Assim chegou a véspera do casamento de Luiz com Rosinha. Haviam escolhido um domingo e achava-se tudo quase pronto para o grande regabofe: a casa foi esfregada por dentro e por fora com sabão e areia; não ficou um átomo de pó nas paredes, um sinal de escarro no assoalho, nem uma teia de aranha no teto. Desde a porta da rua até à cozinha recamou-se o chão de folhas de mangueira e trevo cheiroso, pregaram-se arcos de verdura em todas as portas; pediram-se cadeiras, louças, copos e talheres emprestados a amigos para que nada faltasse na ocasião do banquete; mandaram-se vir dois garrafões, um de vinho e outro de parati, o tacho de açúcar não saiu do fogo e encheram-se compoteiras e tigelas de doce de coco, de araçá, de leite, de ovos, de goiaba, marmelo, bananas, sem contar com bolos e pudins — uma orgia de açúcar! O forno do padeiro, que lhes fornecia o pão, prestou-se a assar um peru, um quarto de carneiro, um leitão e um grande alguidar de arroz, guarnecido de azeitonas e rodelas de lingüiça. Trabalhou-se até à meia-noite em preparar o aposento dos noivos. A formidável cama lá estava, atravancando tudo; houve grandes discussões na ocasião de colocá-la porque aqueles não queriam, por coisa nenhuma desta vida, ficar com os pés para o lado da rua, "que era de mau agouro!" Resolveu-se a dificuldade condenando a porta da alcova e estabelecendo passagem por uma janela aberta sobre a salinha de jantar. Era um pouco maçante ter de entrar e sair do quarto aos pulos, lá isso era; mas, antes assim do que ficar com os pés para a rua. "Deus te livre!"

A cama estava imponente: descia-lhe da cúpula um enorme cortinado de labirinto, que a avó do Luiz, em quando moça, recebera como presente de uma senhora. do Porto, a cujo filho amamentara antes de vir para o Brasil; arrepanhavam-no pelas extremidades, à base das quatro colunas, grandes ramos de flores naturais, donde pendiam laços de cetim azul, baratinho, mas muito vistoso. Por cima da famosa colcha auri-verde com armas brasileiras figurava uma cerimoniosa cobertura de rendas, sobre a qual se desfolharam rosas e bogaris; e lá no alto, por fora do sobrecéu, esparralhado contra o teto, um imenso feixe de tinhorões e crotons.

— Que lindo! diziam comovidos.

Ao lado da cama. A que não se podia subir sem o auxílio de uma cadeira, estendeu-se um tapete já surrado, mas onde se distinguia ainda o desenho de um leão em repouso; a um canto do quarto uma retrete com braços, e de outro uma pequena mesa de pinho, coberta de chita até aos pés, tendo em cima uma lamparina de azeite e um econômico oratório de madeira pintada, com uma Virgem que desaparecia engolida no seu desproporcionado resplendor de prata. Não se podia ir de uma à outra banda do aposento sem galgar por cima do leito.

