Álvaro ergueu-se como se os lábios da moça tivessem lançado nas suas veias uma gota do veneno sutil dos selvagens que matava com um átomo.
Pálido, atônito, fitava na menina um olhar frio e severo; seu coração leal exagerava a afeição pura que votava a Cecília a tal ponto, que o amor de Isabel lhe parecia quase uma injúria; era ao menos uma profanação.
A moça com as lágrimas nos olhos, sorria amargamente; o movimento rápido de Álvaro tinha trocado as posições; agora era ela que estava ajoelhada aos pés do cavalheiro.
Sofria horrivelmente; mas a paixão a dominava; o silêncio de tanto tempo queimava-lhe os lábios; seu amor precisava respirar, expandir-se, embora depois o desprezo e mesmo o ódio o viessem recalcar no coração.
— Prometestes perdoar-me!... disse ela suplicante.
— Não tenho que perdoar-vos, D. Isabel, respondeu o moço erguendo-a; peço-vos unicamente que não falemos mais de semelhante coisa.
— Pois bem! Escutai-me um momento, um instante só, e juro-vos por minha mãe, que não ouvireis nunca mais uma palavra minha! Se quereis, nem mesmo vos olharei! Não preciso olhar para ver-vos!
E acompanhou estas palavras com um gesto sublime de resignação.
— Que desejais de mim? perguntou o moço.
— Desejo que sejais meu juiz. Condenai-me depois; a pena vindo de vos será para mim um consolo. Mo negareis?
Álvaro sentiu-se comovido por essas palavras soltas com o grito de um desespero surdo e concentrado.
— Não cometestes um crime, nem precisais de juiz; mas se quereis um irmão para consolar-vos, tendes em mim um dedicado e sincero.
— Um irmão!... exclamou a moça. Seria ao menos uma afeição.
— E uma afeição calma e serena que vale bem outras, D. Isabel.
A moca não respondeu; sentiu a doce exprobração que havia naquelas palavras; mas sentia também o amor ardente que enchia sua alma e a sufocava.
Álvaro tinha-se lembrado da recomendação de D. Antônio de Mariz; o que a princípio fora uma simples compaixão tornou-se simpatia. Isabel era desgraçada desde a infância; devia pois consolá-la e desde já cumprir a última vontade do velho fidalgo, a quem amava e respeitava como pai.
— Não recuseis o que vos peço, disse ele afetuosamente, aceitai-me por vosso irmão.
— Assim deve ser, respondeu Isabel tristemente. Cecília me chama sua irmã; vós deveis ser meu irmão. Aceito! Sereis bom para mim?
— Sim, D. Isabel.
— Um irmão não deve tratar sua irmã pelo seu nome simplesmente? perguntou ela com timidez.
Álvaro hesitou.
— Sim, Isabel.
A moça recebeu essa palavra como um gozo supremo; parecia-lhe que os lábios do cavalheiro, pronunciando assim familiarmente o seu nome, a acariciavam.
— Obrigada! Não sabeis que bem me faz ouvir-vos chamar-me assim. É preciso ter sofrido muito para que a felicidade esteja em tão pouco.
— Contai-me as vossas mágoas.
— Não; deixai-as comigo; talvez depois as conte; agora só quero mostrar-vos que não sou tão culpada como pensais.
— Culpada! Em quê?
— Em querer-vos, disse Isabel corando.
Álvaro tornou-se frio e reservado.
— Sei que vos incomodo; mas é a primeira e a última vez; ouvi-me, depois ralhareis comigo, como um irmão com sua irmã.
A voz de Isabel era tão doce, seu olhar tão suplicante, que Álvaro não pôde resistir.
— Falai, minha irmã.
— Sabeis o que eu sou; uma pobre órfã que perdeu sua mãe muito cedo, e não conheceu seu pai. Tenho vivido da compaixão alheia; não me queixo, mas sofro. Filha de duas raças inimigas devia amar a ambas; entretanto minha mãe desgraçada fez-me odiar a uma, o desdém com que me tratam fez-me desprezar a outra.
