O IMPERIO BRAZILEIRO
CAPITULO I
O Imperio e o espirito revolucionario
Sob este ponto de vista o Imperio offerece um vivo contraste entre o primeiro e os dois immediatos quartos de seculo da sua duração, que foi de 67 annos. Ás luctas civis, preeminentes desde 1824 até 1848, succedeu um periodo de paz e de ordem domesticas. Logo no inicio do regimen autonomo surgia uma dupla corrente de opinião perturbadora do socego publico, não sómente excitante das imaginações, e que se deixava entretanto acalmar e canalisar para não desmanchar a integridade nacional, a qual a independencia sob a forma monarchica conseguira garantir. Essa dupla corrente era produzida pelo rancor contra o elemento portuguez, representativo da metropole, e pelo ideal republicano, expressão do espirito revolucionario do mundo, abalado pela revolução franceza.
Portugal não se resignava facilmente á perda de sua melhor colonia, d'onde nos bellos dias do seculo XVIII lhe vinham diamantes e ouro em profusão. Obstinava-se a julgar possivel o prolongamento de uma situação que tudo, pelo contrario, conspirava para fazer cessar, permittindo a florescencia da nossa nacionalidade que a presença de D. João VI, de 1808 a 1821, modelara, dando-lhe todos os attributos de soberania. Apenas faltava a Portugal a força para impor sua tutela.
Sem a menor difficuldade, pode dizer-se, compelliu o Principe Regente D. Pedro a guarnição do Rio de Janeiro, na parte composta de tropas do reino europeu, a ir acampar do outro lado da bahia, em Nitheroy, antes de embarcar para Lisboa. Em Montevideo, que então fazia parte do Brazil por laço federativo, sob o nome de Provincia Cisplatina, as coisas tinham-se passado de modo parecido; e a unica resistencia, a que o general Madeira apresentava na Bahia ás tropas nacionaes, não podia durar muito, menos ainda radicar-se, desde que os auxilios da mãi patria rareavam e eram tão tardios quanto insufficientes. Um bloqueio maritimo fôra aliás estabelecido pela esquadra que o governo imperial organizara e mesmo improvisara ás ordens de lord Cochrane, official britannico de grande valentia e real valor profissional, que algum tanto por temperamento e muito pela força das circumstancias, devidas a um processo resultante de especulações desastrosas na Bolsa, se puzera a correr aventuras e figurar entre os heroes libertadores dos dois mundos.
Uma vez interrompidas as communicações entre o exercito de terra, sitiado e cada dia mais desmoralisado pelas repulsas e pela impotencia, e a esquadra portugueza, derradeiro esforço da mãi patria, preza dentro dos seus limites de uma agitação politica, estimulada pela miseria gerada n'uma phase não curta de invasões estrangeiras e de contendas doutrinarias e economicas, apagava-se a ultima esperança de restaurar-se o antigo dominio e mesmo a forma dualista. O nucleo da marinha brazileira tinha livre o campo para desempenhar o seu papel essencial de deus ex machina e obrigar á união com o Brazil o Estado septentrional do Pará-Maranhão, cuja lealdade as Côrtes de Lisboa exaggeravam no seu conceito e que antes de que continuar ligado a Portugal, se teria declarado autonomo e realizado o sonho de uma Amazonia livre na sua pujança equatorial.
Assegurada a separação e salvaguardada a unidade brazileira, restava em suspensão o problema dos portuguezes domiciliados no Brazil. Muitos, o maior numero, tinham adherido de coração á nova ordem de coisas: suas mulheres, seus filhos , seus intimos eram brazileiros. Outros porem, alguns pelo menos, guardavam vivazes o resentimento e o desprezo pelos nacionaes. Do lado contrario era natural que houvesse reacção. Os Andradas personificavam no poder o espirito patriotico e até nativista, corollario logico d'aquelle conflicto de sentimentos, e D. Pedro I a esse tempo viria dar arrhas da sua sinceridade nacionalista.