O casório fez-se no dia marcado, às dez da manhã, numa igreja do Andarai-Grande. Que pagode — Os noivos foram e voltaram a bonde, seguidos por uma dúzia de convidados de ambos os sexos e mais os padrinhos e as madrinhas; todos em gala de domingo. Muita roupa de cor, muita água flórida, muita jóia maciça e tosca, e muita pilhéria de tirar couro e cabelo. O tempo ajudava; fazia um belo sol de inverno, alegre e comunicativo. Rosinha, baixota, bem socada, parecia mais vermelha no seu vestido de cassa branca, e o enorme véu de cambraia pouco transparente e dura que a envolvia da cabeça aos pés, dava-lhe um feitio piramidal de pão de açúcar. Ia muito encalistrada sob a vista curiosa dos passageiros estranhos à festa; não ergueu os olhos durante toda a viagem e as mãos suavam4he com o grande ramo simbólico, cuja haste ela mantinha sobre o peito, como quem segura o cabo de um estandarte. O Luiz, à sua esquerda, mostrava-se, ao contrário, muito senhor de si e quase petulante de ventura; vestia calça e paletó de pano preto, novo em folha; nada de colete; tinha grandes sapatos de bezerro, engraxados, chapéu de lebre e gravata branca de cetim com um alfinete de ouro atravessando o laço. O casaco fechava-se-lhe sobre o estômago, deixando ver um peito de camisa, que era a última expressão da arte de reduzir o pano à madeira por meio do polvilho e do ferro de engomar; de tão duro e violento, rompia por entre as golas da roupa e abaulava-se arrogante numa só curva de alto a baixo; três botõezinhos de osso tingido de vermelho desfrutavam a suprema honra de guarnecer esta preciosidade. Levava dobrado ao pescoço, para resguardar o colarinho do suor, um lenço usado pela primeira vez, e no bolso do lenço trazia o relógio, com o trancelim bem à mostra por cima do peito. E todo ele rescendia ao óleo e à brilhantina do barbeiro.

Quando, ultimada a cerimônia religiosa, tornaram para casa, com a idéia no resistente almoço preparado. foram à porta da rua surpreendidos por um oficleide, um piston, um clarinete e um sax, que os perseguiam desd'aí até à sala de jantar, tocando furiosamente; era uma ovação feita ao recém-casado pelos seus companheiros de trabalho, que lá se achavam todos, mais ou menos endomingados. A refeição correu de princípio ao fim muito alegre e animada; não havia cerimônia; era comer e beber à vontade; fizeram-se os brindes do estilo e trocaram-se entre risadas as clássicas chalaças, com que essa boa gentinha dos cortiços costuma frizar brejeiramente a vexada felicidade dos noivos. Rosinha teve de repetir, por várias vezes a frase de repreensão: "Este sem vergonha!..." Depois da mesa engendrou-se um forrobodó e foi dançar pr'aí até o diabo dizer basta!

Um pagodão! Só uma coisa contrariava ao cavoqueiro: era ver entre aquelas moças, todas elas gente direita, a peste de uma bruaca que morava lá perto, uma tal D. Helena Guimarães, a quem a velha Custódia se lembrara de convidar.

— Ora pistolas!

— Mas que mal te fez a pobre de Cristo? - perguntou-lhe a avó.

— Não sei! E' mulher de má vida!

— É, não senhor, foi! Hoje não tem o que se lhe diga...

— Porque está canhão! ninguém a quer para nada! Aparecesse um tolo... e veríamos!

— Coitada!

— Um estupor, que parece estar metendo pela cara dos outros aquele vestido de seda mais velho que a Sé! Um raio de uma biraia toda cheia de não me toques, com uma cara de que tudo lhe fede, e a abanar-se como no teatro! Má peste a lamba!

— São maneiras, filho!

— Maneiras! Eu dava-lhas, mas havia de ser com um bom marmelo! Demônio de um calhamaço, que tisna as farripas e pinta os olhos para parecer bonita? Uma lata toda rebocada, que até faz nojo!

E escarrou de esguelha. — Não! Com certeza seria melhor que ela cá não estivesse!

E tinha razão. Ali, no meio daquela áspera gente do trabalho, gente de honestidade feroz, entre a qual o adultério do homem é tão severamente punido como o da esposa, a figura da tal I)~. Helena Guimarães destacava-se mais do que uma nódoa de lama no meio de uma camisa de algodão lavado. Na roda das prostitutas, seria um ornamento alegre, uma nota cômica — faria rir; mas ali servia apenas para constranger aos que queriam folgar em liberdade. Felizmente, porém, o estupor, mal acabou de jantar, ergueu-se e retirou-se logo, confessando-se indisposta. Sem dúvida foi para casa vomitar as tripas, que estômagos daqueles já não resistem à forte comida dos que se levantam antes do sol e trabalham doze horas por dia.

