Peri apenas sentiu voltarem-lhe as forças, continuou a sua marcha através da floresta.
Por muito tempo seguiu as pegadas da índia pelo meio do mato com uma rapidez e uma certeza incríveis para quem não conhecer a facilidade com que os selvagens percebem os mais fracos vestígios que deixam as pisadas de um animal qualquer.
Um ramo quebrado, o capim abatido, as folhas secas espalhadas e partidas, um galho que ainda se agita, as pérolas do orvalho desfeitas, são aos seus olhos exercitados o mesmo que uma linha traçada na floresta, e que eles seguem sem hesitação.
Uma razão havia para que Peri se encarniçasse assim em perseguir aquela índia inofensiva, e a fazer esforços inauditos a fim de agarrá-la.
Para bem compreender esta razão, é necessário conhecer alguns acontecimentos que se haviam passado nos últimos dias pelas vizinhaças do Paquequer.
No fim da lua das águas, uma tribo de Aimorés descera das eminências da Serra dos Órgãos para fazer a colheita dos frutos e preparar os vinhos, bebidas e diversos alimentos de que costumava fazer provisão.
Uma família dessa tribo trazida pela caça aparecera há dias nas margens do Paraíba; compunha-se de um selvagem, sua mulher, um filho e uma filha.
Esta última era uma bela índia, cuja posse se disputavam todos os guerreiros Aimorés; seu pai, o chefe da tribo, sentia o orgulho de ter uma filha tão formosa, como a mais linda seta do seu arco, ou a mais vistosa pena do seu cocar.
Estamos no domingo.
Na sexta-feira, eram dez horas da manhã, Peri atravessava a mata imitando alegremente o canto do saixê, cujas notas sibiladas ele traduzia pelo doce nome de Ceci.
Ia então em procura desse animal que tão importante papel representa nesta história, especialmente depois de morto; como não o satisfazia qualquer pequeno jaguar, assentara buscar nos seus próprios domínios um dos reis das grandes florestas que corriam ao longo do Paraíba.
Cecília havia dito uma palavra, e ele que não discutia os desejos de sua senhora, tomara o seu arco e seu clavinote e se tinha posto a caminho. Chegava a um pequeno regato, quando um cãozinho felpudo saiu do mato, e logo depois uma índia que deu dois passos e caiu ferida por uma bala.
Peri voltou-se para ver donde partia o tiro, e reconheceu D. Diogo de Mariz que se aproximava lentamente acompanhado por dois aventureiros.
O moço ia atirar a um pássaro, e a índia que passava nesse momento, recebera a carga da espingarda e caíra morta.
O cãozinho lançou-se para sua senhora Uivando, lambendo-lhe as mãos frias e rogando a cabeça pelo corpo ensangüentado como procurando reanimá-la. D. Diogo, apoiado sobre o arcabuz, volvia um olhar de piedade sobre essa moça vitima de um capricho de caçador, que não desejava perder a sua pontaria.
Quanto a seus companheiros, riam-se do acontecimento e divertiam-se a fazer comentários sobre a qualidade de caça que o cavalheiro tinha escolhido.
De repente o cãozinho que acariciava sua senhora morta, ergueu a cabeça, farejou o ar, e partiu como uma flecha.
Peri que tinha sido testemunha muda desta cena, aconselhou a D. Diogo que se recolhesse à casa por prudência, e continuou a sua caminhada.
O espetáculo que acabava de presenciar o entristecera; lembrou-se de sua tribo, de seus irmãos que ele havia abandonado há tanto tempo, e que talvez àquela hora eram também vitimas dos conquistadores de sua terra, onde outrora viviam livres e felizes.
Tendo andado cerca de meia légua, avistou ao longe um fogo na mata; ao redor estavam sentados dois selvagens e uma índia.
O mais velho, de estatura gigantesca, engastava as presas longas e aguçadas da capivara nas pontas de canas silvestres, e afiava numa pedra essa arma terrível. O mais moço enchia de pequenas sementes pretas e vermelhas um fruto oco, ornado de penas e preso a um cabo de dois palmos de comprimento.