O antagonismo entre os dois elementos não podia deixar de estalar no seio da Assembléa Constituinte, aberta a 3 de Maio de 1823. Foi o que succedeu com a proposta de Muniz Tavares, auctorisando o governo a expulsar do Imperio, no prazo de trez mezes, os portuguezes suspeitos de hostilidade á Independencia. Não havia na Constituinte partido propriamente portuguez, mas havia gente inclinada a processos conciliatorios, de preferencia a methodos violentos, e recrutava-os ella naturalmente entre os desaffectos dos Andradas, cujo valimento junto ao Imperador açulava muitas invejas e cuja altaneria, por vezes grosseira, susceptibilizava muitos melindres e feria muitas vaidades. Duros para com os adversarios, os Andradas tinham suscitado fartura de inimigos no prestigio conquistado pela sua superioridade intellectual e pela sua honestidade. Os descontentes uniram-se para derrubal-os e na alliança se confundiram moderados com exaltados. Venceram, substituindo D. Pedro I aquelles seus ministros de confiança, que o tinham acompanhado nas emergencias de 1822, por homens, uns de competencia, outros de habilidade, que já formavam o seu conselho juridico e que no futuro foram marquezes da nobreza imperial. Os Andradas lançados na opposição e levados por suas naturezas auctoritarias, converteram-se — o que era facil de prever, apezar das suas predilecções dynasticas — em quasi demagogos. Dos trez, Antonio Carlos — fôra o unico a manifestar invariavelmente sentimentos democraticos, si bem que monarchicos.
A dissolução da Constituinte, occorrida em 12 de Novembro, tem sua origem remota no projecto de expulsão dos portuguezes hostis, mau grado a rejeição em 1.ª discussão dessa lei de excepção. O novo gabinete, organizado em Julho, quizera demonstrar suas idéas de apaziguamento entre os dois paizes, comquanto Portugal não houvesse ainda reconhecido a Independencia do Brazil, ordenando a incorporação, nos effectivos nacionaes, dos prisioneiros de guerra portuguezes feitos na Bahia. A opposição legislativa censurou fortemente tal resolução, assim como a outorga a lord Cochrane do titulo de marquez do Maranhão antes que a Constituição tivesse estabelecido a hierarchia nobiliarchica. Era, de facto, possivel que a Assembléa Constituinte abolisse toda a tentativa de organização aristocratica; e sua attitude nesta materia não pode certamente ser incluida entre as successivas invasões da esphera executiva de que o manifesto imperial faria menção para opportunamente justificar o acto de dissolução. O conflicto de poderes estava na raiz desse rompimento entre um governo até ahi privado de todo freio e uma Assembléa ambiciosa de operar como peça principal do machinismo do estado.
O exercito cuja officialidade era ainda em grande parte portugueza de nascimento, participou essencialmente no desfecho pela razão seguinte, e sem a sua participação a desavença não teria assumido proporções tão graves nem revestido caracter tão irreconciliavel. Appareceu na Assembléa a representação de um boticario brazileiro, jornalista nas suas horas vagas segundo constava, contra dois officiaes portuguezes que o aggrediram e espancaram sem piedade, attribuindo-lhe, erroneamente ao que parece, a auctoria de um artigo injurioso. A commissão de legislação remetteu o requerimento ao juizo ordinario, mas alguns deputados, entre os quaes Antonio Carlos e Montezuma, deram-se pressa em qualificar o facto do assalto particular como uma offensa á nacionalidade brazileira, o que levou ao auge a irritação do Imperador e do pessoal que já entrava a ser intitulado reaccionario, antes de existir uma camarilha, á qual melhor assentaria esta denominação. Um pronunciamento militar reclamou a expulsão dos Andradas e a punição da Assembléa, taxada de patrioteira. Esta, sempre docil ás reminiscencias francezas, declara-se, como a Convenção n'algumas occasiões, em sessão permanente; intima o ministro do Imperio a fornecer-lhe explicações sobre os movimentos das tropas que o governo concentrava em attitude bellicosa nas cercanias do Paço de São Christovam, e, embora se abstendo de discutir a pessoa e os actos do soberano, de quem justamente desconfiava, jura succumbir, se preciso, pela patria. A madrugada da «noite de agonia» não illuminou todavia martyrio algum. Os deputados que se tinham declarado promptos a cahir varados pelas bayonetas imperiaes, voltaram tranquillamente para suas habitações, sem que os soldados os incommodassem. Seis tão sómente foram deportados para França, entre elles os trez Andradas. José Bonifacio, estabelecido em Bordeus até 1829 deu livre curso á nostalgia da patria, compondo versos lyricos e de chamma civica e redigiu cartas de um sabor forte e por vezes picante.
O espirito liberal ganhou mais do que perdeu com essa medida violenta da dissolução. O momento historico era de liberdades e estava na moda a philanthropia, no seu sentido litteral de amor da humanidade. Qualquer acto de auctoridade — e este fôra além da méta — tomava facilmente o aspecto de uma ameaça de tyrannia, sobretudo depois que em Portugal a reacção absolutista triumphara e varrera o espantalho das Côrtes. Os erros da Constituinte — sua limitada experiencia do systema parlamentar, suas susceptibilidades politicas, seu rigorismo democratico, indo occasionalmente até á fatuidade — desappareceram com o receio dos tempos e a sympathia que ella inspirara cresceu com a injustiça dos ataques de que a fizeram alvo os interesses cortezãos.