Pela volta das nove da noite surgiram como por encanto as violas e as guitarras, e o pagode tomou novo caráter. Pegou-se então de cantar o Fado Corrido, o Malhão, a Caninha Verde e a Espadelada. Começava a verdadeira festa.

Justina, que era louca pelo Fado, tratou de esgueirar-se, fugindo à tentação.

— Então já te raspas ? perguntou-lhe a irmã.

— Minh'ama está só... respondeu num tom misterioso e apressado.

— Mas ainda é cedo... dança ao menos uma roda e vai-te ao depois.

— Não, não! A pobrezinha está muito ruim! Não imaginas, está como nunca; até parece que já não regula bem!...

A outra fez um espanto e quis informações.

Não sei, filha, moléstias de família. O doutor disse outro dia que a mãe também acabara mal.

— E ela ainda pergunta por nós ?

— Sempre. Inda hoje me perguntou pelo Luiz...

— Coitada!

— Mas adeus, adeus, que já lá estão gritando por teu nome! Vai, filha, vai! Se me bispa o Manél das Iscas não me desgarra tão cedo!

Ao sair, na carreira que a Justina levava para atravessar a rua, um capadócio, tresandando a cachaça e cambaleando, deu-lhe uma atracação. A rapariga desviou o corpo e soltou-lhe tal punhada pelas ventas, que o borracho rodou sobre os calcanhares e zás — por terra! Ela seguiu adiante.

— Diabo dos vagabundos! resmungou; mas, ao transpor o portão da chácara do Conselheiro, ria-se com a idéia do trambolhão que pregara ao tipo. — Bem feito! é para não se fazer de tolo cá p'ra meu lado!

Encontrou a senhora ainda acordada, a cismar, estendida no divã da alcova.

— Então, que tal correu a festa! perguntou Magdá com um bocejo.

A criada deu conta de tudo; descreveu o lindo que estava a casa; o rico que foi o banquete; o muito que se dançou durante o dia; a gente que lá se achava, nomeando um por um todos os convidados.

— Ah, minh'ama, vosmecê não faz idéia! Não me fica bem a mim falar, mas esteve que se podia ver! Nada faltou! Até sorvetes, creia!

E passou aos pormenores: citou os pratos que se exibiram, as garrafas que se enxugaram. "Uma coisa era ver e outra dizer!"

— E o quarto?... acrescentou com interrogação de assombro, o quarto dos noivos?! Ah, que lindo! Todo forradinho de novo, com um papel azul de ramagens brancas. Metia gosto! E a cama? Só lençóis de linho — quatro! e mais três de algodão; não contando as colchas!

— Sete lençóis?

E, porque a ama fizesse um certo ar de estranheza: — Para não manchar o colchão, como não?

— Ah .... fez Magdá, caindo em si.

— E o colchão é novo em folha! O homem saiu-se!

— Que homem?

— O padrinho do Luiz, o Antônio Pechinchão! Pois quem foi que lhe deu a cama?

— Sim, sim.

— E' um traste que mete respeito. Aquilo deita a netos!

E, vendo que a senhora mostrava interesse, continuou a dar à língua, particularizando os episódios mais insignificantes da função, repetindo as partidas que se deram, narrando pilhérias, contando os namoros, os ciúmes, e afinal! — Ai! a Caninha Verde! "Que pena não poder ficar para ver!" Depois, sem se conter e rindo envergonhada, confessou a festa que lhe fez o Manuel das Iscas. "Pois o demônio do homem não lhe tocou em casar?... Ora que asneira!... uma viúva mãe de três filhos pode lá pesar nisso!..." E por ai foi. no calor do entusiasmo, derretendo em palavras o seu bom humor condimentado com os brindes desse dia.

