Eram seis horas da manhã.

O sol elevando-se no horizonte derramava cascatas de ouro sobre o verde brilhante das vastas florestas.

O tempo estava soberbo; o céu azul, esmaltado de pequenas nuvens brancas que se achamalotavam como as dobras de uma lençaria.

Os Aimorés, grupados em torno de alguns troncos já meio reduzidos a cinza, faziam preparativos para dar um ataque decisivo.

O instinto selvagem supria a indústria do homem civilizado; a primeira das artes foi incontestavelmente a arte da guerra, — a arte da defesa e da vingança, os dois mais fortes estímulos do coração humano.

Nesse momento os Aimorés preparavam setas inflamáveis para incendiar a casa de D. Antônio de Mariz; não podendo vencer o inimigo pelas armas, contavam destruí-lo pelo fogo.

A maneira por que arranjavam esses terríveis projéteis, que lembravam os pelouros e bombardas dos povos civilizados, era muito simples: envolviam a ponta da flecha com flocos de algodão embebidos na resina da almécega.

Essas setas assim inflamadas, despedidas dos seus arcos voavam pelos ares e iam cravar-se nas vigas e portas das casas; o fogo que o vento incitava, lambia a madeira, estendia a sua língua vermelha, e lastrava pelo edifício.

Enquanto se ocupavam com esse trabalho, um prazer feroz animava todas essas fisionomias sinistras, nas quais a braveza, a ignorância e os instintos carniceiros tinham quase de todo apagado o cunho da raça humana.

Os cabelos arruivados caiam-lhe sobre a fronte e ocultavam inteiramente a parte mais nobre do rosto, criada por Deus para a sede da inteligência, e para o trono donde o pensamento deve reinar sobre a matéria.

Os lábios decompostos, arregaçados por uma contração dos músculos faciais, tinham perdido a expressão suave e doce que imprimem o sorriso e a palavra; de lábios de homem se haviam transformado em mandíbulas de fera afeitas ao grito e ao bramido.

Os dentes agudos como a presa do jaguar, já não tinham o esmalte que a natureza lhes dera; armas ao mesmo tempo que instrumento da alimentação, o sangue os tingira da cor amarelenta que têm os dentes dos animais carniceiros.

As grandes unhas negras e retorcidas que cresciam nos dedos, a pele áspera e calosa, faziam de suas mãos, antes garras temíveis, do que a parte destinada a servir ao homem e dar ao aspecto a nobreza do gesto.

Grandes peles de animais cobriam o corpo agigantado desses filhos das brenhas, que a não ser o porte ereto se julgaria alguma raça de quadrúmanos indígenas do novo mundo.

Alguns se ornavam de penas, e colares de ossos; outros completamente nus tinham o corpo untado de óleo por causa dos insetos.

Entre todos distinguia-se um velho que parecia ser o chefe da tribo. Sua alta estatura, direita apesar da idade avançada, dominava a cabeça dos seus companheiros sentados ou agrupados em torno do fogo.

Não trabalhava; presidia apenas aos trabalhos dos selvagens, e de vez em quando lançava um olhar de ameaça para a casa que se elevava ao longe sobre o rochedo inexpugnável.

Ao lado dele, uma bela índia, na flor da idade, queimava sobre uma pedra cova algumas folhas de tabaco, cuja fumaça se elevava em grossas espirais e cingia a cabeça do velho de uma espécie de brama ou névoa.

Ele aspirava esse aroma embriagador que fazia dilatar o seu vasto peito, e dava a sua fisionomia terrível um quer que seja de sensual, que se poderia chamar a voluptuosidade dos seus instintos de canibal. Envolta pelo fumo espesso que se enovelava em torno dela, aquela figura fantástica parecia algum ídolo selvagem, divindade criada pelo fanatismo desses povos ignorantes e bárbaros.

De repente a pequena índia que soprava o brasido queimando as folhas de pitima estremeceu, levantou a cabeça, e fitou os olhos no velho, como para interrogar a sua fisionomia. Vendo-o calmo e impassível, a menina debruçou-se sobre o ombro do selvagem, e tocandolhe de leve na cabeça, disse-lhe uma palavra ao ouvido. Ele voltou-se tranqüilamente, um riso sardônico mostrou os seus dentes; sem responder obrigou a índia a sentar-se de novo, e a voltar à sua ocupação.

Pouco tempo havia passado depois deste pequeno incidente, quando a menina tornou a estremecer; tinha ouvido perto o mesmo rumor que já ouvira ao longe. Ao passo que ela espantada procurava confirmar-se, um dos selvagens sentados em roda do fogo a trabalhar fez o mesmo movimento que a índia, e levantou a cabeça.

Como se um fio elétrico se comunicasse entre esses homens e imprimisse a todos sucessivamente o mesmo movimento, um após outro interrompeu o seu trabalho de chofre, e inclinando o ouvido pôs-se à escuta.

A menina não escutava só; colocando-se longe do fumo e de encontro à brisa que soprava, de vez em quando aspirava o ar com a finura de olfato com que os cães farejam a caça.

Tudo isto passou rapidamente, sem que os atores desta cena tivessem nem sequer o tempo de trocar uma observação e dizer o seu pensamento.

De repente a índia soltou um grito; todos voltaram-se para ela e a viram trêmula, ofegante, apoiando-se com uma mão sobre o ombro do velho cacique, e a outra estendida na direção da floresta que passava a duas braças servindo de fundo a esse quadro.

