Esse dia, em que Elias se via calcado pela pesada mão da fatalidade até o mais fundo da miséria e do infortúnio, era sábado de aleluia. É esse justamente o dia de mais festanças e folias nas povoações do interior. À tardinha as guitarras e violões ressoavam por toda a parte, as serenatas se ensaiavam, e uma alegre celeuma rumorejava por todos os cantos da nascente povoação.
Em casa do Major nesse dia também a reunião era mais numerosa e animada do que de ordinário, não só por ser o dia que era, como também por se darem ali como umas festas esponsais, em que se iam de uma vez para sempre confirmar as solenes e recíprocas promessas do casamento de Lúcia e Leonel, que tinha de ser celebrado no domingo seguinte, chamado de Pascoela. Nesse dia o Major dirigira convites expressos a grande parte das pessoas mais importantes do lugar. Ao toque de Ave-maria já ali se achava reunida uma escolhida sociedade, e na pequena sala do Major reinava entre luzes e harmonias a maior animação e contentamento.
Contentamento! ? oh! sim; ele se espelhava na fisionomia de todos, exceto na da infeliz Lúcia, que forcejava em vão para dar a seu semblante visos, se não de prazer, ao menos de sossego e serenidade. No propósito de disfarçar aos olhos dos outros, principalmente aos de seu pai e de seu noivo, a angústia que por dentro a pungia, vestira-se com todo o esmero, e até com certa garridice. Trazia vestido de alva e transparente garça, sobreposto a uma saia cor— de— rosa, segundo o costume encantador que estava em moda naquele tempo. O cinto era uma larga fita azul, cujas compridas pontas brincavam sobre as róseas ondulações da saia que a envolviam. Ao vê-la assim trajada poder-se— ia dizer com exatidão quase literal que era a aurora de um formoso dia surgindo entre nuvens de azul e rosas. As mangas do vestido nimiamente curtas deixavam-lhe ver quase completamente nus os braços cheios, mas mimosamente torneados. Na cabeça trazia por único enfeite uma rosa natural. Porém no meio de toda aquela faceira, mas singela casquilhice, ou fosse por um singular acaso, ou de propósito, via-se-lhe no peito uma saudade roxa: era o símbolo de seu coração.
Com o mesmo fim de disfarçar seus íntimos pesares, Lúcia procurava abafa-los no meio do turbilhão, conversando, dançando e brincando. Dobrado martírio para aquela nobre alma!
Enquanto na casa do Major tudo era alegria e folguedo, luz e harmonia, sozinho e merencório, com os cotovelos fincados sobre o parapeito da ponte que comunicava as duas partes da povoação, achava-se um vulto, que com a cabeça entre as mãos olhava fixamente para o ribeirão, que logo abaixo da ponte se despenha em rugidoras catadupas. Nos cachões revoltos da torrente via a imagem das idéias que lhe turbilhonavam no cérebro, dos sentimentos tempestuosos que lhe empuxavam desencontrada e dolorosamente o coração. O amor, a raiva, o ciúme, a vergonha, a sede de vingança, ora lhe traziam aos lábios um sorriso infernal de desespero, ora espremiam-lhe dos olhos lágrimas de fel e de fogo. De quando em quando erguia a cabeça, olhava para o alto da encosta, onde se avistava a linda casinha do Major difundindo em borbotões, luzes e harmonias, risadas e festivas vozerias. Tornava a curvar-se sobre o parapeito, rangendo os dentes e arrancando os cabelos como um possesso; depois com os olhos turvos namorava a torrente, que engrossada pelas chuvas dos dias precedentes roncava debaixo de seus pés. Num acesso de desespero ia precipitar-se; mas...
— Ainda não! murmurou com voz cavernosa. É preciso vê-la ainda uma vez, uma só e morrer. Quero ver tudo por meus próprios olhos; quero assistir às exéquias de minha felicidade, que lá se estão celebrando com tanta pompa e regozijo. Depois... me imolarei sobre elas. Vamos! coragem! apresentemo— nos lá; pouca gente reparará na minha presença... ah! talvez nem ela! ... que importa? vamos!
E saiu da ponte precipitadamente, encaminhou-se à casa, onde foi compor melhor o seu vestuário, e dirigiu-se resolutamente pelo caminho da casa do Major.
Não estranhem os leitores a sem— cerimônia com que Elias, sem motivo algum plausível, vai apresentar-se em casa do Major em uma noite de festim, sem a ele ter sido convidado. Nas povoações do sertão de Minas, antes que a malfadada política de aldeia tivesse penetrado por elas, degenerando ou estragando a singeleza dos costumes primitivos, as famílias, pela cordial intimidade que entre elas reinava, eram como grupos diversos de uma só família. As portas das salas de recepção nunca estavam fechadas. Nunca se soube o que é um criado, ou o cordão de uma campainha para anunciar uma visita, e muito menos um porteiro. Nos dias de regozijo e festa principalmente, as portas e janelas estavam francas para os passantes que quisessem ver ou tomar parte no regozijo, sem que ninguém lhes embargasse o passo, porque todos eram amigos e conhecidos íntimos.