Magdá escutava-a. imóvel, sem lhe opor uma palavra; agora assentada; o queixo enterrado entre as mãos, os cotovelos fincados sobre as coxas magras. Lá fora, na casa. dos noivos, continuavam a cantar ao desafio, ao som plangente das guitarras; e aquela música simples e melancólica, dissolvida num lamento harmonioso e continuo, ora chorado por voz de homem, ora soluçado por voz de mulher, chegava aos ouvidos dela, embebida em deliciosas mágoas de amor. Roía como uma saudade; gemia mais triste que a derradeira esperança quando abre as asas e desfere o vôo, para nunca mais voltar.

— Olhe, minh'ama! exclamou de súbito Justina.

— É ele que. está cantando agora! E' o Luiz!

Magdá ergueu-se com um sobressalto e correu à janela. Era, com efeito, a voz do seu companheiro da outra vida:

"Tu a amar-me e eu a amar-te, Não sei qual será mais firme! Eu como sol a buscar-te; Tu como sombra a fugir-me!"

E um coro de vozes abafadas respondia:

"Verde no mar Anda à roda do vapor. Ainda está para nascer Quem há de ser o meu amor."

E os olhos de Magdá orvalharam-se de ternura, e o seu coração enlangueceu dolente, como se aquela voz, tão meiga e tão sentida, a estivesse chamando lá da misteriosa ilha dos seus amores.

— Escute, escute, minh'ama! Agora é a Rosinha!

"Se fores domingo à missa,

Fica em lugar que eu te veja,

Não faças andar meus olhos

Em leilão por toda a igreja!"

E vinha logo o lamentoso estribilho, cujas últimas notas se prolongavam surdamente e morriam de leve, como orações feitas no alto mar em noites de tempestade.

Magdá estava num enlevo. Depois de Rosinha Luiz cantou de novo, e outros e outros os sucederam, e desafio foi se prolongando, e o tempo correndo, até que veio a madrugada surpreendê-la ainda esquecida à janela, na esperança de reconhecer entre aquelas vozes, e ouvi-la inda uma vez, a voz do seu fantástico amante.

— Ele não canta mais?... perguntou, afinal, à criada.

Justina sacudiu os ombros e disse entre dois bocejos que "era natural que o rapaz já se tivesse ido aninhar junto com a noiva".

— Ah!

— Também são horas e vosmecê devia fazer outro tanto...

— Outro tanto, como?...

— Devia deitar-se; descansar o corpo. São mais que horas?

— Que horas são?

— Caminha pr'as quatro.

— Já? Creio que eles não cantam mais...

— Não, minha senhora, acabou-se o pagode. Vosmecê quer que eu a adormeça no meu colo?

— Não. Você está caindo de sono.

— É que hoje lidei tanto...

— Pois recolha-se.

— E minh'ama, não se deita?

— Sim; já vou. Durma...

— Vosmecê sente alguma coisa ?

— Não; suponho que não...

— Então, faça-me a vontade, sim? recolha-se também; agasalhe-se, minh'ama.

E Justina foi fechar a janela e conseguiu obrigar a senhora a ir para a cama.

Mas a filha do Conselheiro não podia dormir; sentia-se inquieta, sobressaltada, cheia de estranha e dolorosa impaciência; uma impaciência sem objetivo; um desejar vago, sem contornos; um querer, fosse o que fosse, que ela não lograva determinar lucidamente, por melhores esforços que fizesse. Deram cinco horas; seis. Magdá ergueu-se de novo, frenética, atordoada, enfiou o sobretudo de lã, agasalhou a cabeça e o pescoço num xale de seda e pôs-se a passear no quarto. Agora o que mais lhe apertava o coração era uma enorme saudade do filho; precisava vê-lo, abraçá-lo, devorá-lo de beijos.

— Oh! que falta lhe fazia o sonho!... disse ela, torcendo-se de ansiedade.

