Aproximando-se de Assis pelo caminho pálido e empoeirado que contorna a subida do monte Subásio, ora revelando, ora ocultando a pequena cidade exótica, enquanto o vento sopra através das oliveiras e ramos de ciprestes, você eventualmente chega a uma bifurcação, onde você deve escolher seu caminho entre uma rota mais alta e outra mais baixa.
Se você escolher a última, em breve se encontrará entrando em Assis através do arco construído no século doze em porta denticulada de São Francisco. Mas se, seduzido pelo ar puro, o desejo de elevar-se ainda mais próximo à abóbada do céu azul italiano e admirar ainda mais a vista deleitável do maravilhoso vale úmbrio, você escolhe o caminho mais alto, você e seu veículo eventualmente se encontrarão inextricavelmente enredados no rebuliço da humanidade: bois, cabras, bezerros, mulas, aves, crianças, porcos, tendas e carroças, juntas no mercado local fora das muralhas da cidade.
É aqui onde você provavelmente iria encontrar Pepino, junto com sua mula Violetta, trabalhando arduamente, colocando suas mãos em qualquer coisa com a qual um pequeno garoto e um forte animal de carga poderiam ganhar para si algumas notas amassadas de dez e vinte liras[1], necessárias para comprar comida e pagar a acomodação no celeiro de Niccolo, o dono do estábulo.
Pepino e Violetta eram tudo um para o outro. Eles eram figuras bem conhecidas em Assis e seus arredores — o menino magro e moreno, de orelhas grandes, esfarrapado e descalço, com enormes olhos escuros, cabelo curto e volumoso, e a pequena mula de coloração empoeirada, com um sorriso de Mona Lisa[2].
Pepino tinha dez anos e era órfão. Seu pai, mãe e parentes próximos haviam sido mortos na guerra. Sua autoconfiança, sabedoria e comportamento eram comparáveis aos de uma pessoa com muito mais idade, devido principalmente à sua independência, visto que Pepino era um órfão incomum por ter uma herança que o fazia não confiar em ninguém. Sua herança era Violetta.
Ela era uma mula bondosa, útil e dócil, parecida com qualquer outra por seus olhos amigáveis e gentis, com um focinho delicado de cor cinza-claro e orelhas longas, pontudas e marrons, mas com uma exceção que a distinguia: Violetta tinha uma curiosa expressão nos cantos da boca, como se ela estivesse sempre sorrindo gentilmente para qualquer coisa que pudesse entrete-la ou agradá-la. Desta forma, não importava qual tipo de trabalho, ou quanto esforço lhe era exigido, ela sempre o fazia com um sorriso de satisfação silenciosa. A combinação dos lustrosos olhos escuros de Pepino e o sorriso de Violetta era tão harmoniosa que as pessoas os ajudavam, tanto que eles eram capazes não só de ganhar o suficiente para sobreviverem, mas também, aconselhados pelo padre Damico (o pároco local), eram capazes de economizar um pouco.
Havia uma série de coisas que eles poderiam fazer – transportar cargas de madeira ou água, entregar compras acomodadas em cestos pesados nas laterais de Violetta, serem contratados para puxar uma carreta atolada na lama, ajudar na colheita de olivas, e até mesmo, ocasionalmente, auxiliar algum cidadão que estava alcoolizado de vinho a chegar até sua casa a pé, como uma espécie de “taxi de quatro patas”, com Pepino caminhando ao lado e cuidando para o embriagado não cair.
Mas estes não eram os únicos motivos que explicavam o amor existente entre o menino e a mula, uma vez que Violetta era mais do que a subsistência dele. Ela era para ele mãe e pai, irmã, amiga, companhia e conforto. De noite, deitado na palha do estábulo de Niccolo, Pepino dormia encolhido próximo a ela quando estava frio, com sua cabeça escorada no pescoço dela.
Como a região montanhosa era um mundo difícil para um pequeno garoto, ele algumas vezes caía ou se machucava, mas mesmo assim ele poderia ir até ela pedindo um pouco de conforto, e Violetta iria gentilmente acariciar seus machucados com o focinho. Quando seu coração estava repleto de alegria, ele cantava melodias em seus ouvidos; e quando estava triste, ele podia apoiar a cabeça no lombo macio e quente de Violetta e chorar suas lágrimas.
De sua parte, ele a alimentava e dava-lhe água, livrava-a de carrapatos e outros parasitas, alisava seu pelo e fazia carinho, esbanjando afeição por ela, particularmente enquanto estavam a sós; em público, ele nunca batia nela com a vareta mais do que o necessário. Por este tratamento, Violetta considerava Pepino uma divindade e retribuía -o com lealdade, obediência e afeição.
