que Manuel, atirando o laço, o suspendeu em meio da queda.

Para isso o gaúcho se lançara do cavalo abaixo; e apoiando a trança da árvore, imprimira tamanho arranco ao laço que a mula, cingida pelos peitos, rodou, estendendo o costado pelo chão.

Nisso chegaram Lucas e Félix; em um momento estava a mula subjugada pelos dois viajantes, que, depois de tirados os arreios, meteram-lhe o rebenque de rijo.

— Deixa-te de partes, mula! dizia o Félix.

Catita tinha saltado da garupa do alazão, e observava de semblante risonho a luta dos três homens com o animal. Havia em seu rosto gentil uns assomos de orgulho satisfeito, por ter escapado, incólume e sem auxílio, ao perigo.

— Que tal a rapariga, hein? perguntou o Lucas Fernandes.

— Sacudida, como ela só! respondeu o rapaz. Pensei que não agüentasse.

— E eu também! Caramba!

— Ora, papai! disse a moça com um ligeiro muxoxo. Não caio por tão pouco; nem preciso que me segurem para saltar da sela.

Estas palavras foram ditas com direção ao Canho, que enrolava o laço tranqüilamente. Acompanhando o olhar da filha, reparou Lucas no taciturno gaúcho.

— Então o senhor não queria que a menina saltasse, camarada? disse o furriel de milícia com um riso cheio.

— Não, respondeu concisamente o gaúcho.

— E por que razão?

Manuel encolheu os ombros.

— Ele tinha medo que eu caísse debaixo dos pés do alazão. Papai não o viu correndo para agarrar a mula pelo freio; mas quis mostrar que também sou gauchinha! Saltei-lhe na garupa!

— Deveras?

— Tal e qual! disse Manuel sorrindo.

— Assim, rapariga.

Aproximava-se a Maria dos Prazeres, choteando no machinho:

— Sempre escapaste, menina?

— Então, mamãe.

— Jesus! Vi-te em pedacinhos, debaixo dos pés da endemoninhada da besta. Sou capaz de jurar que está espiritada.

— Mamãe teve muito susto?

— Ainda tu falas! Estou sem pinga de sangue.

Entretanto o Canho, tendo enrolado o laço, tocou na aba do chapéu e saltou sobre o Juca.

— Até mais ver, senhores!

— Também nós vamos, disse Lucas Fernandes. Anda, Catita.

A rapariga arregaçando a saia de montar, e apoiando a ponta do pé no bocal do estribo, pulou na garupa do cavalo em que montava o pai.

— O senhor que rumo segue? perguntou o miliciano.

— Parei aqui para descansar, respondeu o Canho, iludindo a pergunta.

— E o mais é que precisamos fazer o mesmo. Não achas, Vidoca?

— Que dúvida, Sr. Lucas. Eu estou que não posso comigo; então com este susto, estão me tremendo as carnes, como se tivesse frio de maleita.

Contrariado por esta companhia que lhe viera tão fora de propósito, e cogitando algum meio para descartar-se dela, o Canho dirigia-se para restinga de mato onde estivera deitado. Era o único lugar, que por ali havia, próprio para descanso, não só pela boa sombra, como pela proximidade d’água.

Examinando com atenção disfarçada o gaúcho, Fernandes desconfiava que sob aquela reserva taciturna havia algum mistério, que ele procurava com afinco perscrutar.

Naqueles tempos de agitação, que precederam a guerra civil, a suspeita do miliciano era natural. A conspiração lavrara surdamente por toda a província; e receava-se de um momento para outro a explosão.

Depois de alguns instantes de observação, Lucas reatou a conversa.

— Nós cá vamos para Piratinim visitar a madrinha de Catita, minha irmã Fortunata, que nunca viu a afilhada, depois que se fez moça. Se o senhor também segue este caminho, iremos juntos.

— Não sei ainda que rumo tomarei. Tem seus conformes.

— Está bom. Vejo que não quer que se saiba.

Neste ponto, pela estrada que lhes atravessava em gente, na distância de duas braças, passou um cavalo ruço pedrês, baralhando em rápida guinilha. Ia montado por um peão com poncho de baeta encarnada e levava de garupa uma rapariga de seus vinte anos. Com o vento, a saia de chita da rapariga levantava, mostrando as pernas bem torneadas e descalças.

Catita reconheceu a Missé, e disse-lhe adeus:

— Também vamos chegando para a festa, exclamou a rir o peão, e não era outro senão Chico Baeta.

Sabendo que a revolução ia rebentar em Piratinim, o rapaz deitou a roupa na carona, a namorada na garupa, e transportou-se com tudo quanto possuía para sua nova residência.

Tinham os viajantes chegado ao capoão onde Félix e Maria dos Prazeres tratavam de arranjar, sobre a grama, a refeição que tiravam dos alforjes.