Foi ter à janela da saleta contígua à sua alcova e ficou a olhar abstratamente lá para fora. O dia acordava, estremunhado, remanchão, preguiçoso, sem ânimo de abrir de todo as pálpebras sonolentas, espiando por entre as cambraias da neblina: não havia linhas de horizonte, não havia contornos definidos; era tudo uma acumulação de névoas, onde mal se pressentiam apagadas sombras. Nem viva alma se destacava; nem um só trabalhador passava para o serviço; a pedreira transparecia apenas, como se estivesse mergulhada dentro de uma grande opala derretida. E, aos olhos de Magdá, tudo aquilo principiou de afigurar uma natureza em embrião, um mundo ainda informe, em estado gasoso; alguma coisa que já existia e que ainda não vivia: um ovo ainda não galado por Deus.

Mas, daí a pouco, no fundo desse caos opaco, no âmago daquela albumina, a montanha começou a bulir, a mexer-se como um corpo em gestação, e depois a agitar-se como um feto que quer nascer.

A infeliz delirava lá.

E ela distinguiu que o imenso feto, sequioso de vida, espedaçava a crisálida e, erguendo a cabeça, sacudia cá fora, à luz do dia, a treva dos seus cabelos; e nessa cabeça, Magdá enxergava olhos que eram ternos e humanos, e lábios que sorriam de amor. E viu em seguida o gigante erguer os braços e romper as nuvens de alto a baixo, e pôs-se de pé, altivo e risonho, tocando com a fronte nas estrelas que a cingiam e constelavam de régio diadema.

E reconheceu logo o seu amante.

— Oh, enfim! exclamou num brado de contentamento, estendendo-lhe os braços e pedindo-lhe entre lágrimas de gozo, que sem demora a arrebatasse lá para a outra vida ideal da fantasia. Nessa ocasião, porem, outro gigante inda maior assomara para além das bandas do oriente, e este agora vinha formidável e terrível, armado da cabeça aos pés, irradiando fogo; e, só com o dardejar e reluzir do seu escudo, desmaiavam no céu as densas tímidas e palpitantes, fugia a lua assustada, e a terra tremia toda como a noiva na primeira noite das bodas.

Então Magdá viu entristecida a ciclópica figura do seu amado abalar-se e estremecer também, depois ir empalidecendo, até volver-se de novo montanha, agora resfraldada de gazes cor de pérola, que se rasgavam e desteciam aos raios do sol nascente; enquanto ao redor surgiam aqui e acolá pontas de igrejas e ângulos de chalets esmaltados pela aurora, e repontavam grupos de árvores e saiam no chão manchas verdes que logo se transformavam em hortas e jardins, e alvejavam curvas tortuosas que se desfaziam em ruas e caminhos, e pontos negros que eram carroç5es de lixo, e outros menores e ligeiros que eram carrocinhas de pão; e pareciam vacas a tilintar o chocalho à porta das chácaras; e homens de jaquetão à balega e chapéu desabado apregoando perus, frutas ou garrafas vazias; e lavadeiras com imensas trouxas de roupa na cabeça; e pretas e pretos carregando altos tabuleiros de verdura ou de carne fresca. E ouviam-se vozes de gente, choro e riso de crianças. latir de cães, cantar de galos, rodar de seges; um esfalfado zunzum de mundo gasto e enfermo, que acorda contra a vontade, inalteravelmente, como na véspera, para vegetar mais um dia de tédio, à espera da morte.

E Magdá afastou-se da janela e fechou-a com ímpeto, cheia de horror e cheia de nojo pelo mundo.

— Oh, que miséria! Oh, que miséria, meu Deus!

E cerrou os olhos para não ver nada, e tapou os ouvidos para nada ouvir; mas, apesar disso, sentia, nauseada, que ali estava a sua alcova de doente, o seu leito impregnado de moléstia. a mesinha de cabeceira coberta de abomináveis frascos de remédio; a enfermeira, a Justina, ressonando a um canto, sobre um colchão, de papo para o ar, a boca aberta, o peito almofadado, meio à mostra, e uma perna, brutalmente gorda, aparecendo estirada por entre os lençóis.

E isto era a vida! — Que horror! que horror! — Que abjeção! — Que porcaria!