Um dia, no início da primavera, Violetta adoeceu, e esta era a pior coisa que poderia ter acontecido a Pepino. O problema se manifestou inicialmente como uma letargia[3] incomum. Violetta não respondia nem à uma alfinetada, nem a carícias, nem à voz jovem e estridente de Pepino. Depois, Pepino observou outros sintomas e uma visível perda de peso. Suas costelas, que eram cobertas por uma camada de carne bem rechonchuda, tornaram-se visíveis em suas laterais. Porém, havia um fator ainda mais preocupante do que a mudança que também ocorreu nas feições de sua cabeça (que estava afinando devido à angústia da doença): Violetta perdeu seu sorriso amável e encantador.
Tirando de suas reservas econômicas, cuidadosamente guardadas, centenas de notas de lira, Pepino chamou o Doutor Bartoli, o veterinário.
O veterinário examinou-a de boa-fé, medicou-a e fez o melhor que podia; mas ela não melhorava e, além disso, continuava perdendo peso e ficando cada vez mais fraca. Ele sussurrou de forma bastante hesitante e disse: — "Bem, por ora é difícil de dizer. Talvez seja algo como a picada de um mosquito novo na região, ou talvez um verme em seu intestino. De qualquer modo, como vamos saber? Houve um caso similar em Foligno e outro igual em uma cidade distante." Ele recomendou que Pepino deixasse Violetta descansando e que desse coisas leves para ela comer. Se a doença saísse dela por vontade de Deus, ela sobreviveria. Caso contrário, ela certamente morreria e haveria um fim para seu sofrimento.
Depois que o veterinário foi embora, Pepino encostou sua cabeça desamparada no lombo de Violetta e chorou descontroladamente. Mas então, quando a tensão — induzida pelo medo de perder sua única companhia no mundo — diminuiu, ele soube o que deveria fazer. Se não havia auxílio terreno para Violetta, o apelo deveria ser feito mais acima. Seu plano era nada menos do que levar Violetta para dentro da cripta sob a igreja inferior da Basílica de São Francisco, onde repousavam os restos mortais do santo que amou de forma inigualável todas as criaturas de Deus, incluindo os irmãos e irmãs com penas e também com quatro patas que serviram a Ele. Pepino iria implorar a São Francisco para curá-la. Ele não tinha dúvidas de que o santo assim faria quando visse Violetta.
Estas coisas Pepino sabia por meio do padre Damico, que falava de São Francisco como se ele fosse uma pessoa viva que poderia ser encontrada com seu hábito desgastado, preso por uma corda de cânhamo no meio, meramente ao dobrar a esquina da Praça Central de Assis, ou ao caminhar em uma das estreitas ruas pavimentadas da cidade.
E, por outro lado, já havia um precedente: Giani, seu amigo, o filho de Niccolo (o dono do estábulo), levou uma vez sua gatinha doente para dentro da cripta e pediu para São Francisco curá-la, e a gata melhorou — pelo menos um pouco, visto que suas patas traseiras ainda se arrastavam — mas pelo menos ela não morreu. Pepino sentia que se Violetta viesse a falecer, seria o fim de tudo para ele.
Por isso, com uma dificuldade considerável, ele persuadiu a mula doente e instável a se levantar e, com apelos e carícias e o uso mínimo da vareta, conduziu-a através das ruas encurvadas de Assis e colina acima até a Basílica de São Francisco. Nos belos portais gêmeos da igreja inferior, ele respeitosamente pediu ao frade Bernard, que estava lá em serviço, permissão para descer com Violetta até São Francisco, pois assim ela poderia ser curada e ficar saudável novamente.
Frade Bernard era um monge novo e, tratando Pepino como um jovem patife e ímpio, ordenou que ele e sua mula fossem embora. Era terminantemente proibido trazer animais para dentro da igreja e só pensar em levar um asno para a cripta de São Francisco era por si só uma profanação. Além disso, como ele poderia ter imaginado que ela iria descer até lá por uma escadaria estreita, cuja largura mal era suficiente para acomodar pessoas em fila única, quem diria animais com quatro patas? Pepino deveria ser tão tolo quanto era patife e indolente.
Conforme ordenado, Pepino retirou-se do portal, com seu braço sobre o pescoço de Violetta, meditando acerca do que poderia fazer para conseguir o que queria, visto que por ora ele estava desapontado por causa da rejeição que sofrera, mas ao mesmo tempo não estava totalmente desencorajado.
