Entretanto o sereno fazia-se forte e o Pedroca podia se constipar. Era prudente não ficarem mais ali e irem todos para dentro. Demais, d. Augusta estava sozinha e era preciso não abandoná-la assim sem mais nem menos. A velha senhora era muito boa, mas cheia de nicas, de forma que às vezes zangava-se por uma qualquer coisa onde enxergasse falta de consideração. E levantaram-se todos, cada qual tratando de repor as cadeiras de ferro no lugar em que as havia achado, sem interromper porém a discussão em que estavam empenhados. Nenê continuava ainda a defender a sua tese. Não queria admitir que lha contestassem. E a volta para casa fez-se em grandes alegrias e rumores de vozes a dialogarem. Apenas o Pedroca, que não entendia nada daquilo em que se ocupavam, conservava-se calado, muito unido ao corpo do Marcondes, que o trouxera ao colo, com medo da escuridão das árvores, não achando mais graça no barulho dos calçados a remexerem a areia dos caminhos que destacavam-se como faixas brancas no fundo negro do quadro.

Foi a sala de visitas o ponto escolhido para a reunião. Além de ser ela muito clara e confortável, era aí que se achava o piano e Nenê poderia distraí-los executando diversos trechos clássicos de que gostava muito. E, como Marcondes aproveitasse o ensejo para fazer um paralelo entre a música alemã e a italiana, que lhe agradava muito mais a moça engajou uma nova discussão, apreciadora como era de Beethoven e Mozart. Cada qual forcejava em produzir argumentos em seu favor, cantarolando trechos; os dois sozinhos, junto ao piano, porque D. Augusta conservava-se do lado oposto, sem dizer uma palavra, com o seu ar severo de vestal ofendida, e o Pedro não entendia nada de música e nas suas horas de pilhérias chegava mesmo a dizer que o piano fazia um barulho infernal a incomodar-lhe os ouvidos. Mas nesse momento ele estava com boas disposições, tanto que quis intrometer-se na conversa e concluiu no meio de gargalhadas que a música mais harmoniosa era a dos sinos de igreja quando dobravam por causa de algum defunto.

Nenê não gostava porém dessas caçoadas. Quem não entendia do negócio devia conservar-se calado! E o Pedro fez-se muito sério. Em toda a sua vida aquela história do piano fora sempre para ele motivo de contrariedades, porque a mulher acabava sempre por debochá-lo, meio amuada, não podendo compreender bem que houvesse gente com tanta aversão à música. Ao menos para não ficar calado quis dirigir a conversa para outro terreno e lembrou ao amigo as aulas do Matias. Como a moça desejasse explicações sobre as risadas com que foi acolhido este nome, entraram em detalhes. O Matias era o professor de música lá do externato d. Pedro II. Um bom homem, coitado, mas muito tolo e que se deixava ridicularizar pelos rapazes! E cada qual queria contar uma história a respeito. Falaram dos solfejos no meio dos quais se desentoava com uns grandes guinchos que revolucionavam em gargalhadas a aula inteira. Enfim, como não se fizesse exame da cadeira, só aprendia quem tinha vontade! E o Pedro disse então à mulher que o Marcondes era exatamente um daqueles que, no tempo, mais vocação havia mostrado.

O rapaz desculpava-se, fazia-se de modesto. Era verdade que tinha algum gosto para a coisa e que chegara mesmo a aprender um bocadinho de flauta! Mas não passava de um curioso! Nenê queria porém ouvi-lo e, como ele dissesse que trouxera uma, pediram-lhe muito para que a fosse buscar. Exatamente ela tinha uma música com acompanhamento e que lhe parecia muito fácil. Rápida em seus desejos, revolveu logo a estante e mostrou-lhe a partitura, que os dois examinaram enquanto o Pedro insistia e dizia ao amigo que não se fizesse de tolo e se deixasse de cerimônias. E tais foram os rogos e os pedidos que lhe dirigiram que o Marcondes viu-se obrigado a fazer-lhes a vontade. Começaram então de parte a parte os ensaios, cada qual trabalhando por acertar o compasso, e no fim de alguns instantes tiraram completamente a música e deram princípio à execução. O Pedro aplaudiu-os vivamente com grandes e estrepitosas palmas, e a própria d. Augusta, saindo bruscamente de sua atitude reservada, dirigiu ao rapaz algumas palavras de animação.

Nenê, essa nadava em contentamentos. Havia tanto tempo que ela sonhava encontrar alguém que a acompanhasse ao piano, com quem pudesse conversar sobre música, que a compreendesse enfim! E instintivamente estabelecia um paralelo entre o marido e o Marcondes. Se ela fosse casada com alguém nessas condições como havia de ser feliz! Vinham-lhe então umas lamentações íntimas. O marido, com as suas continuas pilhérias e aquelas declarações brutais de que o piano era um tacho rachado, estava até a fazê-la esquecer-se do que já sabia! Mas agora ia tomar um fartão! E planejava umas longas noitadas assim como essa, ali entre a mãe, o marido e o filho, durante as quais havia de executar com o outro as peças que aprendesse durante o dia Muito encantada com o projeto, queria logo procurar uma outra música, presa de estado febril, atirando-se no mais forte do caudal, com uma grande voracidade de prazeres, numa prodigalidade de alegrias. E o Marcondes prestava-se boamente às suas vontades, também encantado com semelhante desenlace, intimamente satisfeito de poder dar largas a sua paixão musical.