E Magdá saiu do quarto para não espancar com os pés a criada, para não esbofetear a sua própria sombra; furtando-se daquilo, tudo desorientada, inconsolável, com ânsias de desertar do mundo, de fugir de si mesma, do seu próprio corpo, da sua própria alma. E, no entanto — as saudades do filho a crescerem, a crescerem-lhe por dentro, cada vez mais, alastrando como hera florida e viçosa por entre ruínas.

E nada de chegar o sonho ou o delírio! — Que desespero!

Oh, mas precisava ver o filho no mesmo instante, readquiri-lo; matar aquele desensofrido desejo que a devorava com exigência de um vício profundo, adquirido na primeira idade; precisava refugiar-se nele — no seu Fernando — no seu amado, que era todo casto, amoroso e lindo, que era todo ideal e puro, e nada tinha deste mundo e com esta vida, estúpidos ambos, e ambos dessorados por enfermidades e por paixões de toda a casta, infames, monstruosas e mesquinhas!

Correu à mesa dos medicamentos, rebuscou entre os vidros o de láudano, apoderou-se dele com avidez e tomou uma grande dose.

No fim de algum tempo, viu, porém, que nem assim lhe acudia o sono ou a letargia. — Que suplício! — Apenas ficava estonteada, presa de tênue vertigem, que de quando em quando lhe apagava a luz dos olhos. Entrou no mesmo estado pelo dia alto, muito abstrata, andando por toda a casa como uma sonâmbula. Ao lanche das duas horas da tarde, o pai quis detê-la no seu lado e obrigá-la a conversar; ela escapou-lhe por entre os dedos e fugiu em silêncio para o andar superior, olhando a espaços para trás, desconfiada.

Agora, neste momento, não sentia nada, absolutamente nada, que a incomodasse; nem enxaquecas, nem dores na espinha, nem dormência nas pernas; já não a perseguiam o gosto de sangue e o cheiro de magnólia; via-se leve, como se estivesse oca, vaporosa, aeriforme; sentia-se capaz de voar e de manter-se sobre uma pluma sem a abater. E dava-se ainda um outro fenômeno bem curioso: a vida real parecia-lhe agora o sonho, e o sonho afigurava-se-lhe a vida real; os fatos verdadeiros embaralhavam-se-lhe na mente, confundiam-se uns com os outros, fragmentavam-se, difundiam-se, escapavam; ao passo que os mais insignificantes pormenores da sua vida fantástica lhe permaneciam inteiros no espírito, claros e seguros à memória, como os cantos de um poema decorado na infância.

Queria lembrar-se do que, acordada, fizera na véspera; do que fizera havia poucos instantes, e não conseguia rememorar coisa alguma; enquanto que ainda lhe cantavam no ouvido, bem lúcidas e sonoras, as mais remotas palavras de Luiz, e ainda sentia nos lábios a impressão dos últimos beijos de seu filho. Recordava-se de toda a sua existência fictícia, instante por instante; poderia narrá-la inteira, seguida; descrevê-la de princípio a fim, sem lhe esquecer um episódio; e, no entanto, estranhava a sala em que estava, sem poder determinar que casa era aquela e donde tinham vindo aqueles objetos que a cercavam.

Volvia surpreendida os olhos em torno de si, alheia ao lugar; nada, de quanto a sua vista lobrigava, lhe trazia à razão a sombra mais sutil de uma reminiscência. Afinal, deu com um dos grandes espelhos que havia erguidos sobre os consolos, e mirou-se, deixando escapar uma longa exclamação de pasmo.

Desconhecera-se.

Aproximou-se mais da sua lívida e descarnada imagem, profundamente abismada de se ver tão feia. Virou-se de um para outro lado e voltou-se para trás, procurando quem era aquela múmia, aquela horrorosa criatura que se refletia lá no espelho.

— Não! não! murmurou, sem se alterar e até sorrindo. — A que aparece lá não sou eu. É impossível

E sacudia com a cabeça, punha a língua de fora, arregalava os olhos. O vidro reproduzia tudo.

