D Antônio aproximou-se de Peri e apertou-lhe a mão:

— O que eu te devo, Peri, não se paga; mas sei o que devo a mim mesmo. Tu voltas à tua tribo: apesar da tua coragem e esforço, pode a sorte da guerra não te ser favorável, e caíres em poder de algum dos nossos. Este papel te salvará a vida e a liberdade; aceita-o em nome de tua senhora e no meu.

O fidalgo entregou ao índio o pergaminho que há pouco tinha escrito e voltou-se para seu filho:

— Este papel, D. Diogo, assegura a qualquer português de quem Peri possa ser prisioneiro, que D. Antônio de Mariz e seus herdeiros respondem por ele e pelo seu resgate, qualquer que for. É mais um legado que vos deixo a cumprir, meu filho.

— Ficai certo, meu pai, replicou o moço, que saberei responder a essa divida de honra, não só em respeito à vossa memória, como em satisfação dos meus próprios sentimentos.

— Toda a minha família aqui presente, disse o fidalgo dirigindo-se ao índio, te agradece ainda uma vez o que fizestes por ela; reunimo-nos todos para te desejarmos a boa volta ao seio dos teus irmãos e ao campo onde nasceste.

Peri fitou o olhar brilhante no rosto de cada uma das pessoas presentes, como para dizer-lhes o adeus que seus lábios naquela ocasião não podiam exprimir.

Apenas seus olhos se fitaram em Cecília, impelido por uma força invencível atravessou o aposento e foi ajoelhar-se aos pés de sua senhora.

A menina tirou do peito uma pequena cruz de ouro presa a uma fita preta, e deitou-a no pescoço do índio:

— Quando tu souberes o que diz esta cruz, volta, Peri.

— Não, senhora; de onde Peri vai, ninguém voltou.

Cecília estremeceu.

O selvagem ergueu-se, e caminhou para D. Antônio de Mariz, que não podia dominar a sua emoção.

— Peri vai partir; tu mandas, ele obedece; antes que o sol deixe a terra, Peri deixará tua casa; o sol voltará amanhã, Peri não voltará nunca. Leva a morte no seio porque parte hoje; levaria a alegria se partisse no fim da lua.

— Por que razão? perguntou D. Antônio; desde que é necessário que nos separemos, tanto deves sentir hoje como daqui a três dias.

— Não, replicou o índio; tu vais ser atacado amanhã talvez, e Peri estaria contigo para defender-te.

— Vou ser atacado? exclamou D. Antônio pensativo.

— Sim: podes contar.

— E por quem?

— Pelo Aimoré.

— E como sabes isto? perguntou D. Antônio fitando nele um olhar desconfiado.

O índio hesitou durante um momento; estudava a resposta.

— Peri sabe porque viu o pai e o irmão da índia, que teu filho matou sem querer, olharem tua casa de longe, soltarem o grito da vingança, e caminharem para sua tribo.

— E tu o que fizeste?

— Peri viu-os passar; e vem te avisar para que te prepares.

O fidalgo fez com a cabeça um movimento de incredulidade.

— É preciso não te conhecer, Peri, para acreditar no que dizes; tu não podias olhar com indiferença para os inimigos de tua senhora e meus.

O índio sorriu tristemente.

— Eram mais fortes; Peri deixou que passassem.

D. Antônio começou a refletir; parecia evocar as suas reminiscências, e combinar certas circunstâncias que tinha impressas na memória.

Seu olhar abaixando-se do rosto de Peri, caíra sobre os ombros; a princípio vago e distraído como o de um homem que medita, começou a fixar-se e a distinguir um ponto vermelho quase imperceptível, que aparecia no saio de algodão do índio.

À proporção que a vista se firmava, e que o objeto se desenhava mais distinto, o semblante do fidalgo se esclarecia, como se tivesse achado a solução de um difícil problema.

— Estás ferido? exclamou o fidalgo de repente.

Peri recuou um passo; mas D. Antônio lançando-se para ele entreabriu o talho de sua camisa: e tirou-lhe as duas pistolas da cinta, examinou-as, e viu que estavam descarregadas.