— Pobre moça! murmurou Álvaro lembrando-se segunda vez das palavras de D. Antônio de Mariz.
— Assim isolada no meio de todos, alimentando apenas o sentimento amargo que minha mãe deixara no meu coração, sentia a necessidade de amar alguma coisa. Não se pode viver somente de ódio e desprezo!...
— Tendes razão, Isabel.
— Inda bem que me aprovais. Precisava amar; precisava de uma afeição que me prendesse à vida. Não sei como, não sei quando, comecei a amar-vos; mas em silêncio, no fundo de minha alma.
A moça embebeu um olhar nos olhos de Álvaro.
— Isto me bastava. Quando vos tinha olhado horas e horas, sem que o percebêsseis, julgava-me feliz; recolhia-me com a minha doce imagem, e conversava com ela, ou adormecia sonhando bem lindos sonhos.
O cavalheiro sentia-se perturbado; mas não ousava interromper a Isabel.
— Não sabeis que segredos tem esse amor que vive só de suas ilusões, sem que um olhar, uma palavra o alimente. A mais pequenina coisa é um prazer, uma ventura suprema. Quantas vezes não acompanhava o raio de lua que entrava pela minha janela e que vinha a pouco e pouco se aproximando de mim; julgava ver naquela doce claridade o vosso semblante, e esperava trêmula de prazer como se vos esperasse. Quando o raio se chegava, quando a sua luz acetinada caía sobre mim, sentia um gozo imenso; acreditava que me sorríeis, que vossas mãos apertavam as minhas, que vosso rosto se reclinava para mim, e vossos lábios me falavam...
Isabel pendeu a cabeça lânguida sobre o ombro de Álvaro; o cavalheiro palpitando de emoção passou o braço pela cintura da moça e apertou-a ao coração; mas de repente afastou-se com um movimento brusco.
— Não vos arreceeis de mim, disse ela com melancolia, sei que não me deveis amar. Sois nobre e generoso; o vosso primeiro amor será o último. Podeis-me ouvir sem temor.
— Que vos resta dizer-me ainda? perguntou Álvaro.
— Resta a explicação que há pouco me pedíeis.
— Ah! enfim!
Isabel contou então como apesar de toda a força de vontade com que guardava o seu segredo, se havia traído; contou a conversa de Cecília e o modo por que a menina lhe fizera aceitar o bracelete.
— Agora sabeis tudo; o meu afeto vai de novo entrar no meu coração, donde nunca sairia se não fosse a fatalidade que fez com que vos aproximásseis de mim, e me dirigisse algumas palavras doces. A esperança para as almas que não a conheceram ainda, ilude tanto e fascina, que devo merecer-vos desculpa. Esquecei-me, meu irmão, antes que lembrar-vos de mim para odiar-me!
— Fazei-me uma injustiça, Isabel; não posso é verdade ser para vós senão um irmão, mas esse título sinto que o mereço pela estima e pela afeição que me inspirais. Adeus, minha boa irmã.
O moço pronunciou estas últimas palavras com uma terna efusão, e apertando a mão de Isabel, desapareceu: precisava estar só para refletir sobre o que lhe acontecia.
Estava agora convencido que Cecília não o amava, e nunca o havia amado; e esta descoberta tinha lugar no mesmo dia em que D. Antônio de Mariz lhe dava a mão de sua filha!
Sob o peso da mágoa dolorosa, como é sempre a primeira mágoa do coração, o cavalheiro afastou-se distraído, com a cabeça baixa; caminhou sem direção, seguindo a linha que lhe traçavam os grupos de árvores, destacados aqui e ali sobre a campina.
Estava quase a anoitecer: a sombra pálida e descorada do crepúsculo estendia-se como um manto de gaza sobre a natureza; os objetos iam perdendo a forma, a cor, e ondulavam no espaço vagos e indecisos.