— Mas não, não é possível que seja eu, insistia a desgraçada, fugindo da sua sombra e gritando, a correr pela sala: — Eu tenho sangue nos lábios, brilho nos olhos, frescura na pele! meus peitos são carnudos e suculentos como duas mangas picadas por passarinho! meu corpo é todo cheio e torneado como o da novilha que foi coberta e ainda não pariu! Eu sou a mais formosa entre as mulheres da terra, por isso meu amado me escolheu entre todas! Quando eu vou ter com ele, ando depressa, sacudindo as saias, e a barra do meu vestido rescende que nem a baunilha e a trevo-cheiroso

Justina acudiu aos lascivos gritos da senhora. O Conselheiro não foi logo, porque nessa ocasião fazia a sesta no divã do seu gabinete.

— Então que é isso, minh'ama?...

— Não! não! aquela que ali estava não era eu!... Bem sei que isto não passa de uma extravagância de sonho!...

— É porque vosmecê está muito fraca... Quer que lhe vá buscar o caldinho?....

Magdá não respondeu; olhava fixamente para as suas mãos angulosas e desfeadas. Depois, com uma careta de repugnância, tenteou-se toda e ficou a tomar nos dedos a magreza das suas coxas.

Mas riu-se logo, repetindo, a apalpar-se:

— Que sonho extravagante! Que sonho engraçado!

E ia de novo ao espelho e apontava para a sua figura, e ria--se a bandeiras despregadas, como ébria.

— Que sonho! Que sonho!

— Então, minh'ama, posso ir buscar-lhe o caldinho?..

Magdá pôs-se muito séria e correu para junto da criada, como se só então tivesse dado pela sua presença.

— Heim? Que é?

— Pergunto se vosmecê quer tomar o seu caldo?...

— Que caldo?

— Ora essa O seu caldinho das três horas.

— Três horas!

— Da tarde, minh'ama. Eu lho trago já.

E Justina saiu, resmungando: — Coitada! Inda ontem tão senhora de si e já hoje dá para não dizer coisa com coisa!... Mas isto há de passar, é fraqueza talvez!... ela, coitadinha, ainda não meteu nada p'ra o estômago!...

Daí a um instante voltava à sala.

— Prove, minh'ama, para ver como está seu apetite!

E esfriava o caldo com a colher, soprando-lhe em Magdá sorvia automaticamente as colheradas que levava à boca.

— Você onde estava?... perguntou a senhora.

— Na cozinha. Porque, minha'ama?

— E ontem, à noite?

— No casamento de minha mana...

— Sua mana?...

— A Rosinha, como não?

— Com quem ela casou?

— É boa! Com o Luiz! Pois minh'ama já se não lembra...

— Luiz? Quem é o Luiz?...

— Olhe agora! E' o filho da tia Zefa, o moço ali da pedreira...

— Ah!... Um de corpo nu, com a cara molhada de suor...

— Que trouxe vosmecê ao colo, quando minh'ama subiu ao morro... Minh'ama conhece-o, como não?

Justina dizia estas coisas com a paciência de quem conversa com um alienado de estimação; e a outra olhava para ela sem pestanejar, interrompendo a sua imobilidade apenas para sorver as colheradas de caldo.

— Um descalço, prosseguiu Magdá; um que tem cabelos no peito; a carne rija como pedra; branca de marfim; a boca cheirando a murta!... Conheço! oh, se conheço!... Pois, se lhe quero tanto bem!... E por onde anda agora esse ingrato...

— Está em casa, minh'ama... Ele hoje não foi ao serviço, porque se casou, mas...

— Ah! Ele casou-se...? Que homem!

— Casou-se ontem, sim senhora, mas amanhã está fino para o trabalho!

— Ah! Ele amanhã não fica na cama!...

— Não fica, não senhora.

— Casou-se! Pois diga-lhe que venha aqui com a noiva; quero dar-lhes um presente, um bom presente de núpcias. Traga-os, não se esqueça; ouviu?

— Sim senhora. E quando?