O effeito produzido no paiz pela dissolução da Constituinte foi contradictorio, provocando uma explosão do republicanismo que voluntariamente se immolara á Independencia. Os ultras da roda imperial tinham, porem, julgado sepultado sob os escombros da Assembléa, elle resurgiu, mais vigoroso e resoante do que anteriormente.
A lua romantica que banhava de uma claridade pallida a paizagem constitucional occultou-se entre nuvens e o sol revolucionario mostrou-se mais rubro no horizonte caliginoso. No Norte, sobretudo, a impressão foi detestavel. Na Bahia o povo em massa exigiu a reunião da Camara Municipal e fez endereçar ao Imperador um protesto contra o seu acto, reclamando simultaneamente a liberdade dos deputados presos e deportados. Em Pernambuco, as coisas assumiram logo uma feição mais seria. O senado da camara de Olinda e os eleitores de parochia das comarcas de Olinda e Recife, antes mesmo de convocados para a posse do presidente Paes Barreto (futuro marquez do Recife) e a escolha de novos deputados ao Congresso Constituinte e Legislativo que devia substituir a Assembléa dissolvida, elegeram presidente da provincia, de encontro á nomeação imperial, Manoel de Carvalho Paes de Andrade e secretario do governo o poeta Natividade Saldanha, recusando proceder a outra selecção de representantes populares antes dos primeiros terem cumprido seus mandatos, por não ser licito em direito annullar os poderes dos procuradores, «uma vez senhores do negocio, senão por prevaricação ou suspeição», o que não era o caso. O pamphletario da revolução foi um monge carmelita, frei Caneca, que no Typhis Pernambucano discutira com elevação e ardor a questão constitucional. Foi arcabuzado por não se encontrar um carrasco que o quizesse enforcar, nem mesmo um negro criminoso. No Rio de Janeiro balouçaram-se na corda os corpos de Loureiro (portuguez), Radcliffe (filho de inglezes) e Metrowich (polaco) que quizeram servir a causa revolucionaria no mar e foram aprisionados pela esquadra imperial em operações.
Os annos que se seguiram á mallograda Confederação do Equador foram de calma relativa. A repressão fôra dura como grande fôra o perigo da associação republicana das provincias do Nordeste contra a solidez ainda não cimentada da era monarchica. A presença de elementos de outras nacionalidades no movimento brazileiro mostra bem que as idéas subversivas dos thronos eram espalhadas pelas sociedades secretas, quer dizer pelas lojas maçonicas e passavam de um paiz a outro, de um continente a outro, com celeridade e efficacia. Não se tentou comtudo immediatamente renovar a experiencia de uma revolução.
Theophilo Ottoni na sua afamada Circular de 1860, aos eleitores de senadores e de deputados da provincia de Minas Geraes, circular que é o historico da evolução constitucional do Brazil do ponto de vista ultra-liberal e que assignalou a estrondosa victoria d'aquelle homem politico e das suas idéas, derrubando a situação conservadora que gerara o esmagamento da revolução de 1848, escrevia que em 1824 «se suppuzera definitivamente não existir mais antidoto contra o despotismo. Esta terrivel supposição e o cançaço produzido pela lucta infructifera deram origem á apathica indifferença politica que grassou como uma epidemia por todo o Brazil em 1825 e 1826 e mesmo em 1827».
A instituição parlamentar tonificou, porem, a atmosphera social nos annos immediatos de 1828, 29 e 30, estimulando a rivalidade entre o executivo, sustentado pelo soberano, e o legislativo, sustentado pelo eleitorado, e determinando a progressiva separação dos poderes que, juntos, formavam a soberania nacional, mas com espheras de actividades diversas. A Corôa entrou a ser mais ameaçada pelos seus possiveis excessos de auctoridade e repudios da vontade popular do que por quaesquer conluios locaes, com revolucionarios de fóra em prol da integridade republicana do continente. Theophilo Ottoni foi um dos que sacrificaram seu ideal democratico a dois temores — o temor da anarchia demagogica e o temor do despotismo militar, entre um e outro baixio sossobrando a America Hespanhola. Não renunciavam elles ás suas crenças politicas, mas n'um espirito de opportunismo, fallavam de republicanizar a Constituição imperial, conservando muito embora a forma de governo. O Brazil converter-se-hia n'aquillo em que de facto veiu a transformar-se — uma democracia coroada.