Apesar da tragédia que atingira a infância de Pepino e tirara dele sua família, ele realmente se considerava um garoto muito sortudo se comparado a outros, dado que havia adquirido não apenas uma herança para ajudá-lo a ganhar a vida, mas também um importante preceito pelo qual viver.
Esta máxima, a chave de ouro para o sucesso, foi deixada para Pepino, junto com barras de chocolate, gomas de mascar, sacos de amendoim, sabonetes e outros agrados, por um cabo do exército dos Estados Unidos que foi — nos seis meses em que ficou estacionado na vizinhança de Assis — uma espécie de semideus ou herói para o garoto. Seu nome era Francis Xavier O'Halloran e o que ele disse antes de partir para Pepino marcou-o profundamente: — "Se você quiser subir neste mundo, garoto, nunca aceite 'não' como resposta. Entendeu?" Pepino nunca esqueceu esta importante lição.
Pepino pensou na hora que seu próximo passo estava claro; no entanto, ele foi primeiro visitar o padre Damico, seu amigo e conselheiro, para confirmar sua ideia.
Padre Damico, que tinha uma cabeça grande, olhos brilhantes e ombros moldados como se fossem projetados para suportar os encargos postos sobre eles por seus paroquianos, disse: — "Você está dentro de seus direitos, meu filho, em fazer seu pedido para o supervisor, já que é ele quem decide se vai aceitá-lo ou não."
Não havia malícia no encorajamento que ele ofereceu a Pepino, mas também era verdade que ele não acreditava que o supervisor viria conversar face a face apenas em nome da fé pura e inocente. Em sua opinião pessoal, aquele atarefado homem deveria estar mais preocupado em cuidar das igrejas gêmeas que formavam a Basílica e com a cripta enquanto atrações turísticas. Ele, padre Damico, não via o porquê da criança não poder ter seu desejo realizado, mas, obviamente, isto estava fora de sua jurisdição. Entretanto, ele não compartilhou seus receios com Pepino e apenas o chamou antes de ele partir: — "E se a pequena mula não consegue chegar até a cripta por cima, há uma outra entrada abaixo, através da velha igreja, mas que está selada há centenas de anos. Mas talvez possa ser aberta. Você deve lembrar o supervisor disto quando ver ele, pois ele sabe onde ela fica."
Pepino agradeceu e voltou sozinho à Basílica, aproximando-se do mosteiro e pedindo permissão para falar com o supervisor.
A pessoa que o atendeu era um homem sensível e, mesmo concentrado em uma conversa com o bispo, ele pediu para Pepino aguardar nos jardins do claustro, onde o garoto esperou respeitosamente, até que os dois importantes homens terminassem seu diálogo.
Os dois dignitários estavam caminhando para cima e para baixo, e Pepino desejava que fosse o bispo quem iria dizer "sim" ou "não" ao seu pedido, uma vez que ele parecia ser o mais simpático entre ambos, enquanto o supervisor tinha a expressão severa de um comerciante. O menino aguçou sua audição, porque, enquanto aguardava, percebeu que eles estavam conversando sobre São Francisco, e o bispo estava relembrando o supervisor com um sinal: — "Ele partiu há muito tempo desta terra. A lição de sua vida é clara para aqueles que a conseguem ler. Mas quem, nesta época, tem tempo para isto?"
O supervisor disse: — "Sua tumba na cripta atrai muitas pessoas a Assis. Mas, em um Ano Sagrado, relíquias são ainda melhores. Se nós tivéssemos a língua do Santo, ou um tufo de seu cabelo, ou mesmo uma unha..."
O bispo tinha um olhar distante em seus olhos e sacudiu sua cabeça gentilmente: — "Esta é a mensagem que nós necessitamos, meu querido supervisor, a mensagem de um grande coração que falaria para nós, através do intervalo de sete séculos, para nos lembrar do verdadeiro Caminho." E aqui ele pausou e tossiu para chamar a atenção, visto que era um homem muito educado e sabia que Pepino estava esperando.
O supervisor virou-se também e disse: — "Ah, sim, meu filho, o que posso fazer por você?"
Pepino disse: — "Por favor, senhor, minha mula Violetta está muito doente. O Doutor Bartoli disse que não há nada mais que ele possa fazer, e provavelmente ela morrerá. Por favor, peço permissão para levá-la até a tumba de São Francisco e pedir para que ele a cure. Ele amava todos os animais e particularmente pequenas mulas. Tenho certeza de que ele vai fazer ela melhorar!"
