As regiões que formam os municípios de Araxá, Patrocínio e Bagagem, na província de Minas, encerram paisagens as mais risonhas e encantadoras que se podem imaginar, e quem uma vez tem percorrido esses férteis e pitorescos sertões nunca mais os perde da lembrança.
É impossível dar uma idéia do aspecto geral desse país. A cada eminência que se transpõe, uma nova perspectiva nos surpreende, um novo panorama se desenrola aos olhos do viandante. Aqui o solo ondula graciosamente em colinas de suave declive, separadas uma das outras por cristalinos córregos, orlados de capões, cujo tope escuro se destaca vivamente em meio do brilhante e verde claro matiz das Campinas. Além se achata em vastos chapadões, que cansam a vista e impacientam o viandante que os percorre. Acolá os espigões se abaúlam, como leivas gigantescas divididas pelos buritizais que se estendem como filas de guerreiros ao longo dos brejais. Aqui o horizonte é limitado ao longe por uma linha de serras, cujos topes, longe de serem coroados de ásperos alcantis, são lisos e risonhos tabuleiros cobertos de viçosas e suculentas pastagens. Acolá uma linha escura forma o fundo do painel; é a selva profunda e imensa, que lá se vai perder pelo coração dos desertos sem fim. De todas essas encostas, por todos esses vales, à sombra de todos esses selváticos vergéis, jorram e murmuram perenemente com pasmosa abundância as mais límpidas e frescas águas. O humilde regato que aqui transpondes de um salto, algumas léguas além ainda ao alcance de vossas vistas já é largo e caudaloso rio.
Tudo é belo e grandioso, é risonho e enlevador por aquelas imensas solidões.
Inúmeras manadas de gado e de éguas, mugindo e relinchando pelos vargedos de viço perenal, bandos de emas e siriemas vagando pelos camegais, alegram a solidão daqueles sertões abençoados.
De três em três , de quatro em quatro léguas lá alveja no fundo do valado, entre moitas de laranjais, coqueiros e bananeiras, a casa do abastado lavrador, que o viandante fatigado saúda sempre com indizível prazer, pois sabe que à sua porta o espera a mais franca e cordial hospitalidade.
Posto que ali ainda não tenham penetrado os benefícios do progresso material, todavia a condição moral e intelectual da população é e sempre foi excelente. Os habitantes dessas regiões são notáveis pela amenidade dos costumes e pela amabilidade do trato.
Nessas paragens os homens são robustos, ativos e inteligentes, as moças são bem feitas, meigas e formosas.
Todas essas vantagens são devidas talvez em grande parte à doce e sempre igual temperatura do clima, à inexcedível uberdade do solo, à beleza e magnificência de seus horizontes incomparáveis.
Entre a Bagagem e a vila do Patrocínio, no meio de espigões separados por um pequeno córrego situado num vale delicioso, que ia morrer nas faldas de um serrote vizinho, era a fazenda do major. No sertão não há fazendeiro algum tanto abastado que não tenha um posto elevado na guarda nacional. Portanto, para não declinar o nome de nosso personagem, o designaremos sempre pelo do seu posto.
A casa do Major era baixa mas espaçosa, circundada pelas suas faces, que olhavam para o lançante do espigão, de uma larga varanda aberta, e pelos fundos reunida entre moitas de laranjeiras, coqueiros, jambeiros e outras árvores frutíferas, que em pitoresca desordem a sombreavam em torno.
Na frente havia um vasto curral em um canto do qual erguia— se uma velha e truculenta gameleira, dessas que estendem seus galhos gigantescos dez braços em derredor, e que servia de sombra e aprisco para o gado, para os carros e outros utensílios de roça.
No fundo do quintal que era um vasto vergel de árvores frutíferas plantadas promiscuamente e sem simetria alguma, corria o córrego, que descia das alturas vizinhas sempre fresco e cristalino, à sombra de espessos e viçosos capões. Do outro lado, pela beira do córrego, corria uma orla de capoeira inculta e emaranhada.
Em certo lugar o riacho, como que fatigado de correr e retouçar por entre as pedras, vinha espreguiçar— se e adormecer em um largo e cristalino tanque, em cujas bordas havia uma linda vargenzinha toda alcatifada de rasteiro e mimoso capim. Era ali a fonte e o coradouro em que as escravas da casa costumavam lavar a roupa. Ali também a filha do Major, a formosa e interessante Lúcia, costumava trazer, nas horas de sesta, a sua cestinha de costura, e junto com Júlia, sua irmãzinha de nove anos, assentada no gramal à sombra de uma moita de arbustos, trabalhava cantarolando alguma singela copla, ou conversando com as escravas.
— Joana, tu não queres ir à vila agora pelas festas do dia 7 de setembro?