O espirito revolucionario tomou em todo o caso uma desforra ruidosa do espirito de auctoridade, quando levou D. Pedro I a abdicar a 7 de Abril de 1831, assim resgatando suas faltas, tanto as politicas como as privadas, todas filhas do seu caracter impetuoso. O throno brazileiro, pelo proprio facto da sua singularidade na America, repousava sobre uma base precaria e ter-se-hia certamente desmoronado sob o peso do seu novo occupador se não fosse este uma criança de cinco para seis annos e não representasse, portanto, um fardo levissimo. A compaixão, mola poderosa n'um povo sentimental, tomou o lugar das amizades e dedicações dynasticas que faltavam, e o receio de ver despedaçar-se a bella unidade nacional, alcançada não sem esforço, agiu como si houvesse um partido organizado e disciplinado para manter as instituições monarchicas ou uma classe verdadeiramente interessada em defendel-as. Foi a imprensa, a qual florescia desde a Independencia, ou antes desde a sua emancipação, anno e meio antes, que desempenhou o principal papel n'esse episodio historico; o papel do heroe n'uma novella de capa e espada. Ella já perturbava os espiritos e ahi passou realmente a guiar a opinião.
Viera ao mundo enfezada e disforme como uma larva. Os jornalecos de ruim papel e titulos extravagantes, escriptos ao correr da penna, sem cuidado litterario, povoados de interjeições e saturados de insultos soezes, os desaforos emprestando um sabor acre ás declamações emphaticas sobre a liberdade e a Constituição, tinham, porem, despido essa chrysalida e entraram pelo fim do primeiro reinado a adejar as folhas doutrinarias, cautelosas nas idéas e nas palavras, discutindo com um desembaraço não isento de elevação, quando mesmo o faziam com viva paixão, os interesses publicos em vez de, como os orgãos seus predecessores, patinharem na lama das intrigas partidarias. A Aurora Fluminense foi o modelo d'essa nova imprensa, grave, justiceira e honrada. Seu director era o livreiro Evaristo da Veiga, que a vocação tornou publicista, cujas virtudes explicam o prestigio, e a quem um poder quasi mystico, uma crença messianica permittiu salvar a monarchia em perigo de morte.
Um despacho do encarregado de negocios de França, Pontois, narra, melhor do que qualquer livro de historia ou pamphleto contemporaneo, o que foi o 7 de Abril. A revolução estava no ar: respirava-se com difficuldade n'uma atmosphera carregada de electricidade e oppressiva pelo calor, escreve o snr. Escragnolle Doria, que publicou aquelle despacho. O Brazil estava descontente: descontente de tudo, do Imperador e dos seus ministros, da guerra do Sul, do erario vazio, do espirito de indisciplina que grassava por todo o paiz. «Todos desobedeciam no tablado politico como embarcações manobradas por inexperientes comparsas, passando aos trancos e barrancos no fundo do palco, puxados por cordas que muitas mãos moviam. As auctoridades mostravam-se impotentes. Não se podia contar com as tropas. A policia, cega, operava a torto e a direito. O povo buscava attrahir as forças da guarnição, açulando seu pundonor, estimulando suas antipathias; noite e dia, sob os olhos do governo, bandos sinistros de negros... e mulatos passavam e tornavam a passar, armados de pistolas e facas, prolongando a anarchia sob pretexto de guardarem a ordem. Odios de nacionalidades silvavam como serpentes enfurecidas».
Durante o concerto no Paço de São Christovam, para festejar o anniversario da Princeza Maria da Gloria, rainha de Portugal, o Imperador recebeu da cidade noticias alarmantes e censurou com vivacidade aos ministros da justiça e da guerra sua incapacidade para preservarem o socego publico. No dia immediato o soberano despediu o gabinete e formou outro, chamado dos marquezes, nos quaes o povo enxergava cortezãos. Continuavam a faltar medidas energicas imprimindo uma direcção definida. Ao mesmo tempo extendia-se a desordem e subia a maré revolucionaria. Boatos malevolos circulavam; as ruas e as praças estavam cheias de gente; esperava-se alguma coisa e tudo era de esperar. O corpo diplomatico reuniu-se em casa do ministro da Russia e os commandantes das divisões navaes estrangeiras foram avisados pelos seus respectivos ministros de se acharem promptos a defender seus nacionaes, cuja protecção lhes incumbia.