O supervisor olhou em choque: — "Uma mula. Na cripta. De onde surgiu esta ideia?!"
Pepino explicou sobre Giani e sua gatinha doente, enquanto o bispo virou-se para esconder um sorriso.
Mas o supervisor não estava sorrindo. Ele perguntou: — "Como foi que Giani conseguiu levar escondida uma gata para dentro da tumba?"
Como já havia acontecido, Pepino não viu motivos para não contar, e respondeu: — "Sob seu casaco, senhor."
O supervisor mentalizou um aviso para alertar aos irmãos, de observarem cuidadosamente pequenas crianças e outras pessoas com qualquer tipo de volume sob suas vestimentas externas. — "É óbvio que nós não podemos deixar que este tipo de coisa aconteça, senão todo mundo iria vir trazendo um cão doente, um boi, uma cabra, ou até mesmo um porco. E então, o que nos tornaríamos? Um verdadeiro chiqueiro."
– “Mas, senhor!”, Pepino suplicou, – “Ninguém precisa saber. Nós iríamos até lá, e retornaríamos rapidamente.”
A consciência do supervisor agitou-se. Havia algo de tocante no garoto – sua cabeça pontiaguda, seus olhos esbugalhados, a cabeça enorme. Além do mais, o que aconteceria se ele permitisse isto e ainda assim a mula viesse a falecer, conforme o parecer do Doutor Bartoli de que não havia muita esperança? Certamente boatos iriam se espalhar e o templo sofreria com isto. Ele também imaginava o que o bispo estaria pensando, e como ele resolveria este impasse.
Ele questionou: – “Além disso, mesmo que permitíssemos, você nunca conseguiria conduzir a mula pela escadaria estreita. Então, como pode ver, é praticamente impossível.”
– “Mas há outra entrada”, disse Pepino, – “Pela antiga igreja. Não é utilizada há muito tempo, mas poderia ser aberta somente desta vez, não poderia?”
O supervisor estava indignado. – “O que você está dizendo – destruir propriedade da igreja? A entrada foi selada há mais de um século, desde que a nova cripta foi construída.”
O Bispo pensou ter visto uma escapatória e disse gentilmente ao menino: – “Por que você não vai para casa e reza para que São Francisco ajude você? Se você abrir seu coração para ele e ter fé, certamente ele irá escutá-lo.”
– “Mas não seria a mesma coisa!”, Pepino clamou, e sua voz tremulava com as lágrimas que queriam vir à tona. – “Eu preciso levá-la até onde São Francisco possa vê-la. Ela não é igual a qualquer outra velha mula – Violetta tem um sorriso muito meigo. E ela nunca mais sorriu desde que ficou doente. Mas talvez ela sorrisse para São Francisco, mesmo que só mais uma vez. E então ele veria isto, não resistiria em ajudá-la e iria fazer ela melhorar. Eu sei que iria!”
O supervisor impôs sua decisão. Ele disse: – “Me desculpe meu filho, mas a resposta é não.”
Mas mesmo no desespero de suas lágrimas amargas, Pepino sabia que, para Violetta sobreviver, ele não deveria aceitar um “não” como resposta.
– “Quem está lá, afinal?”, Pepino perguntou para o padre Damico depois. – “Quem está acima do supervisor e de meu senhor, o bispo, que poderia me permitir levar Violetta para dentro da cripta?”
O estômago de Padre Damico gelou enquanto ele pensava na vertiginosa hierarquia existente entre Assis e Roma. No entanto, ele explicou da melhor forma que pôde, concluindo com: – “E no topo está Sua Santidade, o próprio Papa. Certamente seu coração seria tocado pelo que aconteceu se você fosse capaz de contar a ele sua história, uma vez que ele é um grande e bondoso homem. Mas ele está ocupado com importantes e graves assuntos e seria impossível para você vê-lo.”
Pepino voltou para o estábulo de Niccolo, onde deu água e comida para Violetta e acariciou seu focinho centenas de vezes. Então, sacou seu dinheiro do jarro de pedra escondido sob a palha e o contouo. Haviam quase trezentas libras. Uma centena ele separou e prometeu dar para seu amigo Giani, caso ele cuidasse de Violetta, enquanto ele estivesse fora, como se ela fosse dele. Então, ele deu um tapinha nela, limpou as lágrimas que começavam a escorrer ao ver o quão magra ela estava, colocou sua jaqueta e saiu para a rodovia, onde, esticando seu polegar como havia aprendido com o cabo Francis Xavier O’Halloran, conseguiu carona em um caminhão indo para Foligno e para a estrada principal. Ele estava indo até Roma para ver o Papa.
