Magdá, acompanhada pelo pai e pelo médico, foi nesse mesmo dia conduzida à Casa de Detenção.
Delirou por todo o caminho. Afigurava-se-lhe que o carro em que iam era um barco e a rua um grande rio deslizado entre paredes de verdura.
— Mais depressa! mais depressa! exclamava a insensata aos dois falsos tripulantes que tinha ao lado.
— Não deixem dormir os remos!
— Há de ser difícil encontrar semelhante ilha... observou um deles.
— E eu duvido muito que a encontremos... considerou o outro.
— Ah! disse a filha do Conselheiro, notando que o rio se alargava. — Talvez que apareça agora!...
— Mas isto já é o mar!... contrapôs um daqueles.
— Pois é justamente no mar que ela está... confirmou a desvairada.
— No mar? Pois a senhora quer viajar em pleno mar com um barquinho tão à toa?...
— Não faz mal! respondeu a senhora. — Não faz mal! Vamos adiante!
— É que é muito arriscado! Podemos levar o diabo!
— Procuremos! Procuremos!
— Procurar uma ilha como quem procura uma casa!...
— Não tenham medo! Vamos para a frente!
E o barco, embalançado agora pelas águas do alta mar, proejava errante; ora batido para a direita, ora para a esquerda; ora avançando, ora recuando, à procura da ilha encantada. Magdá, erguida de pé, os cabelos soltos ao vento, concheava a mão sobre os olhos e procurava descobrir ao longe, nos limbos do horizonte, algum ponto negro que lhe desse uma esperança.
— Por aqui não há ilha nenhuma!... objurgou um dos mareantes. — E' loucura continuarmos a procurá-la!...
— Mas como se chama esse tal demônio de ilha? perguntou o outro.
— Não sei, não sei como se chama, a "Ilha do Segredo" talvez, ou talvez nem tenha nome; porém juro-lhe que ela existe, porque é lá que eu vivo há muito tempo, é lá que moro com minha família! Procuremos! Procuremos! Eu lhes darei todas as minhas jóias, eu lhes darei, senhores, tudo o que possuo, menos meu filho! Não parem! não hesitem, por amor de Deus!
Com estas palavras os remadores pareciam criar novo ânimo.
— Espera! gritou um deles, no fim de algum tempo. — Há terra naquela direção!
— E, se me não engano é com efeito uma ilha... acrescentou o companheiro.
— Pois vamos lá! Vamos lá! suplicava a histérica, esfregando as mãos com impaciência.
— Mas como é longe!.
— Eu já nem sei por onde andamos!...
— Não desanimem! Não desanimem! Agora pouco falta! Vamos! — Um pequeno esforço!
Enormes vagalhões erguiam-se de todos os lados; o horizonte aparecia e desaparecia quase sem intermitência; o barquinho, tão depressa rastejava pelo fundo de abismos tenebrosos, como se alcantilava deslizando no claro dorso de espumosas montanhas; entretanto — seguia, seguia sempre, agora sem mais auxílio de remos, como se fosse levado por uma correnteza.
A ilha aumentava rapidamente defronte dos olhos de Magdá.
— É ela mesma! É ela! exclamava a louca. — Já daqui enxergo a colina, toda emplumada de bambus
E alçava os braços para o céu, rindo e chorando de alegria. — É ela! E' a minha querida prisão! É o meu ninho adorado! Vou tornar a vê-la! Vou habitá-la de novo! Que ventura, que ventura suprema!
E avançavam, cada vez mais aceleradamente, arrastados pelas águas. Em menos de um minuto avistavam-se já as palmeiras da campina; via-se rebrilhar ao sol o areal da praia; destacavam-se caminhos de verdura, e o teto da habitação surgia por entre massas de arvoredo.
Mas já ninguém podia resistir ao ímpeto da carreira que levava o barco; o miserável precipitava-se agora vertiginosamente como se fosse arrebatado por uma, pororoca.
— Agüenta! Agüenta! berravam os catraeiros.
— Estamos perdidos!
— Agüenta!
— Proteja-nos Deus!
— Valha-nos a Virgem!
Os marinheiros tinham a feroz catadura de quem vê a morte face a face. Praguejaram maldições, blasfêmias; depois abriram a chorar, como duas mulheres.
E Magdá sorria com a idéia de que, se expirasse afogada, o seu cadáver seria levado pelo oceano aos braços do milagroso amante, que a faria ressuscitar imediatamente.
Os dois homens rezaram, para morrer.
Redobrou a fúria da corrente. O barco rodopiava, que nem um tronco que a voragem sorveu. Magdá já não sentia ponto de apoio, já não via ninguém a seu lado, arrebatada por um turbilhão de vagas que a sufocavam.