A mulher, que ainda era moça, cardava uma porção de algodão cujos flocos alvos e puros caiam sobre uma grande folha que tinha no regaço.
Junto do fogo havia um pequeno vaso vidrado com brasas no qual a índia de vez em quando deitava umas grandes folhas secas, que levantavam grossos novelos de fumo. Então os dois índios por meio de uma taboca aspiravam as baforadas deste fumo, até que os olhos lhes choravam; depois continuavam o seu trabalho.
No momento em que Peri examinava de longe esta cena, o cãozinho saltava no meio do grupo: o animal apenas respirou da corrida em que vinha, puxou com os dentes a trota de penas do índio mais moço, que o atirou a quatro passos com um empurrão.
Aproximou-se então da índia, repetiu o mesmo movimento; e como fosse mal acolhido ainda, saltou sobre o algodão, e mordeu-o: a mulher tomou-o pela coleira de frutos que trazia ao pescoço, sacudiu-o pelas costas, e arranjou as suas pastas; mas estavam tintas de sangue.
Examinou com inquietação o animal; e não o vendo ferido, lançou os olhos ao redor de si e soltou um grito rouco e gutural; os dois índios ergueram a cabeça interrogando com os olhos a causa dessa exclamação.
Por toda resposta, a índia mostrou o sangue que cobria o animal, e pronunciou com a voz cheia de aflição uma palavra de uma língua desconhecida, e que Peri não entendeu.
O índio mais moço saltou pela floresta como um campeiro atrás do cãozinho que lhe servia de guia; o velho e a mulher o seguiram de perto.
Peri compreendeu perfeitamente o que se passava, e seguiu seu caminho pensando que os colonos já deviam àquela hora estar fora do alcance dos selvagens.
Era isto o que o índio tinha visto; o que ele ignorava, o acontecimento do banho lhe revelara claramente.
Os selvagens haviam encontrado o corpo de sua filha, e reconhecido o sinal da bala; por muito tempo procuraram debalde as pisadas dos caçadores, até que no dia seguinte a cavalgata que passava serviu-lhes de guia.
Toda a noite rondaram em torno da habitação, e nessa manhã vendo sair as duas moças, resolveram vingar-se com a aplicação dessa lei de talião que era o único princípio de direito e justiça que reconheciam.
Tinham morto sua filha, era justo que matassem também a filha do seu inimigo; vida por vida, lágrima por lágrima, desgraça por desgraça.
Como pretenderam realizar a sua vingança e o fim que tiveram, já sabemos; os dois selvagens dormiam para sempre nas margens do Paquequer, sem que uma mão amiga lhes viesse dar sepultura.
Agora é fácil conhecer a razão por que Peri perseguia a índia, resto da infeliz família sabia que ela ia direito ter com seus irmãos, e que à primeira palavra que proferisse, toda a tribo se levantaria como um só homem para vingar a morte do seu cacique e a perda da mais bela filha dos Aimorés.
Ora, o índio conhecia a ferocidade desse povo sem pátria e sem religião, que se alimentava de carne humana e vivia como feras, no chão e pelas grutas e cavernas; estremecia só com a idéia de que pudesse vir assaltar a casa de D. Antônio de Mariz.
Era preciso pois exterminar toda a família e não deixar nem um vestígio de sua passagem.
Fazendo estas reflexões, Peri tinha gasto perto de uma hora a percorrer a floresta inutilmente; a índia ganhara um grande avanço durante o tempo em que ele lutava contra o desfalecimento produzido pela ferida. Por fim julgou que o mais prudente era avisar a D. Antônio imediatamente, a fim de que tomasse todas as medidas de prevenção que exigia a iminência do perigo.
Tinha chegado a um campo coberto por algumas moitas de carrascos, que se destacavam aqui e ali sobre um capim áspero e queimado pelo sol.
Apenas o índio deu alguns passos para atravessar o campo, parou fazendo um gesto de surpresa; diante dele arquejava um cãozinho, que reconheceu pela coleira de frutos escarlates que tinha ao pescoço.
Era o mesmo que há dois dias encontrara na floresta, e que naturalmente seguia a índia no momento em que ela fugia; o índio não o tinha visto por causa das guaximas.