Nunca um menino pareceu tão ínfimo e desamparado como Pepino em pé na imensa e deserta Praça de São Pedro, visto que era bem cedo pela manhã. Tudo se elevava sobre ele – o domo massivo de São Pedro, o obelisco de Calígula, as colunatas de Bernini. Tudo contribuía para fazê-lo parecer pequeno e miserável com seus pés descalços, calças rasgadas e sua jaqueta esfarrapada. Nunca um garoto se sentiu tão oprimido, solitário e medroso, ou carregou um sentimento maior de infelicidade em seu coração.
Por ora, ele ao menos estava em Roma, e as gigantescas proporções das construções e monumentos, majestosas e imponentes, começaram a drenar sua coragem, a ponto de ter vislumbrado futilidade e falta de esperança em sua missão. E então, em sua mente veio a imagem da mula doente e que não sorria mais, com seus flancos caídos e seus olhos negros e que certamente iria morrer a menos que ele achasse ajuda para ela. Foram pensamentos como estes que o fizeram cruzar a Praça e aproximar-se timidamente de uma das pequenas entradas do Vaticano.
O guarda suíço, em seu uniforme de cor vermelha, amarela e azul, com sua longa alabarda[4], parecia ser enorme e severo. Mesmo assim, Pepino aproximou-se dele e disse: – “Por favor, você pode me levar para ver o Papa? Eu desejo falar com ele sobre minha mula Violetta, que está muito doente e pode morrer, a menos que o Papa me ajude!"
O guarda sorriu, mas não de forma debochada, já estava acostumado a estes pedidos ignorantes e inocentes, e o fato de ter vindo de um pequeno menino sujo e esfarrapado, com olhos que pareciam poças de tinta e uma cabeça redonda na qual as orelhas saltavam como alças de uma ânfora, tornaram tudo isto ainda mais inofensivo. Mas, mesmo assim, ele sacudiu a cabeça enquanto sorria, e então disse que Sua Santidade era um homem muito ocupado e que não poderia vê-lo. Em seguida, o guarda bateu com a ponta da lança no chão e cruzou-a, sinalizando que estava ocupado.
Pepino recuou. Quão importante era sua necessidade em face de tanto poder e majestade? Mas, mesmo assim, a lição que o cabo O'Halloran havia lhe ensinado conscientizou-o de que deveria voltar ao Vaticano mais uma vez.
Em um dos lados da Praça São Pedro, ele viu uma senhora sentada sob um guarda-chuva, vendendo pequenos buquês e ramalhetes com flores da primavera narcisos, campainhas-brancas e narcisos brancos, violetas de Parma e lírios do vale, cravos multicoloridos, tamareiras e delicadas rosas vermelhas. Algumas pessoas que visitavam a Basílica de São Pedro gostavam de colocá-las no altar de seus santos preferidos. As flores eram límpidas e vinham frescas do mercado, das pétalas de muitas delas ainda escorriam gotas de água.
Olhar para elas fez Pepino lembrar de casa e de quando o padre Damico falou sobre o amor que São Francisco tinha por flores. Padre Damico teve a bondade de ter lhe dito tudo isto, que soava como poesia. E Pepino chegou à conclusão de que se São Francisco, que foi um homem santo, era tão afeiçoado a flores, talvez o Papa, que por sua posição era ainda mais santo, iria amá-las também.
Por cinquenta liras ele comprou um minúsculo buquê que continha lírios do vale escorados em um maço de violetas escuras e pequenas rosas amarelas abarrotadas próximas a girassóis amarelos, todas atadas com uma pequena tira de folha e um laço de papel.
Em uma pequena tenda que vendia cartões postais e souvenires, ele pediu lápis e papel e laboriosamente escreveu um recado:
"Querido e mais sagrado Papa: estas flores são para você. Por favor, deixe-me vê-lo pessoalmente e contar-lhe sobre minha mula Violetta, que está morrendo, porque não me deixam levá-la para ver São Francisco, que poderia curá-la. Eu vivo na cidade de Assis, mas fiz todo o longo caminho de lá até aqui para ver você.
Com amor, Pepino"
Em seguida, ele retornou até o portão, entregou o buquê e o recado nas mãos do guarda suíço e implorou: — "Por favor, entregue-as para o Papa. Tenho certeza de que ele vai aceitar me receber quando receber as flores e ler o que escrevi."
