A troça dos estudantes com o Ivo à frente, servia de vanguarda ao motim, e fazia uma algazarra tremenda ao estalo da matraca, e ao zunido das cega-regas.

— Abaixo o prelado!

— E mais a sua clerezia!

— Fora com a súcia!

— Não queremos simonia!

— Â fogueira com eles!

— E os formigões?...

— Havemos de pô-los à viola!

— Qual viola, uma pisa!

— E o tal Cláudio?...

— Eu cá, em o pilhando, migo-lhe os focinhos!

Tomando a direção que lhe deu o Ivo, chegou a multidão em frente à casa do ouvidor, a quem saudou com repetidos clamores, instando por sua presença.

Velava ainda o Dr. Mustre, cogitando nos sucessos do dia e suas conseqüências; e pois ouvindo os reclamos do povo, acudiu pronto. Foi recebido com estrondosa ovação ao aparecer no lumiar da porta.

— Viva o Dr. Portugal!

— Viva!...

— Por muitos e longos anos!

— Viva!...

— São Sebastião, pelo nosso ouvidor!

— Pelo nosso ouvidor!

Destacou-se o Ivo, e acenando aos sujeitos que traziam em charola o Sebastião Ferreira para chegá-lo à frente, assim falou ao magistrado:

— Aqui estamos, os povos da cidade, e o Sr. Sebastião Ferreira Freire, a quem por influição do seu e nosso divino padroeiro, escolhemos e nomeamos por nosso procurador para defender-nos contra a arrogância da clerezia; e todos vimos para requerer a vossa mercê, como ouvidor de nossos agravos e principal ministro da Justiça de El-Rei, aquela que nos é devida, pela afronta que sofremos na pessoa do nosso tabelião.

— Queremos despicá-lo!

— Cala-te daí! Deixa falar o rapaz.

— Está conclusa em mão de vossa mercê, continuou o Ivo, a devassa tirada contra os criados do prelado; e porque não é bem que se retarde a punição dos culpados, pedem os povos aqui reunidos que vossa mercê profira sua respeitável sentença, para ser executada esta mesma noite; assim que daqui não sairemos sem ela.

— Venha a sentença! gritou a turba.

Não podia o Dr. Mustre cogitar melhor desforra contra o prelado do que essa que lhe acabava de sugerir o Garatuja.

Vendo-se apoiado pela efervescência popular, e podendo em todo o tempo escusar-se a pretexto de coato, decidiu-se o magistrado a responder à mitrada com uma chibatada de sua vara branca de ouvidor.

— Despachar os feitos com a maior presteza, é da obrigação do juiz: como é da minha satisfação prover as urgências dos povos de minha jurisdição, e deferir as suas súplicas, sendo elas fundadas em boa razão. Esperai enquanto torno!

Já se dissipara o atordoamento em que havia caído o Sebastião Ferreira; mas ao passo que fora saindo desse embotamento moral, o começara a invadir uma sorte de embriaguez: era a carraspana dessa jerebita, que chamam popularidade, e à qual não resistiam os pacíficos tabeliães de outrora, como também não lhe escapam hoje os nédios e maciços barões.

Vendo-se à testa daquele ajuntamento de gente, que requeria dos ministros d'El-Rei em tom de mando, e não de súplica, o nosso tabelião revestiu-se da sua importância de cabeça dos povos de São Sebastião, e enchendo-se de entusiasmo, exclamou:

— A sentença, senhor ouvidor, pois se recusais a estes povos a justiça real, não estranheis que apelem eles para a justiça de Deus!

— Sim, apelaremos!

— Apelemos já!

— Â toca do padre!

— Deite-se fogo à casa!

— Devagar, camaradas, clamou Ivo; é preciso fazer as cousas em regra. Se os bichos têm de ir lá parar, que vão com todas as cerimônias.

— Assim é!

— Esperemos a sentença.

Esta não se demorou. Breve assomou de novo à porta o Dr. Mustre, que deu leitura do decreto judicial pelo qual declarando precedente a devassa, sujeitava a prisão e livramento aos minorenses, fâmulos do prelado, ordenando se incluísse seus nomes no rol dos culpados, e se expedisse mandado de captura.

Com uma salva de aplausos foi acolhida a sentença, da qual o escrivão ad hoc lavrou logo o termo de publicação, passando incontinenti o mandado de captura, que foi entregue aos beleguins da Ouvidoria para o cumprirem com assistência dos povos.

Poucos momentos depois atopetava-se a multidão na Rua da Quitanda em frente da morada do prelado, cuja cerca foi invadida, e posta em sítio a casa. Esta conservava-se fechada como estava, e em silêncio, apesar do vozeio e burburinho do povo. Adiantou-se o beleguim, e batendo na porta com a vara, proferiu a seguinte intimação:

— Em nome d'El-Rei, e por ordem do senhor ouvidor-geral, intimo os moradores da casa, ou quem nela estiver, a que abram a porta a fim de cumprir a diligência que me foi ordenada, e não o fazendo à 3ª notificação, procederei a arrombamento e penetrarei à viva força e de mão armada, se for preciso.

Mal acabava o beleguim, que de supetão abriu-se a porta e assomou nela o vulto do prelado.

— Retirem-se, desavergonhados, que não se pisa a soleira desta casa, sem nossa vênia!

— Vênia? Nós do povo lha escusamos.

— Avie com isso, meirinho!

Impelido pelo arrojo do popular, o meirinho desenrolou o mandado:

— Com o presente mandado de captura, requeiro a Vossa Reverendíssima, Sr. Dr. Manuel de Sousa Almada, que entregue à prisão os seus fâmulos, Cláudio de Sousa...

— Insolente, bradou o padre, cuja cólera fez explosão. Desafio-te e a essa canalha, que transponham o batente desta porta. Aquele que o fizer será maldito; em nome de Deus o excomungo, e o teto desta casa se abata sobre os ímpios que a profanarem.

Ante essa execração, feita com gesto solene e voz retumbante, a multidão recuou pávida; mas ali estavam os estudantes para meterem o padre a ridículo, desarmando-o assim do prestígio que devia exercer no espírito daquela gente.

Rapazes, em lhes dando para rir, não respeitam as cousas mais sagradas; assim que soltaram os garotos um chorrilho de impropérios:

— Como grunhe o cevado! gritou um brejeiro, aludindo ao painel.

— Anda lá, acudi ti outro farsola; deite os bacorinhos para fora!

Romperam as gargalhadas e chacotas com que a multidão, de novo excitada, assaltou a casa do prelado.

Terríveis deviam ser as conseqüências desse embate da onda popular, e não era dado prever, os excessos que praticaria essa plebe, irritada com a resistência, e dirigida por meia dúzia de rapazes estouvados.

— Entregue os réus!

— Queremos os .minorenses!

— Havemos de trancafiá-los na cadeia.

O prelado esmagou-os sob o olhar altivo e recolheu-se com a dignidade de um ministro da Igreja.