O animal mostrava ter sido estrangulado por uma torção tão violenta, que lhe partira a coluna vertebral; entretanto ainda agonizava.
Do primeiro lanço de olhos Peri tinha visto tudo isto, e calculado o que se havia passado.
Aquela morte, pensava ele, não podia ter sido feita senão por uma criatura humana; qualquer outro animal usaria dos dentes ou das garras, e deixaria traços de ferimento.
O cão pertencia à índia; fora ela pois quem o havia estrangulado há bem poucos momentos, porque a fratura do pescoço era de natureza a produzir a morte quase imediatamente.
Mas por que motivo tinha feito essa barbaridade?—Porque, respondia o espírito do índio, ela sabia que era perseguida, e o cão que a não podia acompanhar serviria para denunciá-la.
Apenas formulou este pensamento, Peri deitou-se e auscultou o seio da terra por muito tempo; duas vezes ergueu a cabeça julgando iludir-se, e encostou de novo o ouvido ao chão.
Quando levantou-se, o seu rosto exprimia grande surpresa e admiração; tinha ouvido alguma coisa de que parecia duvidar ainda, como se os seus sentidos o iludissem.
Caminhou para o lado do nascente, auscultando a terra a cada momento, e assim chegou a alguns passos de uma grande touça de cardos que se elevava numa baixa do terreno.
Então colocando-se de encontro ao vento, aproximou-se com toda cautela e ouviu um murmúrio de vozes confusas, e o som de um instrumento que cavava a terra.
Peri aplicou o ouvido e procurou ver o que se passava além, mas era impossível; nem uma aberta, nem uma fresta davam passagem ao som ou ao olhar.
Só quem tem viajado nos sertões e visto esses cardos gigantes, cujas largas palmas crivadas de espinhos se entrelaçam estreitamente formando uma alta muralha de alguns pés de grossura, poderá fazer idéia da barreira impenetrável que cercava por todos os lados as pessoas cuja voz Peri ouvia sem distinguir as palavras.
Entretanto esses homens deviam ter ai entrado por alguma parte; e não podia ser senão pelo galho de uma árvore seca que se estendia sobre os cardos, e ao qual se enroscava um cipó nodoso e forte como uma vide.
Peri estudava a posição, e tratava de descobrir o meio de saber o que se passava atrás daquelas árvores, quando uma voz que julgou reconhecer exclamou:
—Per Dio! ei-la!
O índio estremeceu ouvindo esta voz, e resolveu a todo o custo conhecer o que faziam aqueles homens; pressentiu que havia ali um perigo a conjurar, e um inimigo a combater. Inimigo talvez mais terrível do que os Aimorés, porque se estes eram feras, aquele podia ser a serpente escondida entre as folhas e a relva.
Assim esqueceu tudo, e o seu pensamento concentrou-se numa única idéia, ouvir o que aqueles homens diziam.
Mas por que meio?
Era o que Peri procurava: tinha rodeado a touça aplicando o ouvido, e pareceu-lhe que em um lugar o ruído das vozes e do ferro que continuava a cavar, lhe chegava mais distinto.
O índio abaixou os olhos, que brilhavam de contentamento.
O que produzira essa agradável impressão fora um simples montículo de barro gretado, que se elevava como um pão de açúcar dois palmos acima da terra, e que estava encoberto por folhas de tanchagem.
Era a entrada de um formigueiro, de uma dessas casas subterrâneas construídas pelos pequenos arquitetos que à força de paciência e trabalho minam um campo inteiro, e formam verdadeiras abóbadas debaixo da terra.
Aquele que Peri descobrira tinha sido abandonado pelos seus habitantes, em virtude da enxurrada que penetrara no pequeno subterrâneo.
O índio tirou a sua faca, e cerceando a cúpula dessa torre em miniatura, deixou a descoberto um buraco que penetrava pelo interior da terra, e decerto ia ter à baixa onde estavam reunidas as pessoas que conversavam.
Este buraco tornou-se para ele uma espécie de tubo acústico, que lhe trazia as palavras claras e distintas.
Sentou-se e ouviu.