O guarda não esperava por isto. A criança e as flores subitamente colocaram-no em um dilema do qual ele não poderia se livrar na presença destes olhos grandes e confiantes. Porém, ele não tinha experiência em lidar com este tipo de situação. Pensou em talvez simplesmente pedir para outro colega assumir seu posto, ir até a sala da guarda, jogar as flores e o recado em uma lixeira, aguardar um breve período de tempo e retornar para dizer ao garoto que Sua Santidade agradeceu a ele pelas flores, mas que tinha importantes compromissos para resolver que tornavam impossível garantir a Pepino uma audiência.
Inicialmente, o guarda colocou em ação este pequeno subterfúgio, mas quando foi completar o último ato, ele ficou surpreso ao ver que não conseguia fazê-lo. Havia um cesto de lixo em sua frente, aguardando para receber a oferenda, mas o pequeno ramalhete pareceu ter grudado em seus dedos. Quão adoráveis e frescas eram as flores! Trouxeram a ele lembranças da primavera nos vales verdejantes em seu longínquo lar em Luzern.[5] Ele relembrou do topo das montanhas cobertas de neve em sua juventude, o gado acinzentado e de olhos claros pastando nos prados floridos e também ouviu o soar de sinos, que aquecia seu coração.
Atordoado pelo que aconteceu, ele saiu da sala da guarda e vagou pelos corredores, mesmo sem saber aonde ir ou o que fazer com este fardo. Ele eventualmente foi visto por um pequeno e atarefado monsenhor[6], membro do vasto contingente de clérigos e secretários empregados pelo Vaticano, o qual parou surpreso com a visão do corpulento guarda impotente ao contemplar um pequeno ramalhete de flores.
E assim ocorreu o milagre menor, no qual o pedido e oferenda de Pepino cruzaram a fronteira do palácio que dividia o mundo material do espiritual, o leigo do eclesiástico.
Para grande alívio do guarda, o monsenhor pegou as ternas oferendas que ele não foi capaz de descartar; e elas também emocionaram este padre, tal é o poder peculiar das flores — que são universais e espalham suas espécies ao redor do mundo, invocando, em cada um que as seguram, as mais queridas e estimadas lembranças.
Desta forma, o pequeno buquê passou de mão em mão pelos escalões mais altos da hierarquia eclesiástica, parando brevemente em posse do clérigo da câmara apostólica, do almoner[7] privado, do sacristão papal, do mestre dos palácios sagrados, até chegar ao camareiro papal. A umidade das flores sumiu, elas começaram a perder seu frescor e a murchar, por passar por diversas mãos. Mas mesmo assim, elas ainda continham sua mágica, a mensagem de amor e as memórias atribuídas a elas, o que impossibilitou que qualquer um destes intermediários descartassem-nas.
Então, eventualmente, elas foram depositadas com a carta que as acompanhava na mesa do homem a quem haviam sido destinadas. Ele leu o recado e então se sentou para contemplar as flores. Ele fechou seus olhos por um instante para vislumbrar melhor a imagem que surgiu em sua mente, dele mesmo, como um pequeno garoto romano sendo levado em um domingo para as colinas de Alba, onde pela primeira vez viu violetas crescendo de forma selvagem.
Quando abriu seus olhos, ele disse para seu secretário: — "Deixe trazerem o menino até aqui. Eu o verei."
Foi deste modo que Pepino finalmente chegou à presença do Papa, sentado na mesa de seu escritório. Colocando-se de pé próximo a uma cadeira, Pepino contou toda a história sobre Violetta, a necessidade de levar ela até o túmulo de São Francisco, sobre como o supervisor o tratou e também sobre o padre Damico. Falou também sobre a segunda entrada para a cripta, o sorriso de Violetta e seu amor por ela — tudo, de fato, que estava em seu coração e agora transbordava para o simpático homem sentado quieto atrás da mesa.
E então, ao cabo de meia-hora, Pepino havia saído da reunião, tendo a certeza de que era o menino mais feliz do mundo. Não só por ter sido abençoado pelo Papa, mas também porque dentro de sua jaqueta haviam duas cartas: uma endereçada ao supervisor do monastério de Assis e outra para o padre Damico. Ele não se sentia mais pequeno e oprimido quando saiu para a praça novamente, passando pelo surpreso (porém muito feliz) guarda suíço. Ele sentiu a sensação de que em breve poderia montar, saltar e correr ao lado de sua Violetta.