Os leitores podem fazer idéia das emoções que agitavam o espírito de Elias ao aproximar-se daquela casa, e portanto me dispensarão da difícil, senão impossível, tarefa de descreve-las.
No momento em que Elias chegou, um homem cantava, acompanhando-se ao violão. Elias estremeceu ao ouvir aquela voz; parecia-lhe já a ter ouvido em alguma parte. Demorou-se um pouco no corredor até que acabasse o canto. A porta, que do corredor dava entrada para a sala, estava aberta de par em par. Porta e corredor estavam atulhados de gente de toda a classe, que escutava o cantor. Apenas este se calou entre palmas e bravos, e o povo começou a mover-se e agitar-se, aproveitando-se do rebuliço geral, Elias, para não ser notado, envolveu-se na turba e foi-se encaminhando para a sala. Ao chegar porém ao limiar da porta, estacou de súbito, como se um relâmpago dando-lhe nos olhos lhe tivesse ofuscado a vista. O que vira ele? ...
No fundo da sala, bem defronte da porta, viu sentada Lúcia com os olhos baixos e as feições um pouco abatidas, mas deslumbrante de beleza. O pudor e a comoção tinham-lhe acendido nas faces desbotadas pelo sofrimento uma ligeira cor, como a leve sombra de rosa, que lhe ondeava na alva garça do vestido.
Ao seu lado e meio voltado para ela, envolvendo— a de olhares ardentes e apaixonados, estava o feliz trovador, sustendo ainda nas mãos seu alaúde. Apenas Elias fitou— o por um momento, reconheceu no noivo de Lúcia, quem? ... o seu execrável protetor da Bahia, o moedeiro falso, o roubador de sua fortuna! O ladrão de sua felicidade era o mesmo ladrão de sua bolsa! Depois de lhe furtar o dinheiro no Sincorá, correra à Bagagem para roubar-lhe o coração de sua amante! ... Sim, era ele; ele mesmo, que ali estava rico à custa de sua miséria, feliz à custa de seu infortúnio.
O primeiro impulso do coração do moço foi chegar-se a Leonel, arranca-lo pelo braço de junto da sua noiva, puxa-lo para o meio da casa, e dizendo-lhe: ladrão, quero marcar-te na cara! imprimir-lhe nas faces uma bofetada. Mas teve prudência bastante ainda para sopear aquele primeiro movimento. Desviou os olhos dos dois noivos e procurou pela sala o Major. Descobriu— o logo bem perto da porta sentado junto a uma mesa, e dirigiu-se a ele.
— major, dá licença? ...
— Pode chegar; quem é? ...
— Não me conhece mais, senhor Major? ... disse o moço avizinhando-se.
— Ah! o senhor Elias! ... por aqui! ... há bem tempo que não o vejo, e nem tenho notícias suas. Então, por onde andou? quando chegou? conte— nos isso.
— Cheguei ontem, e não pude resistir ao desejo de vir vê-lo e cumprimenta-lo, apesar de que a hora e a ocasião não sejam próprias... peço-lhe desculpa...
— Obrigado. Fez muito bem; esta casa está sempre aberta para os amigos, em toda e qualquer ocasião.
— muito lhe agradeço tanta bondade, e por estar certo dela é que me atrevi a procurá-lo mesmo em tal ocasião.
Elias fazia um esforço supremo para dominar e disfarçar a tempestade que lhe ia dentro d’alma. Por seu lado o Major também estava longe de sentir no coração o prazer que procurava aparentar, com o aparecimento de Elias naquela ocasião. Bem conhecia a mútua afeição que, há longo tempo, existia entre sua filha e o jovem uberabense, e que era ela a causa da tristeza e do abatimento em que Lúcia há tanto tempo vivia, e da repugnância que sempre mostrara m aceitar marido. Agora, porém, que essa repugnância estava vencida, segundo ele pensava, e que o tempo e um novo afeto iam produzindo o desejado efeito, o aparecimento inesperado daquele rapaz não podia produzir em seu espírito agradável impressão, e não deixava de recear que a sua presença pudesse perturbar o complemento de seus projetos. Este receio subiu de ponto ao notar os olhares desvairados e o acento estranho da voz do mancebo, que debalde procurava dar a todo o seu ser um ar da mais fria indiferença.
