Restituído ao tamborete furado, que lhe servia de curul, o Sebastião Ferreira repotreou-se contente de si, e tossiu uma risada, o que antes só lhe acontecera duas vezes na sua vida de tabelião: a primeira ao receber a carta que o confirmava no ofício; a segunda, quando teve a sentença favorável nos embargos opostos ao esbulho que o escrivão da provedoria tentou fazer de suas prerrogativas.

A lição famosa dada aos minoristas do prelado vingava-o não só das contínuas amofinações com que eles o atormentavam e à família todos os dias, mas sobretudo do insólito desacato de que fora vítima quando pretendeu desalojá-los da pitombeira.

— Quem seria o da lembrança! disse o tabelião para os escreventes que olhavam-no embasbacados. Olhem que merecia umas páscoas; e eu que lhas daria de boa-vontade.

Entreolharam-se os escreventes, como consultando a resposta.

— Então não atinam com o cujo?

— A peça foi de truz; agora quem a pregou!... Isso lá como se pode saber! acudiu um.

— Ele parece que não passou... ia dizendo o outro.

— Pois não estão vendo que foi o sonso do Sabino? atalhou o tabelião.

O bloco do rapaz, com a cabeça entre os ombros, fingindo uma certa vergonha de ser descoberta sua estrepolia, escondia de modo a dar-lhe mais tom, um sorriso maligno, empastado nos lábios amarelos.

— Eu não!... respondeu ele dando uma cotovelada na ilharga, o que era sinal certo de grande emoção.

Essa negativa, com o sotaque particular que lhe imprimiu o rapaz, e o revirado d'olhos que lhe servia de asterisco, era a mais ingênua das confissões voluntárias.

São de todos os tempos e de todos os dias estes e quejandos disfarces; pois no fim de contas a lei deste mundo tem por mote aquele versículo do bom Virgílio: Sic vos, non vobis.

Abençoados e felizes da terra, são os vobis para quem trabalhamos nós outros. Na cabeça do rol estão os primazes, vobis coroados, que se divertem à nossa custa, atirando às rebatinhas dos grandes vassalos sacos de ouro e maços de cédulas, fabricados com o suor do pobre e o pêlo que tosam a este povo bonacho!

Voltou enfim o cartório ao habitual sossego e modorra. Acabada a féria, na saída, o tabelião (espantoso sucesso), atirou um peteleco na venta do Sabino, e introduziu-lhe sorrateiramente na munheca um tostão de prata.

Assim foram surripiadas ao Ivo as honras e, o que mais é, o proveito da engenhosa pescaria de formigões, que tivera a fortuna de engendrar não somente para descanso de Marta e alívio seu, como para entrar nas boas graças do tabelião.

Também o culpado fora ele, que durante os trambolhões dos minorenses se deixara ficar escondido atrás da cerca, no meio dos estudantes, que instigava, mas longe da porta onde ficara atado o cordel do anzol.

Entretanto os minorenses, desesperados com a vergonha que tinham sofrido, e abespinhados como os maribondos quando os assanham, ardiam por tomar sua desforra do tabelião, a quem principalmente atribuíam a armadilha de que tinham sido vitimas. Bem desconfiavam eles que aí andavam o dedo e a ronha do Ivo, mas dispostos a pespegar-lhe uma sova a propósito, o primeiro ímpeto foi contra o Sebastião, a cujo mandado obedecera o escrevente. Ignoravam ainda a despedida do Garatuja.

Na tarde daquele mesmo dia, estava o pecador" do Ivo escondido no quintal em segredinhos com Marta, quando o "justo" Sebastião Ferreïra, já de retorno, vinha pela Rua da Quitanda em busca da sua casa à esquina da Rua do Aleixo.

Fora o tabelião dar seu giro do costume, e aproveitara para referir em cada porta o caso engraçado. Agora voltava deleitando-se ainda com a lembrança das gargalhadas que o tinham aplaudido, e caminhava teso e compassado ao longo da cerca do prelado.

Fatal imprudência!

De repente sentiu o Freire meter-se-lhe entre as tíbias, um objeto que ele a princípio cuidou ser a própria bengala; mas não teve tempo de averiguar, porque apesar de sua grave compostura foi obrigado a ir de ventas ao chão e esborrachar a respeitável penca.

Babatando com esforço pôde erguer-se, mas sem bengala nem tricórnio, quando outra vez esgrimiu-lhe pelas canelas a taquara que o Cláudio com os companheiros, enfiavam pelo buraco da cerca. As ventas do tabelião de novo se achataram; e mais uma figueira foi plantada.

Finalmente, fulo de pó e bílis, conseguiu erguer-se o Sebastião Ferreira, mas foi para receber a mais tremenda encapelação, que já sofreu atrevido calouro no pátio de uma academia.

Os minorenses, saltando da cerca, tinham caído sobre ele de petelecos e chufas:

— Uh!... Uh!... mestre urubu!...

— Velho fuinha!

— Estais tonto, pato choco!

— Ora vejam, que pascácio? A cair pelas ruas!

— Se estará triscado!

— Qual! São manhas do sendeiro!

— Agüenta, ó pax-vóbis!

— Olha o casquete, que te esquece! disse o Cláudio fincando-lhe dum murro o tricórnio na cabeça.

— Este traste será próprio? acudiu outro empolgando a penca afogueada do tabelião.

— Com certeza é postiço!

— Puxa-o tu, que logo verás! Eu cá aposto que é beque de algum saveiro! Tanto espremeram as ventas do pobre homem, que afinal rompeu uma descarga de espirros, a modo de fuzilaria, e respingou de tabaco e monco os olhos e a boca dos rapazes. Diante desse fogo rolante fugiram os assaltantes, tomados de nojo e perseguidos pelas galhofas dos companheiros que haviam escapado à metralha narigal.

Nesse momento assomou o prelado à porta da rua, e com sua habitual mansuetude exortou os seus fâmulos, ordenando-lhes que se recolhessem:

— Pode seguir descansado, senhor tabelião, que já os acomodei. Isto de rapazes, são como cachorros, que em pilhando a porta aberta, embestegam por ela afora, e não há ter mão neles.

O Sebastião Ferreira não se dignou ouvir. Amarrotado pela encapelação na qual entretanto nunca perdera a sua gravidade, enveredou para a casa, onde chegou bufando de cansaço e de raiva. O pavio de uma candeia não arderia mais do que o magriço tabelião aceso em ira.

No entanto o Ivo, desapercebido do que sucedera, obtinha de Marta mais um abraço, que vinha completar as duas dúzias em três dias; e animado com esse sucesso atreveu-se, ainda que balbuciante, a pedir uma boquinha.

Teve em resposta um muxoxo, e viu desaparecer como por encanto o vulto da menina, que deitara a correr espavorida.