Mesmo assim, ele tinha que se preocupar com o lado prático do transporte para casa. Ele fez seu caminho por meio de um ônibus que o levou até onde a Via Flaminia torna-se uma estrada de chão batido rumando para norte, e então, fez sinal com seu polegar olhando para trás e antes do cair da noite, com muita sorte, estava de volta a Assis.
Depois que uma visita a Violetta assegurou-lhe de que ela fora bem cuidada (e que ao menos não estava pior do que antes dele partir), Pepino orgulhosamente foi visitar o padre Damico e apresentou-lhe as cartas conforme foi instruído.
O Padre manuseou o envelope destinado ao supervisor e, então, com uma grande onda de calor e felicidade, leu aquela que foi endereçada a ele. Ele disse a Pepino: — "Amanhã levaremos a carta do supervisor até ele. Ele vai convocar pedreiros e a velha parede que está barrando a porta será demolida, você poderá levar Violetta até a tumba e rezar para que ela melhore. O Papa em pessoa aprovou isto."
O Papa, obviamente, não havia escrito as cartas pessoalmente. Elas foram redigidas com considerável delicadeza e satisfação pelo cardinal-secretário, apoiado pela autoridade papal, que disse em sua carta ao padre Damico:
"Certamente o supervisor deve saber que, em seu tempo de vida, o abençoado São Francisco era acompanhado até a capela por um pequeno cordeiro, que costumava segui-lo por toda Assis. Por acaso uma mula é uma criatura de Deus inferior só porque sua pele é mais dura e suas orelhas mais longas?"
E ele também escreveu outro recado, o qual padre Damico explicou para Pepino de sua própria maneira.
Ele disse: — "Pepino, há algo que você precisa compreender antes de ir ver o abade. É a sua esperança e a sua fé em São Francisco que irão ajudá-lo a curar sua mula. Mas você já pensou, talvez, que ele — que tão docemente amou todas as criaturas de Deus — possa amar Violetta de forma tão grande, que deseje ter ela ao seu lado pela Eternidade?"
Pepino sentiu um calafrio ao ouvir isto. Ele suou ao dizer: — "Não, padre, eu não havia pensado nisto..."
O padre continuou: — "Você vai até a cripta somente para pedir, ou você também vai, se necessário, estar preparado para doar?"
Todo o sentimento dentro de Pepino emergiu perante a possibilidade de ele perder Violetta, mesmo para alguém tão amado como São Francisco. Ainda quando ele levantou seu rosto chocado e olhou profundamente para os olhos brilhantes do padre Damico, havia algo dentro de si que lhe deu coragem para dizer: — "Eu cederei — se for preciso. Mas oh, eu espero que ele me deixe ficar junto com ela por mais um tempo."
O tinir da picareta do mestre de obras soava repetidamente através da câmara arqueada da igreja inferior, onde a parede que bloqueava a porta que conduzia ao caminho para a cripta estava sendo removida. Aguardavam próximos o supervisor e seu amigo o bispo, padre Damico e Pepino, com os olhos esbugalhados, pálido e silencioso. O garoto mantinha seus braços ao redor do pescoço de Violetta e seu rosto tocava no dela. A pequena mula estava com as pernas tremulando e mal conseguia ficar em pé.
Uma porção da parede estava difícil de derrubar. O pedreiro golpeou o arco de um dos lados para enfraquecer seu suporte. Então, a parede começou a ruir novamente. Uma passagem estreita ficou à mostra e através da abertura eles podiam ver as luzes trêmulas das velas colocadas no altar onde repousavam os restos mortais de São Francisco.
Pepino agitou-se perante a abertura, ou foi Violetta que se moveu nervosamente, assustada ao ver um lugar inusitado e pelos barulhos? Padre Damico disse: — "Espere!", e Pepino segurou ela; mas os pés trêmulos da mula escorregaram nos escombros, agitando-se em pânico e, então, ela deu coices que acertaram a parte do arco que estava frágil. Um tijolo caiu e uma rachadura apareceu.
Padre Damico saltou e puxou para longe o garoto e a mula da parte do arco que estava colapsada, expondo um pedaço da antiga parede e o buraco que estava atrás, antes de tudo ficar coberto por uma nuvem de poeira.
Mas quando a poeira baixou, o bispo olhava para alguma coisa que se encontrava em um nicho do buraco agora revelado. Era uma pequena caixa de metal acinzentada. Mesmo distante, eles conseguiam ver o ano 1226 — que foi quando São Francisco morreu — gravado na lateral e uma larga letra F, como uma inicial.
