Não era possível que Manuel abandonasse o Morzelo, seu amigo de infância, o confidente de suas mágoas, o companheiro fiel e dedicado de João Canho.

Nem de longe semelhante idéia perpassou em seu espírito. Morena e Juca eram sem dúvida os mais lindos e briosos corcéis, que jamais pisaram com a rija pata a verde grama dos pampas. Manuel os amava com entusiasmo e dedicação; mas ao velho amigo, votava ele amizade profunda, repassada de certo respeito, ou quase veneração.

O cansaço produzido pelo longo serviço; a rigidez dos músculos, ressequidos pela muita idade; o amortecimento do fogo e vigor de outrora, se diminuíam o valor físico do ginete, aumentavam a afeição de Canho. Ele tinha por estas debilidades do ancião uma piedade filial. Montado no Juca, ardente mancebo, ou na Morena, travessa rapariga, o gaúcho não escolhia caminho, nem rodeava uma cerca ou largo valado, que preferia salvar de um pulo. No Morzelo porém evitava todo o esforço que podia alquebrar as forças do velho; e poupava com solicitude os sobejos do antigo vigor, bem como os brios do veterano corcel, facilitando-lhes as gentilezas, para não humilhá-lo diante da baia e do alazão.

Esteve Manuel um instante perplexo, não porque nutrisse a menor dúvida sobre o que exigiam dele, em relação ao Morzelo, sua consciência e seu coração. Pensava como faria chegar a Neto o resultado da missão de que se incumbira.

A ponto justamente de seu desejo apareceram além três cavaleiros nos quais o gaúcho reconheceu à primeira vista o Chico Baeta, e mais dois parceiros do famoso pacau. Ao sinal de que lhes desejava falar, pararam eles à espera do gaúcho.

O Chico Baeta cortejou Canho friamente, como quem guardava dele profundo ressentimento. Não escapou ao gaúcho esta circunstância apesar da sua triste preocupação; mas tinha coisa mais séria a tratar do que as carrancas do amante da Missé.

Você vai para a vila? perguntou Manuel chamando-o de parte.

Conforme! respondeu o peão de mau modo.

É preciso que vá, e sem perda de tempo, tornou o Canho com autoridade. Diga a Neto... ouça! Diga que Silva Tavares está nas vizinhanças do Serrito, na estância da encruzilhada do Orqueta com o Piratinim. Terá cem homens, metade soldados, o resto paisanada; mas a cada hora chega gente. Para atacar, o melhor é pelo passo da Maria Gomes; ganhar a estrada do Erval, e voltando cair sobre os sujeitos pelo fundo da estância. Mas o tenente-coronel é vivo como azougue, e está alerta. Adeus!

Curioso e interessado nos pormenores que o gaúcho lhe comunicava, esquecera Chico por momentos sua má-vontade, que tornou, passado o incidente, com a despedida de Manuel.

E por que não vai o senhor mesmo ganhar essas alvíssaras?

Tenho que fazer por cá.

Ora! Não há na vila quem o mereça?... disse o Baeta com um riso de mofa, em que se percebia travo de fundo pesar.

Canho interrogou com um olhar severo a fisionomia do peão.

Você tem alguma coisa comigo, Chico? É por causa do pacau? Bem viu que foi uma brincadeira: a rapariga lá a deixei naquela mesma noite.

Brincadeira, não! Dívida de jogo é dívida de honra. Eu não sou ladrão para tomar aquilo que perdi. O senhor ganhou a moça; ela é sua, lhe pertence. Senti cá dentro: mas não tinha que ficar zangado com o amigo, porque a sorte o favoreceu. Agora o que nunca pensei foi que se fizesse pouco caso da rapariga e a deixassem andar aí rolando pelas ruas como um trapo que o vento arrasta. A Missé não é nenhum peixe podre, Sr. Manuel Canho! Há aí alguma que lhe chegue aos pés, mesmo dessas mulheres de truz? Então quando ela se enfeita, mete a todas num chinelo! E para bailar o tatu? Que requebros, que denguices de minha alma! Ai, nem me falem!