O cavalheiro depois deste exame cruzou os braços e contemplou o índio com admiração profunda.

— Peri, disse ele, o que fizeste é digno de ti; o que fazes agora é de um fidalgo. Teu nobre coração pode bater sem envergonhar-se sobre o coração de um cavalheiro português. Tomo-vos a todos por testemunhas, que vistes um dia D. Antônio de Mariz apertar ao seu peito um inimigo de sua raça e de sua religião, como a seu igual em nobreza e sentimentos.

O fidalgo abriu os braços e deu em Peri o abraço fraternal consagrado pelos estilos da antiga cavalaria, da qual já naquele tempo apenas restavam vagas tradições. O índio, de olhos baixos, comovido e confuso, parecia um criminoso em face do juiz.

— Vamos, Peri, disse D. Antônio, um homem não deve mentir, nem mesmo para esconder as suas boas ações. Responde-me a verdade.

— Fala.

— Quem disparou dois tiros junto ao rio, quando tua senhora estava no banho?

— Foi Peri.

— Quem atirou uma flecha que caiu junto de Cecília?

— Um Aimoré, respondeu o índio estremecendo.

— Por que a outra flecha ficou sobre o lugar onde estão os corpos dos selvagens?

Peri não respondeu.

— É escusado negares; tua ferida o diz. Para salvar tua senhora, te ofereceste aos tiros dos inimigos; depois os mataste.

— Tu sabes tudo; Peri não é mais preciso; volta à sua tribo.

O índio lançou um último olhar à sua senhora, e caminhou para a porta.

— Peri! exclamou Cecília, fica; tua senhora manda.

Depois correndo para seu pai, e sorrindo-lhe entre as lágrimas, disse com um tom suplicante:

— Não é verdade? Ele não deve partir mais. Vós não podeis mandá-lo embora, depois do que fez por mim?

— Sim! A casa onde habita um amigo dedicado como este, tem um anjo da guarda que vela sobre a salvação de todos. Ele ficará conosco, e para sempre.

Peri, trêmulo e palpitando de alegria e esperança, estava suspenso dos lábios de D. Antônio.

— Minha mulher, disse o fidalgo dirigindo-se a D. Lauriana com uma expressão solene, julgais que um homem que acaba de salvar pela segunda vez vossa filha pondo em risco a sua vida; que, despedido por nós, apesar da nossa ingratidão, a sua última palavra é uma dedicação por aqueles que o desconhecem; julgais que este homem deva sair da casa onde tantas vezes a desgraça teria entrado, se ele aí não estivera?

D. Lauriana, tirados os seus prejuízos, era uma boa senhora: e quando o seu coração se comovia, sabia compreender os sentimentos generosos. As palavras de seu marido acharam eco em sua alma.

— Não, disse ela levantando-se e dando alguns passos; Peri deve ficar, sou eu que vos peço agora esta graça, Sr. D. Antônio de Mariz; tenho também a minha dívida a pagar.

O índio beijou com respeito a mão que a mulher do fidalgo lhe estendera.

Cecília batia as mãos de contente; os dois cavalheiros sorriam, um para o outro, e compreendiam-se. O filho sentia um certo orgulho, vendo seu pai nobre, grande e generoso. O pai conhecia que seu filho o aprovava, e seguiria o exemplo que lhe dava.

Neste momento Aires Gomes apareceu no vão da porta e ficou estupefato.

O que passava era para ele uma coisa incompreensível, um enigma indecifrável para quem ignorava o que sucedera anteriormente.

Pela manhã, depois do almoço, D. Antônio de Mariz, chegando a uma janela da sala, vira uma grande nuvem negra abater-se sobre a margem do Paquequer. A quantidade dos abutres que formavam essa nuvem, indicava que o pasto era abundante; devia ser um ou muitos animais de grande corpulência.

Levado pela curiosidade natural em uma existência sempre igual e monótona, o fidalgo desceu ao rio; encontrou junto da latada de jasmineiros que servia de casa de banho a Cecília, uma pequena canoa em que atravessou para a margem oposta.