— Quando quiserem vir.

— E a que horas, minh’ama?

— A qualquer hora, contanto que venham.

Nisto entrou o Conselheiro, e> a um sinal trocado secretamente com a criada, esta lhe respondeu em voz baixa:

— Agora... depois do caldo, está melhorzinha, sim senhor.

— Era debilidade... pensou o velho e, aproximando-se da filha, perguntou, tomando-lhe as mãos:

— A minha flor como se sente agora?... Já está mais disposta a conversar com o seu papai?...

Ela olhou para ele, estendeu-lhe o rosto e recebeu sorrindo um beijo na testa.

— Vamos dar uma volta pela chácara... propôs o pobre homem, tomando-a pela cintura e amparando-lhe o corpo sobre seu peito.

Magdá deixou-se levar, sem dizer palavra e, enquanto andou lá por baixo, esteve sempre muito entretida, ligando grande interesse a tudo que encontrava, nem como se houvesse recuperado a vista naquele momento, depois de uma cegueira de nascença. Correu tudo, revistou todo o jardim e todo o porão da casa; e cada objeto, que seus olhos topavam, a não serem os produtos puramente da natureza, despertava-lhe espantos de criança: um regador de folha, pintado de encarnado, causou-lhe enorme curiosidade: deteve-se alguns minutos a contemplá-lo, muito admirada, sem conseguir compreender o que era aquilo; um chapéu velho, de copa alta, atirado ao chão, fez-lhe medo; parecia-lhe um bicho. O Conselheiro viu-se martirizado por um não acabar de perguntas verdadeiramente infantis, a que ele respondia com paciência de santo.

Quando, já ao dobrar da tarde, Justina a recolheu à alcova, ela assentou-se na cama e deu para fitar o seu crucifixo, indiferentando-se a tudo mais.

Era a letargia que enfim chegou.

Desta Vez a imagem não cresceu, conservou-se do mesmo tamanho, apenas se despregou da cruz e ficou, posto que suspensa, na posição de quem se espreguiça. O papel da parede foi a pouco e pouco se convertendo em um fundo de verdura esbranquiçada, cujos planos iam lentamente se formando e acentuando com as precisas gradações dos tons3 entretanto, o Cristo continuava sempre do mesmo tamanho, num desses planos, como por um efeito de perspectiva.. Afinal, destacaram-se árvores, plantas, uma paisagem inteira e o Cristozinho, deixou de espreguiçar-se e pegou de andar por entre a mata, com a tranqüilidade de quem passeia nos seus quintais.

Só então foi que Magdá percebeu que estava observando tudo isto de uma janela e apressou-se a olhar em torno de si.

Ah! exclamou, reconhecendo a sua adorada habitação da ilha. — Enfim Ora, graças a Deus!

Lá estavam os seus objetos de arte, a sua mesa, o seu piano.

— Ah! agora sim.. era outra coisa!... prosseguia, considerando o próprio corpo, afagando-o por vê-lo novamente belo e forte; mas, tocada por uma idéia que a fez estremecer, correu ligeira ao fundo do quarto, onde havia um berço.

— Ah! ah! Cá está ele! Cá está o meu ladrãozinho!

Fernando dormia; Magdá tomou-o nos braços, ergueu-se no ar o seu lindo corpinho nu e, vendo que ele agitava as pernas, rabujando zangado, chamou-o para os lábios e devorou-o de beijos.

O manhoso, assim que se pilhou no colo, pôs-se a rir.

— Coitadinho... balbuciou ela, rindo também, com as lágrimas nos olhos.

E levou-o para a janela. O pequenino, logo que deu com o Cristo que continuava a passear por entre as árvores, gritou sacudindo os seus bracinhos feitos de roscas gordas.

— Papá! Papá!

E, ao que parece, o Cristo lhe ouviu a voz, porque veio então se aproximando, aproximando, fazendo-se homem, até chegar à janela.

Não era mais o Cristo; era o moço da pedreira.