O velho ergueu-se então sempre com a mesma calma feroz e sinistra; e empunhando a sua pesada tangapema, que parecia uma clava de ciclope, fê-la girar sobre a sua cabeça como um junco; depois fincando-a no chão, e apoiando-se sobre ela, esperou.

Os outros selvagens armados de arcos e tacapes, espécie de longas espadas de pau que cortavam como ferro, colocaram-se a par do velho, e prontos para o ataque, esperavam como ele. As mulheres misturaram-se com os guerreiros; as crianças e meninos, defendidos pela barreira que opunham os combatentes, conservaram-se no centro do campo.

Todos com os olhos fitos, os sentidos aplicados, contavam ver o inimigo aparecer a cada momento e se preparavam para cair sobre ele com a audácia e ímpeto de ataque que distinguia a raça dos Aimorés.

Um segundo se passou nesta expectativa inquieta.

O estalido que a princípio tinham ouvido cessou completamente; e os selvagens cobrando-se do susto, voltaram aos seus trabalhos, convencidos de que tinham sido iludidos por algum vago rumor na floresta.

Mas o inimigo caiu no meio deles, subitamente, sem que pudessem saber se tinha surgido do seio da terra, ou se tinha descido das nuvens.

Era Peri.

Altivo, nobre, radiante da coragem invencível e do sublime heroísmo de que já dera tantos exemplos, o índio se apresentava só em face de duzentos inimigos fortes e sequiosos de vingança.

Caindo do alto de uma árvore sobre eles, tinha abatido dois; e volvendo o seu montante como um raio em torno de sua cabeça abriu um círculo no meio dos selvagens.

Então encostou-se a uma lasca de pedra que descansava sobre uma ondulação do terreno, e preparou-se para o combate monstruoso de um só homem contra duzentos.

A posição em que se achava o favorecia, se isso é possível à vista de uma tal disparidade de número: apenas dois inimigos podiam atacá-lo de frente.

Passado o primeiro espanto, os selvagens bramindo atiraram-se todos como uma só mole, como uma tromba do oceano, contra o índio que ousava atacá-los a peito descoberto.

Houve uma confusão, um turbilhão horrível de homens que se repeliam, tombavam e se estorciam; de cabeças que se levantavam e outras que desapareciam; de braços e dorsos que se agitavam e se contraiam, como se tudo isto fosse partes de um só corpo, membros de algum monstro desconhecido debatendo-se em convulsões.

No meio desse caos via-se brilhar aos raios do sol com reflexos rápidos e luzentes a lamina do montante de Peri, que passava e repassava com a velocidade do relâmpago quando percorre as nuvens e atravessa o espaço.

Um coro de gritos, imprecações e gemidos roucos e abafados, confundindo-se com o choque das armas, se elevava desse pandemônio, e ia perder-se ao longe nos rumores da cascata.

Houve uma calma aterradora; os selvagens imóveis de espanto e de raiva suspenderam o ataque; os corpos dos mortos faziam uma barreira entre eles e o inimigo.

Peri abaixou o seu montante e esperou; seu braço direito fatigado desse enorme esforço não podia mais servir-lhe e caía inerte; passou a arma para a mão esquerda.

Era tempo.

O velho cacique dos Aimorés se avançava para ele sopesando a sua imensa clava crivada de escamas de peixe e dentes de fera; alavanca terrível que o seu braço possante fazia jogar com a ligeireza da flecha.

Os olhos de Peri brilharam; endireitando o seu talhe, fitou no selvagem esse olhar seguro e certeiro, que não o enganava nunca.

O velho aproximando-se levantou a sua clava e imprimindo-lhe o movimento de rotação, ia descarregá-la sobre Peri e abatê-lo; não havia espada nem montante que pudesse resistir àquele choque.

O que passou-se então foi tão rápido, que não é possível descrevê-lo; quando o braço do velho volvendo a clava ia atirá-la, o montante de Peri lampejou no ar e decepou o punho do selvagem; mão e clava foram rojar pelo chão.

O velho selvagem soltou um bramido, que repercutiu ao longe pelos ecos da floresta, e levantando ao céu o seu punho decepado atirou as gotas de sangue que vertiam, sobre os Aimorés, como conjurando-os à vingança.

Os guerreiros lançaram-se para vingar o seu chefe; mas um novo espetáculo se apresentava aos seus olhos.

Peri, vencedor do cacique, volveu um olhar em torno dele, e vendo o estrago que tinha feito, os cadáveres dos Aimóres amontoados uns sobre os outros, fincou a ponta do montante no chão e quebrou a lamina. Tomou depois os dois fragmentos e atirou-os ao rio.

Então passou-se nele uma luta silenciosa, mas terrível para quem pudesse compreendê-la. Tinha quebrado a sua espada, porque não queria mais combater; e decidira que era tempo de suplicar a vida ao inimigo.

Mas quando chegou o momento de realizar essa súplica, conheceu que exigia de si mesmo uma coisa sobre-humana, uma coisa superior às suas forças.

Ele, Peri, o guerreiro invencível, ele, o selvagem livre, o senhor das florestas, o rei dessa terra virgem, o chefe da mais valente nação dos Guaranis, suplicar a vida ao inimigo! Era impossível.

Três vezes quis ajoelhar, e três vezes as curvas de suas pernas distendendo-se como duas molas de aço o obrigaram a erguer-se.

Finalmente a lembrança de Cecília foi mais forte do que a sua vontade.

Ajoelhou.