Certa vez, em entrevista à revista New York Magazine, Paul Gallico confessou que não se considerava nem romancista nem escritor, mas sim um contador de histórias, afirmando que, se tivesse vivido há milhares de anos atrás, entraria em alguma caverna e diria: "Posso entrar? Estou com fome, e gostaria de um pouco de sopa. Em troca, conto-lhes uma história. Era uma vez...", e então narraria uma história sobre dois homens das cavernas.
Nascido em Nova Iorque em 1897, Paul Gallico era filho de pai italiano e mãe austríaca, emigrados para os Estados Unidos dois anos antes dele nascer. Graduou-se pela Universidade de Columbia em 1919, trabalhando ao longo dos anos 20 como jornalista esportivo no jornal New York Daily News, onde por sua notória capacidade de descrever e comentar os eventos que analisava, ascendeu profissionalmente ao ponto de se tornar um dos mais famosos e bem pagos jornalistas esportivos estadunidenses da época. Porém, no final da década de 1930, abandonou a carreira jornalística para se dedicar à escrita ficcional, publicando contos e pequenos romances em diversas revistas, os quais, posteriormente, foram compilados no formato de livros (sendo que o presente trabalho é uma destas adaptações, feita pela editora inglesa Longmans em 1961 e contendo dois contos, O Ganso-das-neves e O Pequeno Milagre). Ao total, Paul Gallico escreveu e publicou mais de quarentas histórias (entre contos, romances e novelas), tendo várias de suas obras adaptadas para cinema, teatro, e até para um disco de música - caso da banda inglesa de rock progressivo Camel, que lançou em 1975 um álbum instrumental baseado no Ganso-das-neves, em que cada faixa retrata um momento da obra. O álbum se chamaria originalmente The Snow Goose ("O Ganso-das-neves"), mas devido a uma ação judicial de Paul Gallico, que não aprovou a ideia, acabou intitulado Music Inspired By The Snow Goose ("Música Inspirada Pelo Ganso-das-neves").
O estilo literário de Paul Gallico difere do de outros escritores de contos principalmente pelo efeito cumulativo de detalhes que compõem o texto, motivo pelo qual a beleza e complexidade de suas obras, cujas essências não são passíveis de meras simplificações ou resumos, só podem ser contempladas em sua totalidade. O próprio autor também apresenta em alguns momentos suas histórias enquanto lendas, como em um trecho do Ganso-das-neves onde ele explica que "[...] Esta não é uma história que segue calma e suavemente uma sequência, visto que ela foi coletada de muitas fontes e por meio de muitas pessoas. Inclusive, algumas destas vem na forma de relatos fragmentados de homens que presenciaram cenas estranhas e violentas."
O Ganso-das-neves (cujo nome original em inglês é The Snowgoose: A Story of Dunkirk) foi publicado em 1940, ou seja, em meio à II Guerra Mundial. Inicialmente, foi escrito como um breve conto, publicado na revista The Saturday Evening Post, sendo então expandido como uma novela trágica em 1941. Sua recepção foi tão positiva e sua popularidade tão grande (devido não só à belíssima redação literária em si, mas também por conta dos temas tratados e sua relação com o contexto da Guerra), que no mesmo ano recebeu o The Henry Prize para contos (uma distinção dada nos EUA a breves histórias excepcionais, cujo nome faz referência ao escritor William Sydney Porter), além de também ter sido adaptado para a televisão em 1971, numa produção da BBC (British Broadcasting Corporation, emissora pública de rádio e televisão do Reino Unido) sob direção de Patrick Garland. A obra aborda principalmente o medo em relação ao sentimento de perda (de entes queridos, tanto pessoas como animais), o receio quanto à possibilidade de entrarmos em um estado de solidão profunda (destacando principalmente a necessidade de vínculos afetivos para nos sentirmos realmente vivos, visto que o homem, acima de tudo, é um animal social), e o amor e a amizade como sentimentos regenerativos em uma realidade violenta e cruel.
Já a segunda obra aqui apresentada, O Pequeno Milagre (em inglês The Small Miracle: A Story of Faith and Love), foi publicada em 1951 como um breve e leve conto, que aborda principalmente a dedicação e a perseverança, o amor pela vida e a fé como inspirações capazes de superar as adversidades que a vida nos apresenta de maneira que os acontecimentos da história e seus respectivos desdobramentos assumem a forma de um milagre. Um ano depois de sua publicação, foi adaptado para filme como uma produção inglesa com o nome de Never Take No For An Answer ("Nunca Aceite 'Não' como Resposta"), dirigido por Maurice Cloche e Ralph Smart e com produção de Anthony Havelock-Allan, sendo todo ele gravado na Itália, inclusive com autorização especial para filmagens dentro do próprio Vaticano.
Quanto ao processo de tradução em si, buscou-se a maior fidelidade possível em relação ao sentido semântico do texto, de forma que as descrições geográficas e faunísticas — assim como os diálogos — sejam facilmente compreensíveis para leitores de todas as idades (motivo pelo qual também foram inseridas diversas notas de rodapé explicando termos específicos).
Entretanto, é importante destacar que, devido ao fato dos contos terem sido escritos em outro idioma, situado em um contexto temporal diferente do nosso (inglês das décadas de 1940 e 50), algumas expressões inexistentes em nosso vocabulário tiveram que ser readaptadas, visto que uma translação precisa das mesmas acaba em muitos casos não sendo possível (caso das slangs, que são gírias locais que não possuem termos correspondentes diretos com o português). Como exemplo, podemos destacar o cockney (espécie de dialeto e sotaque falado pelos habitantes da East End em Londres), presente no Ganso-das-neves em diálogos entre soldados na East Chapel, caso em que a tradução de algumas expressões foi normatizada como se estivessem conversando no inglês formal da época (em outros casos, notas explicativas foram adicionadas como complemento). Sabemos que o texto perde parte de sua riqueza poética e estética desta forma, porém, este é um processo decorrente do próprio exercício de adaptação realizado. Há um famoso jogo de palavras em italiano que diz "Traduttore, Traditore" (em português, "Tradutor, traidor"), e que sintetiza bem este processo, visto que todo tradutor acaba tendo que trair parte do sentido profundo do texto original para conseguir reescrevê-lo em outra língua.
Por fim, agradecemos à Editora Fi e a Lucas Margoni pelo incentivo e pela oportunidade de publicarmos o presente trabalho. E esperamos que a leitura destes belíssimos contos seja tão frutuosa e prazerosa como foi seu processo de tradução, e que os ensinamentos morais presentes neles contribua para repensarmos o verdadeiro sentido de sentimentos tão importantes como a amizade, a dedicação e a fé em tempos tão turbulentos como os atuais. Boa leitura!
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