— Sinhazinha vai?
— Eu hei de ir por força; há parada, papai é Major, não pode deixar de ir, e bem vês que não pode deixar— nos aqui sozinhas.
— E então? Como é que sinhazinha há de ir sem sua negra? Quem é que há de lhe lavar e engomar os vestidos, pentear seu cabelo, e fazer o mais preciso? Sinhazinha cuida que há de perder festa; só se me amarrarem... já estou velha: é preciso aproveitar o meu tempo.
— Hás de ir, Joana, não tenhas cuidado, não posso passar sem ti... A festa dizem que vai ser muito arrojada; temos de lá ficar uns oito dias. Há cavalhadas, Joana.
— Cavalhadas! Ainda mais isso! Que bom! E eu que sou doida por cavalhadas! Não pode haver brinquedo mais bonito. Há quanto tempo não há disso por aqui! Esta terra já não é o que era dantes. No meu tempo, ah! Sinhazinha! Se Vmcê visse! Que bonitas cavalhadas não se corriam aqui e no Araxá! Era um gosto! Hoje isto já não presta para nada. Que é dos corredores de fama que então havia? Já morreu tudo. Agora isso há de ser alguma coisa à— toa.
— Estás enganada, Joana, estas vão ser muito boas. Aquele moço que aqui passou outro dia, não te lembras? Aquele moço alto, de cabelo preto e anelado...
— Ah! Já sei... O Sr Elias, aquele moço de Uberaba...
— Isso mesmo, Joana; ele também vai correr, e pediu a meu pai o cavalo rosilho.
— Oh! Aquele sim, que bonito cavaleiro não há de ser! É um mocetão sacudido e muito bem parecido.
— Não achas, Joana, que é um moço bem bonito? Eu também gostei muito dele.
— É um figurão, e parece ser muito boa pessoa. É pena ser tão pobre.
— Quem te disse que ele é pobre? Você o conhece?
— Eu não; mas está se vendo, sinhazinha; nem um pajem, nem um camarada... ele só com seu cachorro, sua espingarda e sua mala na garupa... então gente rica anda assim?
— Ora, isso não quer dizer nada; há muita gente rica que anda assim por gosto.
— Não creia nisso, minha sinhá; está— se vendo que ele é mesmo pobre. Quem sabe se mesmo o cavalo em que anda não é emprestado!
— Arre lá! Joana — replicou a moça com um sorriso que não disfarçava o seu enfado. — também que nos importa que ele seja pobre ou rico; entretanto eu duvido que nessas cavalhadas apareça um cavaleiro mais bem feito e mais bonito.
— Ah! Sinhazinha! Está me parecendo que Vmcê. Ficou... não quero falar... não; Deus me defenda.
— Ficou o quê? ... Joana; fala...
— Sinhazinha, não fica zangada com sua negra?
— Não, podes falar sem susto.
— Ficou mordida...
— mordida! Não entendo.
— Pois se não entende, melhor; e calo minha boca!
A escrava com quem Lúcia entretinha esta conversação era uma crioula algum tanto idosa, mas esperta, viva e palradeira: boa e fiel escrava, muito estimada de seus senhores e especialmente de Lúcia, a quem na infância tinha amamentado. As últimas palavras que dirigiu à moça foram proferidas com certa intenção, ao mesmo tempo que fitava nela um olhar malicioso. A moça compreendeu, corou e sorriu levemente, e tratou de desviar a conversa daquele assunto.
— mas, Joana, eu tenho muita costura que fazer de amanhã em Dante, tu e a Paula hão de me ajudar, se é que querem ir à festa.
A estas palavras, as quatro ou cinco raparigas que ali se achavam também ocupadas na lavagem de roupa, acudiram a um tempo, a garrular como uma chusma de periquitos.
— E eu também estou aí, sinhazinha. Paula não é capaz de engomar melhor do que eu; sinhazinha há de me levar, não é assim?
— E a mim também, sinhazinha, há que tempos que eu não vou à vila.
— Cala— te; você ainda outro dia foi a desobriga, e eu fiquei; agora é que eu devo ir, sinhazinha.
— E eu então? Vocês todas têm ido à vila este ano, e eu, pobre de mim, ainda nem para ouvir uma missa.
Lúcia via— se zonza no meio daquela algazarra de pedidos importunos que choviam sobre ela a um tempo a atordoar— lhe os ouvidos, como um bando de maritatacas.
— Pelo que vejo, vai a não ficar ninguém em casa! Hão de ir aquelas que for possível. Havemos de ver isso depois. Por agora tratem de seu serviço e não estejam a me aborrecer.
Estas palavras, a que Lúcia então procurava dar um tom severo, não produziram senão um efeito passageiro. A tagarelagem e as importunações continuaram na mesma, daí a pouco, e não teriam fim, se o sol que se ia escondendo atrás das colinas não viesse avisar que era tempo de se recolherem.