— Nesta ocasião principalmente, meu amigo, prosseguiu o Major continuando a conversa, sinto especial prazer em ter mais uma testemunha, e da qualidade do senhor, da felicidade de minha filha, pois tenho a satisfação de participar-lhe que muito brevemente vai-se casar com o senhor Leonel, aquele belo e distinto cavalheiro que lá se acha junto dela.
— Já disso tive notícia, e dou-lhe os meus sinceros parabéns.
— É um excelente moço. Não há quem o veja, que desde a primeira vista não fique gostando dele. Quero ter a honra de desde já o apresentar a ele.
O simples do Major pensava que com esta formal declaração dava logo in limine golpe de morte a toda e qualquer esperança que ainda porventura Elias alimentasse a respeito de sua filha. Não tinha idéia da veemência das paixões enérgicas e profundas que, em vez de cederem, mais se inflamam diante dos obstáculos que se lhes opõem.
— Com muito gosto! vamos, senhor Major. Também desejo felicitar a noiva, disse Elias com um tom de amarga ironia que não escapou ao Major.
Este travou-lhe do braço, e o foi conduzindo para junto dos noivos.
— senhor Leonel, disse ele ao chegar defronte dos noivos, tenho a satisfação de lhe apresentar este meu patrício e amigo, que acaba de chegar de fora, o senhor Elias.
Leonel estremeceu, e olhou rapidamente para Elias. depois, reportando-se, fez um breve aceno com a cabeça, e o cumprimentou friamente.
Esta recepção fez ferver o sangue a Elias, que, resolvido a desmascarar aquele embusteiro, dirigiu-lhe resolutamente a palavra:
— Oh! senhor Leonel! ... já não m conhece? ... tenho infinito prazer em torna-lo a ver.
— Pois quê! exclamou o Major, então já se conheciam? ...
Leonel levantou-se pálido, e com visível perturbação largou, ou, antes, deixou cair sobre a cadeira o violão que tinha nas mãos, e bastantemente enfiado balbuciou:
— O senhor é... quem? ... não me lembro de todo.
— Pois deveras não se lembra de mim, continuou Elias em voz alta; veja lá... olhe bem para minha cara.
— Não; de todo não me lembro; tenho má memória, e lido com tanta gente, replicou Leonel recobrando aos poucos sua seguridade habitual.
— Pois não se lembra de Elias, o seu amigo, o seu protegido do Sincorá?
— Elias! ... resmungou o baiano como que forcejando por lembrar-se, não sei... talvez com um esforço de memória... no Sincorá! ... conheci e protegi tanta gente lá.
Aquela fatuidade e arrogância, aquele desdenhoso esquecimento, fosse real ou fingido, fez perder de todo a paciência a Elias, que bradou com toda a força de seus pulmões:
— Diga antes, senhor Leonel, enganei e roubei lá tanta gente!
— Insolente! gritou Leonel; senhor major, este homem ou é um doido, ou está bêbado; se o não fizer desaparecer imediatamente daqui, retiro-me d sua casa para nunca mais voltar...
— Cala-te, ladrão, bradou Elias; e, agarrando com mão de ferro o braço de Leonel, antes que ninguém pudesse estorvá-lo, em dois arrancos o arrastou para o meio da sala exclamando: És um ladrão, e hei de marcar-te na cara! ...
Imediatamente se ouviu o estalo de uma bofetada nas faces do baiano. Um punhal reluziu na mão deste; mas já ambos estavam cercados e separados por uma turba imensa.
— Que desaforo, senhor Major! exclamava um; isto não se tolera! como admite em sua casa um doido destes!
— Prendam! prendam esse biltre, bradava outro. Se não é algum malvado, é algum doido, ou algum bêbado.
— Este rapaz noutro tempo mostrava ter juízo, dizia um terceiro, que conhecia Elias. Não sei como agora se lhe virou o miolo por sta maneira! ... mande aferrolha-lo imediatamente; é um homem perigoso.
O Major dava aos diabos o momento em que se lembrara de apresentar a Leonel aquele endiabrado rapaz, e, entendendo que o despeito e o ciúme lhe tinham transtornado o juízo, tratou de dar providências para segura-lo bem.
Elias rodeado e segurado por uma multidão de esbirros oficiosos, que lhe dirigiam impropérios e baldões, foi dali arrastado para a casa da prisão, enquanto Leonel, cercado por seus amigos, brandia em vão o punhal, vomitando ameaças, e baforando vinganças.
Lúcia trêmula e atônita assistira àquela escandalosa cena sem dela nada compreender. Retirou-se como que assombrada para seu quarto; mas, naquele incidente, em que todos viam um deplorável e horrível desacato, ela entrevia como que um lampejo de esperança. Ela, e só ela acreditara nas palavras de Elias, e o julgava cheio de razão.
Leonel retirou-se para sua casa, respirando vingança, mas aterrado dentro d’alma com o aparecimento fatal daquele moço.