Aí descobriu os corpos dos dois selvagens que imediatamente reconheceu pertencerem à raça dos Aimorés; viu que tinham sido mortos com arma de fogo. Nesse momento não se lembrou de coisa alguma senão de que os selvagens iam talvez atacar a sua casa, e um terrível pressentimento cerrou-lhe o coração.

D. Antônio não era supersticioso; mas não pudera eximir-se de um receio vago quando soube da morte que D. Diogo tinha feito involuntariamente e por falta de prudência; fora este o motivo por que se tinha mostrado tão severo com seu filho.

Vendo agora o começo da realização de suas sinistras previsões, aquele receio vago que a princípio sentira, redobrou; auxiliado pela disposição de espírito em que se achava, tornou-se em forte pressentimento.

Uma voz interior parecia dizer-lhe que uma grande desgraça pesava sobre sua casa, e a existência tranqüila e feliz que até então vivera naquele ermo, ia transformar-se numa aflição que ele não sabia definir. Sob a influência desse movimento involuntário da alma, que às vezes sem motivo nos mostra a esperança ou a dor, o fidalgo voltou à casa.

Perto viu dois aventureiros a quem ordenou que fossem imediatamente enterrar os selvagens, e guardassem o maior silêncio sobre isto: não queria assustar sua mulher.

O mais já sabemos.

Pensou que podia a desgraça, que ele temia, recair sobre sua pessoa, e quis dispor a sua última vontade, assegurando o sossego de sua família.

Depois, o aviso de Peri lembrou-lhe de repente o que tinha visto; recordou-se das menores circunstâncias, combinou-as com o que Isabel havia contado a sua tia, e conheceu o que se tinha passado como se o houvesse presenciado.

A ferida do índio que se abrira com as emoções por que passou durante o momento cruel em que sua senhora o mandava partir, tinha manchado o saio de algodão com um ponto quase imperceptível; este ponto foi um raio de luz para D. Antônio.

O escudeiro, o digno Aires Comes, que depois de esforços inauditos conseguira arrastar com o pé a sua espada, levantá-la e com ela cortar os laços que o prendiam, tinha pois razão de ficar pasmado diante do que se passava.

Peri, beijando a mão de D. Lauriana, Cecília contente e risonha, D. Antônio de Mariz e D. Diogo contemplando o índio com um olhar de gratidão; tudo isto ao mesmo tempo, era para fazer enlouquecer ao escudeiro.

Sobretudo para quem souber que apenas livre correra à casa unicamente com o fim de contar o ocorrido e pedir a D. Antônio de Mariz licença para esquartejar o índio; resolvido se o fidalgo lha negasse, a despedir-se do seu serviço, no qual se conservava havia trinta anos; mas tinha uma injúria a vingar, e bem que lhe custasse deixar a casa, Aires Gomes não hesitava.

D. Antônio vendo a figura espantada do escudeiro, riu-se; sabia que ele não gostava do índio, e quis neste dia reconciliar todos com Peri.

— Vem cá, meu velho Aires, meu companheiro de trinta anos. Estou certo que tu, a fidelidade em pessoa, estimarás apertar a mão de um amigo dedicado de toda a minha família.

Aires Gomes não ficou pasmado só; ficou uma estátua. Como desobedecer a D. Antônio que lhe falava com tanta amizade? Mas como apertar a mão que o havia injuriado?

Se já se tivesse despedido do serviço, seria livre; mas a ordem o pilhara de surpresa; não podia sofismá-la.

— Vamos, Aires!

O escudeiro estendeu o braço hirto; o índio apertou-lhe a mão sorrindo.

— Tu és amigo; Peri não te amarrará outra vez.

Por estas palavras todos adivinharam confusamente o que se tinha passado, e ninguém pôde deixar de rir-se.

— Maldito bugre! murmurava o escudeiro entredentes; hás de sempre mostrar o que és.

Era hora do jantar: o toque soou.