As negras trataram de arrumar a roupa em gamelas e balaios, que puseram na cabeça; Lúcia tomou em um dos braços seu balainho de costura, deu a mão à sua irmãzinha, e todo aquele alegre e interessante grupo a um de fundo foi desaparecendo por entre o laranjal.
Daí a pouco ouvia— se a sineta da casa chamando a família e os escravos para a reza da Ave— maria, e ao som dessa reza, dos últimos cantos do galo e dos gorjeios do sabiá, enviando à tarde um derradeiro adeus, a paz e a benção do céu desciam nas asas cinzentas do crepúsculo sobre aquelas tranqüilas solidões.
Lúcia tinha dezoito anos; seus cabelos eram da cor do jacarandá brunido, seus olhos também eram assim, castanhos bem escuros. Este tipo, que não é muito comum, dá uma graça e suavidade indefinível à fisionomia.
Sua tez era o meio termo entre o alvo e o moreno, que é a meu ver, a mais amável de todas as cores. Suas feições, ainda que não eram de irrepreensível regularidade, eram indicadas por linhas suaves e harmoniosas. Era bem feita, e de alta e garbosa estatura.
Retirada na solidão da fazenda paterna, desde que saíra da escola, Lúcia crescera como o arbusto do deserto, desenvolvendo em plena liberdade todas as suas graças naturais, e conservando ao lado dos encantos da puberdade toda a singeleza e inocência da infância.
Lúcia não tinha uma dessas cinturas tão estreitas que se possam abranger entre os dedos das mãos; mas era fina e flexível. Suas mãos e pés não eram dessa pequenez e delicadeza hiperbólica, de que os romancistas fazem um dos principais méritos das suas heroínas; mas eram bem feitos e proporcionados.
Lúcia não era uma dessas fadas de formas aéreas e vaporosas, uma sílfide ou uma baiadeira, dessas que fazem o encanto dos salões de luxo. Toma— la— íeis antes por uma das companheiras de Diana, a caçadora de formas esbeltas, mas vigorosas, de singelo mas gracioso gesto.
Todavia era dotada de certa elegância natural, e de uma delicadeza de sentimentos que não se esperaria encontrar em uma roceira.
Esses dotes ela os devia em parte ao céu, que tanto a favorecera, e em parte à sua mãe, mulher espirituosa e sensível, e que se esmerava em dar— lhe uma excelente educação, que Lúcia procurava transmitir à sua pequena irmã, desde o berço.
Quanto ao Major, homem de espírito acanhado, frio e positivista, mas boa alma, o melhor dote que julgava poder dar ás suas filhas era dinheiro e só dinheiro.
A gentil sertaneja bem raras vezes ia à vila do Patrocínio; sua vida deslizava— se naquele ermo tranqüila e uniforme, como o murmúrio monótono de uma fonte, e sua alma era pura e alegre como manhã de abril, plácida e serena como uma noite de luar. Mas a vida não lhe corria inativa, e nem seu coração estava vazio.
Além de sua irmãzinha, em quem concentrava as suas mais ternas afeições, e a quem servia de mestra e de mãe na falta da verdadeira, que há muito haviam perdido, eram seus cuidados uma linda e mansa vaquinha favorita, da qual todos os das com suas próprias mãos tirava o alvo e espumante leite; eram suas pombas, seu pequeno jardim, e seu lindo oratório, que sempre trazia enfeitado de frescas e fragrantes flores, e em que todas as noites, com sua irmãzinha ao lado, rezava por alma de sua mãe.
Lúcia tinha prazer todas as vezes que se oferecia ocasião de ir à vila a qualquer festa, ou simplesmente para ouvir missa. Era uma agradável interrupção à sua vida monótona de roceira; ia espairecer um pouco seu espírito na sociedade, ia ver e gozar da companhia de suas amigas de escola. Mas, passados alguns dias, começava a sentir saudades de sua vaquinha, de suas pombas, de suas flores e de seu oratório.
Naquela ocasião, em que havia festas esplêndidas e arrojadas, como há muitos anos não se faziam naquele lugar por ocasião do aniversário da independência, havia ainda mais um incentivo, e pode— se fazer idéia da alegria infantil com que Lúcia e Júlia faziam os preparativos da pequena viagem, e da impaciência com que esperavam o dia da partida.
Para Lúcia havia ainda mais um poderoso motivo de emoção e alegria. O gentil mancebo, que pousara em sua casa, e que ia correr nas cavalhadas, não lhe saía da lembrança. Ao pensar nele Lúcia sentia no coração um alvoroço estranho, como nunca sentira em dia de sua vida.