A tarde, nas proximidades da hora do jantar, o Marcondes voltara com uma carroça na qual devia acondicionar as bagagens. Depois que esta partiu e cessou todo aquele rebuliço de carregadores a descerem as malas, o rapaz dirigiu-se para a sala de jantar, onde estavam todos reunidos, a fim de despedir-se e de entregar o presente que trouxera. Resolvera-se por um relógio e corrente de ouro que pretendia oferecer ao Pedroca mas do qual Nenê podia servir-se se o quisesse, assustado com a idéia de ver a moça recusar o mimo no caso de lhe ser diretamente ofertado. Naquela hora sentia-se fraco e acabrunhado, a caminhar pesadamente, nuns passos ofegantes de condenado que se dirige à forca, Mais forte e apetecível do que nunca lhe parecia aquele quadro holandês de vida familiar e honesta no emolduramento artístico do grande salão de madeiras. E lamentava o ter de abandonar todo aquele cantinho de mansidões em que por vezes sonhara viver uma vida morna de tranqüilidade sem fim a deslizar-se suavemente nos aconchegos bons desse ninho acolchoado.

Logo ao primeiro plano, como o vulto proeminente sobre o qual caíam fortemente os efeitos de luz, nas suas carnações sadias e belas curvaturas sensuais, destacava-se Nenê, a encará-lo fixamente, com um sorriso triunfal a entreabrir-lhe os lábios carnosos e rubros levemente separados pela linha branca da dentadura. Perturbou-se ao seu aspecto. Sentia-se pequenino e covarde ante aquela mulher que escapara de possuir, que por tanto tempo fora sua em pensamento, que tantas vezes sonhara abraçar no febril de uns sonhos de voluptuosidade, em cujos olhos vira tantas vezes tremeluzir uma súplica de amor. E este agora reaparecia-lhe mais forte e veemente, aumentado com os impossíveis que o rodeavam, recrudescido por tudo quanto havia sorrido. Os olhos se lhe umedeciam dolorosamente e, cada vez mais atrapalhado, reagia sobre si mesmo, querendo aparentar fortalezas, disfarçar todas as emoções que lhe enchiam sofredoramente o organismo inteiro.

Então começou a despedida, dirigindo-se primeiro para o Pedroca, que lhe escondia a cara, e a quem entregou a caixinha. Como a criança se voltasse e sorrisse, meio admirada, veio-lhe um grande prazer e abriu a caixinha de couro da Rússia para colocar ele mesmo a jóia. Abaixou-se, um joelho em terra para ficar à mesma altura, e pôs-se a brincar com a criança que se fazia alegre e o abraçava, contente de ter um relógio, querendo examiná-lo imediatamente, pedindo que lhe mostrassem o bichinho que fazia tique-taque, correndo de um lado para outro a fim de ostentar a todos o presente que lhe tinha dado o seu amigo grande. Foi esse um momento de satisfação para o Marcondes. As fisionomias se tinham desenrugado ante o aspecto risonho da criança, disputando-a, achando muita graça em vê-la com a sua roupa de fustão azul-escuro por sobre o qual luzia o ouro novo da corrente. Apenas, o Pedro perguntara-lhe se ele queria pagar com aquilo a hospedagem, mas fizera-o numa forma de quem não estava zangado, dando-lhe ensejo para agradecer as inúmeras finezas e atenções com que o tinham tratado.

E depois de ter abraçado e beijado o Pedroca o Marcondes dirigiu-se para os outros. Cumprimentou cerimoniosamente a d. Augusta, repetindo-lhe novamente os agradecimentos que fizera ao genro, oferecendo-lhe os seus pequenos préstimos e garantindo-lhe uma gratidão eterna, na grande hipocrisia da sociedade. A velha senhora respondia-lhe no mesmo tom, alambicando a frase, dando-lhe uns jeitos de quem tem trato de salão. Foi-lhe porém impossível continuar na mesma comédia com sá Jovina a quem nem mesmo estendeu a mão. Em presença de Nenê portou-se com bastante sangue-frio, encarando-a fixamente, agüentando-lhe o peso do olhar e aparentando sempre a mesma jovialidade. O Pedro abraçou-o e, como lhe voltassem as primitivas expansões de amizade, convidou-o para jantar. O seu talher ali estava a esperá-lo! O outro recusou-se. Tinha prometido ir à casa de um amigo que o esperava. E ele retirou-se com um grande cumprimento acompanhado até o portão pelo Pedro e pelo Pedroca.

Lá fora, quando se sentiu só, enxugou o suor que lhe pelejava a testa. Sentia-se opresso caminhando vagarosamente, ainda não podendo compreender bem o que se passara, a reconstruir aqueles vinte e tantos dias que levara em casa do amigo. Reviu-se no primeiro dia, chegando ali pelo braço do Pedro, ainda fresco da viagem, topando de repente com uma antipatia inicial, com um retraimento de caramujo que se esconde na concha! Mais tarde, vencidas as primeiras dificuldades, ele dominara na casa, rodeado de afetos e de carinhos! E, depois desse apogeu de felicidades, a sua estrela começara a descambar! Agora saía expulso dali por todo um processo inconsciente daquele organismo familiar. Também a culpa era dele! Lá nos tempos bíblicos, e por um fato idêntico, o outro tinha ido para a cadeia! Mas a lição havia de aproveitar-lhe! No camarim da mulher de Putifar ele deixaria nunca mais a sua capa de José do Egito!