A respiração do bispo veio na forma de um suspiro. — "Ah, será que realmente é isto? O legado de São Francisco! Frade Leo o mencionou. Ele foi escondido séculos atrás, e desde então ninguém havia o encontrado."
O supervisor disse roucamente: — "Seu conteúdo! Vamos ver o que há dentro — pode ser valioso!"
O bispo hesitou. — "Talvez seja melhor esperarmos um pouco, visto que este achado em si é um milagre."
Mas padre Damico, que era um poeta e para quem São Francisco era um espírito vivo, clamou: — "Abram isto, eu imploro! Todos que estão aqui são humildes. Certamente foi a Providência que nos guiou até aqui."
O abade levantou a lanterna. O pedreiro, com as mãos cuidadosas de um homem honesto, habilmente liberou as presilhas e abriu a tampa da caixa hermética. Esta se abriu com o rangido de suas dobradiças antigas e revelou o que havia sido guardado lá há mais de sete séculos atrás.
Havia um pedaço de corda de cânhamo, atado como se, talvez, tivesse sido usado sobre uma cintura. Preso por um nó, fresco como se tivesse crescido ontem, estava um pequeno ramo de trigo. Secos e preservados, havia também o caule e a flor estrelada de uma prímula[8] das montanhas e ao lado, a pequena penugem de uma minúscula ave dos prados.
Silenciosamente, os homens ficaram observando estes objetos do passado, tentando compreender seu significado, e padre Damico chorou, pois para ele invocavam a figura viva do santo, meio-cego, cansado e frágil, a corda atada em sua cintura, cantando, caminhando através de um campo de trigo. A flor talvez tenha sido descoberta por ele quando cessou a neve do inverno, chamada de "Irmã Prímula" e louvada por sua ternura e beleza. De modo como se eles tivessem sido transportados para aquele momento, padre Damico viu a pequena ave do campo abrigada de forma confiante no ombro de São Francisco, piando e deixando uma pena em sua mão. Seu coração estava tão cheio que ele não conseguia se conter.
O bispo também estava próximo de chorar, quando, de sua própria maneira, interpretou o que eles acharam. — "Ah, como poderia ser mais clara a mensagem deixada pelo santo? Pobreza, amor e fé. Este é o legado que ele deixou para todos nós."
Pepino disse: — "Por favor, senhores, eu e Violetta podemos entrar na cripta agora?"
Eles haviam se esquecido dele. No momento, eles partiram da contemplação para tocar nas relíquias.
Padre Damico limpou as lágrimas de seus olhos. A porta estava livre agora e havia espaço para o menino e a mula passarem. — "Ah, sim", ele disse. — "Sim Pepino, você pode entrar agora. E que Deus o acompanhe."
Os cascos da mula soaram nitidamente — clip-clop, clip-clop — no antigo piso da passagem. Pepino não a auxiliava agora, mas caminhava ao seu lado, com a mão repousando levemente em seu pescoço. Seu corpo e sua cabeça, com orelhas que saltavam, estavam erguidos e seus ombros estavam corajosamente alinhados.
E para o padre Damico pareceu, enquanto eles andavam, quer seja pela luz disforme e que formava sombras que dançavam, ou porque ele assim desejava, que o fogo fátuo revelava a suspeita de que o sorriso de Violetta havia retornado.
Deste modo, os observadores viram as silhuetas do garoto e da mula contra as lâmpadas de óleo e as velas do altar da cripta, enquanto iam adiante para completar sua peregrinação de fé.
Este trabalho é regulado nos termos da licença Creative Commons - Atribuição-Compartilha Igual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).
- ↑ A Lira foi a moeda italiana que vigorou entre 1861 e 2002, até ser substituída pelo Euro. [NT]
- ↑ Referência ao famoso quadro pintado pelo artista florentino Leonardo da Vinci, conhecido também como A Gioconda (século XVI). [NT]
- ↑ Letargia é a perda temporária ou completa da sensibilidade e dos movimentos de uma parte do corpo por motivos fisiológicos. [NT]
- ↑ Antiga arma utilizada desde a Idade Média, composta de uma longa haste e cuja ponta de ferro é atravessada por uma meia-lua. [NT]
- ↑ Em português: Lucerna. Cidade que fica na província de Cantão, Suíça. [NT]
- ↑ Monsignore é a expressão original no texto. [NT]
- ↑ Membro da Igreja responsável por distribuir bens aos pobres. A tradução mais próxima para o português seria esmoleiro. [NT]
- ↑ Prímula é um gênero botânico cujas espécies florescem no início da Primavera. [NT]