Remoinhou nessa aflição alguns instantes; de súbito, ouviu um estrondo de onda que espoca e sentiu-se rolar na praia, cuspida numa golfada de espumas.
Correu até onde nascia a relva e deixou-se cair aí, prostrada.
Assim esteve longo tempo, descansando ofegante sobre a grama fresca e macia, completamente nua, os olhos fechados; toda ela penetrada por um capitoso perfume de magnólia. Este aroma, que dantes tanto a importunava, dava-lhe agora inefáveis consolações; era esse o perfume da sua ilha querida; esse o aroma do paraíso de amor, onde nascera o ente que ela mais estremecia no mundo.
Todavia a prostração não a deixava ainda correr ao encontro do filho; e seus lábios estalavam de sede pelos beijos dele, e toda ela ardia na impaciência da saudade.
— Maldito abatimento!
Entardeceu. Um vento fresco agitava agora os carnaúbais em melancólicos sussurros; a patativa gemia na mata, chamando o companheiro; e toda a ilha se apurpurava na fúlgida congestão do sol poente.
Magdá ergueu-se a meio na relva, admirada de que o marido ainda não tivesse dado por falta dela e não fosse à sua procura: "Não era aquela a hora em que todos os casais se recolhiam ao aconchego dos ninhos?..."
Ficou a cismar.
— Teria acontecido alguma desgraça?... disse consigo. E então, a idéia do envenenamento de Luiz e Rosinha veio-lhe à lembrança com o pânico de um sonho pressago.
Teve um arrepio. Recordou-se de os ter visto mortos, ao lado um do outro, lívidos e enrijados pela estricnina Seu coração encheu-se com um pressentimento horrível. Levantou-se logo e tomou aflita a direção da casa.
A porta estava aberta. Foi entrando.
Achou tudo deserto e silencioso.
Estremeceu aterrada.
— Luiz! gritou ela.
Ninguém respondeu.
— Luiz! Ó Luiz!
A sua voz perdia-se nos surdos murmúrios da tarde.
Sem ânimo de fazer uma conjetura, correu ao berço do filho.
Encontrou-o vazio.
Apalpou-lhe as roupas, levou-as à face — nenhum calor as aquecia.
Estremeceu de novo. E, já aturdida. mais pálida do que a estrela da manhã, foi a todos os cantos da casa, gritando pelo filho e chamando pelo esposo.
Nada! nada!
Saiu a correr; entranhou-se na mata, percorreu vales e montanhas; cercou doidamente a ilha inteira, gritando e chorando.
Não encontrou ninguém! ninguém!
Tornou pelos caminhos andados; bateu de novo todos os recantos da ilha, e voltou à casa, possessa, estrangulada de soluços.
— Roubaram meu filho! Roubaram meu filho!
E pôs-se a quebrar tudo que pilhava ao primeiro alcance. Arremessou por terra e de encontro às paredes, as jarras, o tinteiro, estatuetas e faianças; atirando depois consigo mesma ao chão, estrebuchando, torcendo-se em arco, encostando a cabeça nos calcanhares, a espumar entre dentes e a espolinhar-se como um hidrófobo. Em seguida começou a engatinhar, firmada nas mãos e nos joelhos, resbunando prolongadamente, com o pescoço estendido, a boca virada para o alto:
— Fernando! Fernando!
Corriam-lhe lágrimas pela face. De repente, ergueu-se e caiu de novo em fúria, a querer dar cabo de tudo; então sentiu que vigorosos pulsos a agarravam por detrás e enlaçavam-lhe os braços.
— Fernando! Fernando!
E tentava morder os que a seguravam, arremetendo com a cabeça para os lados.
Mas um homem suspendeu-a pelas costas e outro lhe enfiou pelos pés uma abominável mortalha de linho cru, que se lhe estreitava até ao pescoço, tolhendo-lhe o corpo inteiro.
E Magdá, em vão tentando debater-se na camisola de força, foi entre policiais, conduzida para uma célula nos braços do Dr. Lobão, que praguejava, furioso, por lhe não permitirem as leis carregá-la consigo no mesmo instante para a sua casa de saúde.
Ficou lá dentro sozinha, a roncar como uma fera encarcerada. O pai viu fecharem-lhe a jaula, mais sucumbido do que se aquela porta fosse a lousa de um túmulo.
— Está perdida para sempre! soluçou o desgraçado, resvalando no colo do médico,
O esquisitão fez que limpava o suor da testa, para disfarçar duas lágrimas rebeldes que lhe saltavam dos olhos escandalosamente.