O Chico Baeta enternecido mergulhou a cabeça pelo ombro para disfarçar o choro que lhe marejava do coração.

Uma rapariga como esta é para se tratar assim de resto, que nem rebotalho?... Quanta gente graúda não se daria por feliz de possuir um peixão daqueles? Sempre tão desejada e tão querida, quem nunca pensou que havia de nadar à toa pelas ruas, como matungo sem dono? Coitadinha, cortava o coração de a ver assim desprezada; quando me encontrava com ela, fazia tudo para a consolar: "Ele não te conhece, Missé; por isso... — Qual? me respondia; não o mereço." E lá vão quase oito dias!

Mas, Chico!... atalhou Manuel atônito do que ouvia.

Não tem mas nem mês, Sr. Canho, retorquiu o peão formalizado. O senhor me afrontou duas vezes: a primeira vez me fazendo passar por um homem namorado de uma mulher à-toa de que ninguém faz caso, assim um lorpa que apanha o cisco da rua. A segunda vez tratando de resto minha companheira que o senhor ganhou para sua namorada e não para sua escrava. É o que lhe digo; o senhor me insultou, e me há de dar satisfação.

Bem; eu lhe escutei calado; agora ouça. A Missé é a mais bonita moça que pode haver; naquela noite não sei com foi que nos perdemos, e você viu que no outro dia saí a toda pressa com a incumbência do Neto. Mas que ver, Chico, o preço que tem para mim sua namorada? Eu daria tudo para voltar agora mesmo à estância, e saber onde ficou um amigo que não trocaria por todas as raparigas do mundo. Quem sabe se o mataram?...

Que amigo é esse? perguntou o Chico.

Morzelo, o cavalo de meu pai. Se o tiverem morto, hei de vingá-lo! Mas Neto espera as notícias; quando eu voltar, será tarde sem dúvida. Por um homem seguro que vá a Piratinim já, sem tomar fôlego, embora arrebente, eu dou o que tenho de mais valor, dou a Missé. Quer ser esse homem, Chico?

Como?

Faço uma aposta. Se você chegar à vila ainda com dia, bateu nove; tira a desforra do pacau e ganha a rapariga. Mas você não é capaz!...

Sério!

Feche! exclamou Canho estendendo a mão.

Está fechada.

Mal soavam estas palavras, que já os dois cavalos arrancavam à rédea solta em direção oposta. Quando os peões devorando as lombas da várzea atingiam o dorso das fronteiras coxilhas e iam transmontar, voltaram-se para trocarem rápido aceno; dois gritos fenderam os ares.

Saudades à Missé!

Abraço no Morzelo!

Mesmo a correr, Manuel saltando para a garupa do animal, afrouxou os arreios que na rápida passagem pelo campo arremessou dentro da primeira moita, onde ficaram ocultos. Qualquer outro dificilmente acertaria depois com o lugar perdido no meio da vasta planície; mas para o gaúcho cada acidente da campanha era um traço, uma feição de sua fisionomia, e mesmo de relance gravava-se profundamente em sua memória.

Livre dos arreios, o intrépido peão lembrandose que Juca já correra seis horas, chamou a Morena, e de um salto se transportou para o outro animal, sem afrouxar a carreira em que ia.

De espaço em espaço deixava o Canho um dos animais da tropilha escondido nalguma sanga ou restinga. Agora só o acompanhava o alazão; mas não perto como de costume, e sim muito de longe, quase a perder de vista. Quando o gaúcho precisasse dele, bastava um sinal da baia.

Já durava algumas horas aquela corrida, quando surdiram longe alguns cavaleiros. Manuel tinha o maior empenho em não ser visto; sobretudo por aqueles homens que ele suspeitava serem os peões do rancho, ou pelo menos gente de Silva Tavares; era preciso deixá-los passar sem o pressentirem, para prosseguir em busca de Morzelo.

