Atardecia. O vago escuro da noite que vinha fundia as arestas num mesmo quadro de negridões sem plano. Os lampiões iam bruscamente surgindo das trevas como estrelas candentes a alumiarem-se no suspenso da atmosfera. Falaram então na conveniência de irem para a casa que ainda se destacava brancamente por entre as folhagens das árvores. Já estava se fazendo tarde e o sereno que começava a cair podia constipar o Pedroca! Então, lentamente, cada um indo repor a sua cadeira de ferro debaixo do caramanchão, foram todos se encaminhando para o interior da casa, com passos vagarosos, parando de tempos em tempos para respirar mais de perto o perfume dos manacás! O repuxo do aquário continuava a umedecer o ambiente nuns ritmos alegres de chuvisco. E o Pedroca, ora junto a um, ora junto a outro, caminhava por entre risadas, achando muito engraçado o barulho das botinas a enterrarem-se nas areias soltas e branqueadas das alamedas.

Lá dentro dirigiram-se todos para a sala de visitas, cada qual tratando de se meter em seus cômodos, o Pedroca trepado no colo de sá Jovina a quem pedia insistentemente uma história. Mas a mãe fê-lo calar-se, recomendando-lhe que ficasse muito quietinho para não perturbar a música. A moça reclamava o auxílio do Marcondes. Ainda lhe tinham ficado gratas recordações daquele concerto da véspera, e agora que uma atmosfera de benevolências parecia circundar o rapaz, queria recomeçar com ele essa função de sonorosidades alegres. Sentada ao mocho do piano, ferindo a intervalos as teclas, clareada pelas luzes, um sorriso provocante a animar-lhe os lábios carnosos, sensuais e o luzidio dos olhos ternos, instava para que fosse buscar a flauta. E, como ele se resignasse a satisfazê-la, deram princípio à execução das partituras que se sucediam interminavelmente na estante. Eram de constante, umas surdinas harmoniosas, uns acordes fortes, apenas virgulados pelas palmas do Pedro e as aprovações de d. Augusta e sá Jovina, em meio à tristeza do menino que não ouvia a história.

Entretanto o Valentim viera interrompê-los, prevenindo-os de que o chá já estava na mesa. Nenê levantou-se de mau humor, com vontades de prolongar ainda aquela sessão musical que atualmente lhe constituía o único divertimento do dia. E quando todos se agruparam em torno à mesa, nos lugares que habitualmente ocupavam, a moça ainda conservava estampado na fisionomia o contradizer das sensações que a agitavam, misto de prazeres e dores, o meigo êxtase às vibrações harmoniosas que lhe repercutiam pelo interior do crânio e a contrariedade por ter-se visto obrigada a suspender bruscamente essa fonte sonora de doces enleios e poéticas visões. Distraída do que se passava, parecia absorta nuns mundos estranhos, sem dar atenção ao que a rodeava. E o chá ia sendo tomado aos bocadinhos, num grande silêncio de vozes, perturbado apenas pelo barulho dos dentes a mastigarem as torradas, esse barulho de ratinho que divertia tanto ao Pedroca. O menino porém conservava-se quieto, nuns ares de zangado, porque lhe tinham imposto silêncio e não o deixaram divertir-se em ouvir a história de sá Jovina. Calava-se, a cabecinha loura descansando sobre o braço nu, à borda da mesa.

Para contentá-lo, e como o Marcondes fizesse notar o modo tristonho da criança, a boa velha tomou-o ao colo e pôs-se a lhe contar uma história muito comprida. "Era uma vez um velho lavrador que tinha três filhas, tão bonitas que uma se parecia com o sol, a outra com a lua e a terceira com as estrelas! E o bom velho era pobre, tão pobre que nem tinha criados e ia ele mesmo ao mato para fazer lenha! Uma noite quando voltava para casa, carregando às costas o feixe de lenha, encontrou-se com um príncipe muito bonito, tão bonito que se parecia com o azulado do céu". E sá Jovina continuava no mesmo tom, a repetir pedaços de frases que o Pedroca parecia beber-lhe dos lábios numa grande sinergia de prazeres. Em torno da mesa tinha-se feito o silêncio e, a pouco e pouco, iam prestando atenção à boa velha, comprazendo-se em ver esse pequeno quadro da vida doméstica, enquanto o menino deixava amoleceremse os membros que caíam pesadamente prostrados ao sono lentamente a invadindo-lhe o organismo inteiro, marmoreando na estátua das felicidades infantis.

Então, espontaneamente, de todos os corações ergueu-se um coro de hosanas às alegrias da vida. Era tão bom aquilo! A gente sentia-se tão bem! E reunia-os umas grandes simpatias, a comunidade de existência e de aspirações. Tinham cessado inteiramente as primeiras hostilidades surdas com que na véspera haviam recebido o Marcondes. Agora todos tratavam de indenizá-lo das iniciais más vontades. Não poriam dúvidas em lhe abrir um cantinho onde vivesse, naquele ninho acolchoado e quente onde vinham quebrar-se em mansidões as vagas do exterior. Sentiam-se bem. O vento que lá fora remexia a folhagem trazia-lhes, pelas janelas abertas, o ar embalsamado dos jardins. Da mesa, onde quedavam-se, num desastre de refeições já feitas, os pratos e as xícaras servidas, vinham todas as sensações boas das honestidades burguesas. Sá Jovina continuava a sua história, numa voz plangente, como a melopéia tristonha das mornesas vitais. E todo este quadro da vida íntima encerrava-se na esfera luminosa do lustro, esfera sem limites demarcáveis, em zonas intermediárias de claro-escuros a fundir na vastidão negra daquela sala de madeiras.