A primeira estrela engolfada no azul do céu luzia a furto como os olhos de uma menina que se abrem ao acordar, e cerram-se outra vez temendo a claridade do dia: um grilo escondido no toco de uma árvore começava a sua canção; era o trovador inseto saudando a aproximação da noite.
Álvaro continuava o seu passeio, sempre pensativo, quando de repente sentiu um sopro vivo bafejar-lhe o rosto; erguendo os olhos viu diante de si uma longa flecha fincada no chão, e que ainda oscilava com o movimento que lhe tinha imprimido o arco.
O moço recuou um passo e levou a mão à cinta; logo refletindo aproximou-se da seta e examinou a plumagem de que estava ornada; eram de um lado penas de azulão e do outro penas de garça.
Azul e branco eram as cores de Peri; eram as cores dos olhos e do rosto de Cecília.
Um dia a menina, semelhante a uma gentil castelã da idade Média, tinha se divertido em explicar ao índio, como os guerreiros que serviam uma dama, costumavam usar nas armas de suas cores.
— Tu dás a Peri as tuas cores, senhora? disse o índio.
— Não tenho, respondeu a menina; mas vou tomar umas para te dar; queres?
— Peri te pede.
— Quais achas mais bonitas?
— A de teu rosto, e a de teus olhos.
Cecília sorriu.
— Toma-as eu tas dou.
Desde este dia, Peri enramou todas as suas setas de penas azuis e brancas; seus ornatos, além de uma faixa de plumas escarlates que fora tecida por sua mãe, eram ordinariamente das mesmas cores.
Foi por esta razão que Álvaro, vendo a plumagem da seta, tranqüilizou-se; conheceu que era de Peri, e compreendeu o sentido da frase simbólica que o índio lhe mandava pelos ares.
Com efeito aquela flecha na linguagem de Peri não era mais do que um aviso dado em silêncio e de uma grande distancia; uma carta ou mensageira muda, uma simples interjeição: Alto!
O moço esqueceu os seus pensamentos e lembrou-se do que Peri lhe havia dito pela manhã; naturalmente o que acabava de fazer tinha relação com esse mistério que apenas deixara entrever.
Correu os olhos pelo espaço que se estendia diante dele, e sondou com o olhar as moitas que o cercavam, não viu nada que merecesse atenção, não percebeu um sinal que lhe indicasse a presença do índio.
Álvaro resolveu pois esperar; e parando junto da flecha, cruzou os braços, e com os olhos fitos na linha escura da mata que se recortava no fundo azul do horizonte, esperou.
Um instante depois uma pequena seta açoitando o ar veio cravar-se no tope da primeira, e abalou-a com tal força que a haste inclinou-se; Álvaro compreendeu que o índio queria arrancar a flecha, e obedeceu à ordem.
Imediatamente terceira seta caiu dois passos à direita do cavalheiro, e outras foram-se sucedendo na mesma direção de duas em duas braças até que uma mergulhou-se num arvoredo basto que ficava a trinta passos do lugar onde parara a princípio.
Não era difícil desta vez compreender a vontade de Peri; Álvaro, que acompanhava as setas a proporção que caiam, e que sabia indicarem elas o lugar onde devia parar, apenas viu a última sumir-se no arvoredo, escondeu-se por entre a folhagem.
Daí, com pequeno intervalo, viu três vultos que passavam pouco mais ou menos pelo lugar que há pouco havia deixado; Álvaro não os pôde conhecer por causa da ramagem das árvores, mas viu que caminhavam cautelosamente, e pareceu-lhe que tinham as pistolas em punho.
Os vultos afastaram-se dirigindo-se à casa; o cavalheiro ia segui-los, quando as folhas se abriram, e Peri resvalando como uma sombra, sem fazer o menor rumor, aproximou-se dele, e disse-lhe ao ouvido uma palavra:
— São eles.
— Eles quem?
— Os inimigos brancos.
— Não te entendo.
— Espera: Peri volta.
E o índio despareceu de novo nas sombras da noite que avançava rapidamente.