Ao avistar os cavaleiros não teve a menor surpresa nem hesitação. Desde muito que ele estava preparado para os encontros; prevenira qualquer situação em que se poderia achar: para cada uma inventara recurso, quando a posição não lhe oferecesse.

Assim, antes que os cavaleiros o descobrissem, pois de precaução ele corria deitado sobre o animal, já a baia estava mergulhada em um brejo coberto de tanchagens e aguapés, cujas folhas gigantes ocultavam a cabeça da égua e o corpo do homem.

Os peões não tardaram a passar.

O Félix está queimado! dizia a rir um dos cavaleiros.

Não abre a boca!

Pois se o cão raspou-se!

Manuel não ouviu mais do que estas palavras; porém não lhe escapou que o ferro da lança do rapaz estava ensangüentado de fresco.

Decorrida meia hora depois do primeiro encontro, Manuel descobriu não pela frente, mas à direita um troço de gente a cavalo. Era, sem dúvida, alguma partida pela qual o Silva Tavares mandara bater a campanha em roda da estância para evitar surpresas.

Desta vez a posição era crítica. Manuel estava em campo raso, onde não ser percebia touça de macega, ou moita de camboim, capaz de esconder um veado, quanto mais um homem e seu cavalo. O gaúcho porém não trepidou; já então montava ele o Juca. Não se imagina a rapidez incrível com que deixou-se escorregar ao longo de uma ondulação do terreno, sobre o qual o alazão deitou-se, cobrindo-o inteiramente com seu corpo. Entre o chão e o flanco do animal apoiado no cômoro de relva, havia um vão onde o gaúcho se estendera comprimido pelo peso do quadrúpede; os interstícios que podiam denunciar o trajo, eram tapados pelos tufos de capim.

O troço de gente armada passou a duas braças do Juca, e não vendo mais que um animal deitado, como se encontra a cada instante na sombra, seguiram seu rumo, e sem a menor suspeita de que deixavam ali o inimigo.

Afinal avistou Canho além o rancho dos peões, e imediatamente distinguiu a meio caminho um vulto negro, que ele reconheceu. Era o corpo do Morzelo. Estaria vivo ou morto? O rincho triste e plangente da Morena, que assomara ao longe a sota-vento, era uma elegia de dor e saudade.

Quando Manuel chegou junto do corpo, tinha o coração túmido e os olhos cheios de lágrimas. Ainda vivia o velho corcel; mas estava moribundo. Lançar-se a ele; sondar-lhe a ferida; rasgar a camisa para estancar-lhe o sangue; foi o primeiro ímpeto do gaúcho. O cavalo fitou os olhos no dono, com uma expressão eloqüente e expirou.

Ajoelhado junto ao cadáver, e abraçado com ele, Canho deu expansão à sua dor.

— Morreste, meu amigo; chegou tua hora. A nossa, a de teu companheiro de infância e de teus camaradas, talvez não esteja longe; talvez que vamos ter contigo muito breve! Mas eu sempre pensei que a ti, o bravo dos bravos, estava reservada a fortuna de morrer combatendo, e não pela mão traiçoeira de um malvado!... Morreste por dedicação; mas serás vingado, amigo! Eu juro sobre tua sepultura; e esses dois irmãos juram comigo.

O Juca e a Morena que gemiam sobre o corpo do companheiro, escavaram o chão com a pata, e dardejaram ao longe um olhar que parecia uma espadana de fogo.

Canho fez um esforço; tinha ainda um dever a cumprir para com o amigo: era o de dar-lhe sepultura, para que não fosse pasto dos abutres. Com o ferro da lança e as mãos abriu uma cova profunda na próxima capoeira; e arrastando o corpo de Morzelo o inumou nesse jazigo que ele consagrou com uma cruz, como se fosse o túmulo de um cristão. Para Manuel aquele era o símbolo do que há de santo na terra.