O GARATUJA é a primeira de uma série de crônicas dos tempos coloniais, algumas já escritas, outras apenas esboçadas, em tempos idos, quando o pensamento, ainda não de todo enredado nas teias do mundo, tinha folga para vaguear pelo passado, e entreter-se com as pieguices e ingenuidades de nossos pais, a quem o mais simplório garoto de agora enfiaria, não pelo fundo de uma agulha, o que não fora nenhuma façanha, mas pela cabeça de um alfinete.

Todavia, se o leitor no folhear estas páginas, tiver tempo de pensar, e se deixe ir a cogitar na singularidade da revolução, que esteve para ensangüentar a heróica, mas pacata, cidade de São Sebastião, lembre-se da magna questão do martelinho, que por pouco não perturbou a paz maçônica, da mesma forma que outrora o hissope na igreja d'Elvas.

Então há de concordar comigo que o homem é sempre menino até morrer de velhice; e que depois das criançadas do pirralho, vêm as travessuras do rapazola, e por último as estrepolias dos barbaças, as quais são as piores, sobretudo quando começa-lhe a grisar o pêlo.

Quem duvidar do cunho histórico desta simples narrativa, poderá facilmente verificá-lo abrindo o 3º volume dos Anais do Rio de Janeiro, escritos pelo Dr. Baltasar da Silva Lisboa.

Naquele tempo o cidadão, porque servira o cargo de juiz de fora e presidente da Câmara, julgava-se obrigado a oferecer a seu país "o fruto dos conhecimentos adquiridos nas diligências do serviço público". Hoje em dia nem a juizes, nem a edis, sobra tempo para se ocuparem com tais nugas, pois todo se vai em subir e descer escadas, pôr e tirar o chapéu, dobrar e torcer a cerviz.

No referido tomo, à página 314, entre os parágrafos 35 e 39, apanhou o cronista fluminense pela rama os acontecimentos que puseram em tumulto a cidade. Aí se encontram até eruditas elucidações do caso jurídico, sobre o qual o Dr. Baltasar entendeu que devia emitir seu juízo.

Não é ele o único dos compiladores de notícias, que neste país se meteu a tralhão, recheando a história com os lardos de uma erudição rançosa. Outros o excederam de muito nessa mania enciclopédica.

Escaparam porém ao cronista muitas particularidades, que ele descurou e que eu pude, obter consultando um arquivo arqueológico, bem provido, e que tenho à minha disposição, para o estudar à vontade.

Meu arquivo arqueológico, por cautela vou prevenindo, não custou um ceitil aos cofres públicos, nem aspira à honra de ser comprado pelo governo do Sr. D. Pedro II, como está em voga desde a consciência até as leis, que tudo hoje em dia se vende, por atacado ou a varejo, em códigos ou empreitadas.

A minha preciosidade literária não custou nem mesmo o trabalho de andar cascavilhando papéis velhos em armários de secretarias; ou a canseira de trocar as pernas pela Europa, cosido em fardão agaloado a pretexto de representar o Brasil nas cortes estrangeiras. Que formidável "prosopopéia!".

Quero fazer ao leitor a confidência do meu achado.

Costumava outrora, como ainda hoje, ir pela manhã ao Passeio Público, onde há uma meia dúzia de árvores que o bom Deus ali conserva para refrigério dos emparedados da cidade. Tem esse jardim urna qualidade mui apreciável: é uma perfeita solidão, nio meio do burburinho, com o bonde à porta, e ao alcance do olhar protetor do ministro da Justiça; por conseguinte, facilidade de condução e segurança individual: duas importantes garantias da liberdade. Da verdadeira liberdade prática, e não dessa que anda nos cartazes políticos, para o efeito cênico.

Assim passeia-se ali na maior tranqüilidade de espírito. Às vezes descobre-se, é verdade, um urbano, mas estendido em um banco a dormir; o, que ainda mais serena-me o espirito. Quando a polícia dorme é sinal de que não há a menor partícula de crime na atmosfera; e assim podemos considerar-nos ao abrigo de um e de outra ao mesmo tempo: do crime e da polícia.

Era ali indefectível um velho seco e relho, o qual se me afigurava a metempsicose de algum poento in-fólio da Biblioteca Nacional, que porventura fugira pela janela; e se abrigara à sombra dos castanheiros para livrar-se da fúria arqueológica dos antiquários.

Cortejava-o eu com o respeito devi4o a um homem que vira dois séculos, talvez se preparava para o terceiro. A minha saudação respondia ele com em modo desconfiado, que eu não levava a mal, por compreender que o indivíduo logrado por três gerações tinha o direito de suspeitar até dos santos.

O meu velho não tomava rapé, nem fumava; aborrecia a política, e não lia gazetas; ajunte-se uma carranca sempre fechada, uma gravata, para não dizer rodilha, que embrulhava-lhe só a metade inferior do rosto, porque a outra lha disputava o chapéu à catimplora; e tudo isso, retocado por uma rabugem veneranda e quase secular.

Bem se vê que encouraçado de tal forma, era o sujeito inabordável por qualquer dos meios indiretos, que servem na sociedade para travar um conhecimento. Muito havia eu alcançado em inserir a minha cortesia naquela refolhada antigüidade.

Não desanimei todavia. Há uma fineza a que os velhos maiores de setenta nos não resistem: é tocar na sua longevidade, sobretudo orçando-lhes uns dez anos de menos.

Um dia, pois, tomei de escalada o velho, indo a ele, e dizendo-lhe sem preâmbulos:

— Seguramente o senhor anda rastejando pelos oitenta. Diluiu-se-lhe a carranca em um riso lavado.

— Os oitenta!... Onde vão eles, meu senhor? Então ainda eu me considerava rapaz: vinha a pé da Pavuna e voltava.

— E com quantos está agora?

— Ora, adivinhe!

— Oitenta e seis ou oitenta e sete.

— Oh! Oh!... Noventa.

—- Não é possível!

— E três, meu senhor! Este Passeio Público que o senhor está vendo, ainda o Senhor Vice-Rei Luís de Vasconcelos não sonhava de mandar fazê-lo, nem de cá vir, que já eu estava nascido, e quando se abriu, que foi uma função para a cidade toda, também vim com minha mãe e a prima Engrácia, que já estava eu taludinho e com ponta de buço. Ora faça o senhor as contas!

— Não há dúvida; mas fique certo que ninguém acredita!...

Esta palavra pós o remate à conquista. Daí em diante o velho me pertenceu, eu pude folhear à vontade esse volume precioso de anedotas e casos antigos.

Quando tiver folgas, irei dando à estampa o que me confiou esse marco do século passado, por cima do qual vai passando, sem o aba lar nem submergir, o turbilhão do presente.

Rio, 1 de dezembro, 1872.

J. DE ALENCAR