A 6, á meia noite e meia hora, Pontois foi convidado por um desconhecido para ir ao Paço; para lá se dirigiu, seguido de perto pelo encarregado de negocios da Grã Bretanha, Aston. Os dois não ousaram fazer caminho juntos com receio de serem detidos pelos rebeldes, que tinham todo interesse em privar D. Pedro dos seus conselhos e do seu apoio. Antes de chegar, Pontois encontrou o regimento da artilharia que se dirigia para a cidade afim de juntar-se ás outras unidades revoltadas.
A noite estava escura, mas o diplomata poude ouvir distinctamente o rodar das carretas, o passo dos cavallos e o tilintar das espadas. A familia imperial achava-se reunida, cercada pelo ministerio. O Imperador com muita calma expoz a situação.
Um juiz de paz, deputado pelo povo, reclamava a reintegração do gabihete despedido: o soberano recusava, porem, assim ferir a prerogativa real, que lhe dava a plena escolha dos seus ministros. Seria, no seu dizer, trahir, sob intimação tumultuaria, o dever e a honra. Quando muito se mostrava disposto, por longanimidade, a mudar ainda uma vez de gabinete, fazendo appello ao senador Vergueiro, cujo liberalismo era notorio. Outras negociações realizaram-se, mas dos dois lados havia obstinação. O proprio general Lima e Silva não conseguira vencer a resolução imperial e fazel-a ceder até á ultima. Regressando á cidade, o general, que, segundo Pontois, a voz publica designara como chefe do movimento, trouxera comsigo o regimento de honra que um dos seus irmãos commandava. Vendo-se só, abandonado por todos os elementos de força e de resistencia, D. Pedro entendia que a unica coisa que lhe restava era abdicar. A Imperatriz, os ministros, combatiam essa decisão extrema. O Imperador respondeu-lhes com estas palavras sabias e memoraveis que nos foram conservadas por Pontois na sua correspondencia diplomatica:
«Prefiro descer do throno com honra a reinar deshonrado e aviltado. Não nos façamos illusões. O conflicto tornou-se nacional. Os nascidos no Brazil congregaram-se contra mim no Campo da Acclamação. Não querem mais saber de mim porque sou portuguez. Estão dispostos a desfazer-se de mim por não importa que meio. De ha muito esperava isso, e annunciei-o apoz minha viagem a Minas. Meu filho tem sobre mim a vantagem de ser brazileiro. Os brazileiros prezam-no. Governará sem difficuldade e a Constituição garante-lhe seus direitos. Renuncio á corôa com a gloria de acabar conforme comecei — constitucionalmente.»
Pontois não poude senão approvar o gesto imperial: segundo elle a dynastia certamente lucraria e porventura o proprio D. Pedro, pois que a abdicação poderia bem ser annullada a instancias dos seus subditos. O Imperador todavia não se enganava a tal respeito: sabia que não mais o toleravam e, por sua vez, elle não mais estimava um povo que, nas suas expressões, o havia desertado e atraiçoado. «O que desejo é cobrir o rosto com um véo para não ver mais o Rio de Janeiro» — foi o grito da sua alma ulcerada, onde as injurias abriram largas feridas que, aliás, depressa se cicatrizaram porque a sua natureza era essencialmente generosa.
Logo depois do acto de abdicação redigido e firmado, o que elle fez sósinho no seu escriptorio, D. Pedro quiz partir, embarcar na nau ingleza, surdo a todos os rogos de retardar esse momento definitivo. A muito custo consentiu em aguardar o voto do Parlamento, tomar conhecimento, ainda em territorio nacional, prestes, portanto, a toda emergencia, si o advento de seu filho se effectivára. Pontois fez appello ao seu espirito cavalheiroso: «Vossa abdicação, Senhor, foi livre e espontanea. Para dar disto a prova mais evidente, não deveis partir precipitadamente, como um fugitivo». O Imperador, escrevia em seguida o encarregado de negocios de França a seu chefe, o conde Sebastiani, ministro dos negocios estrangeiros do rei Luiz Felippe, «soube melhor abdicar do que reinar. No decorrer dessa noite inolvidavel para quantos a testemunharam, o soberano elevou-se acima de si proprio e revelou constantemente uma presença de espirito, uma firmeza e uma dignidade notaveis, de modo a patentear o que esse infeliz principe teria podido ser com uma melhor educação e si exemplos mais nobres tivessem cahido sob seus olhos».
Tendo cessado as novas e ficando o Paço a cada instante mais deserto, pois que os cortezãos e os lacaios se agrupavam em redor dos vencedores do dia, a diminuta côrte partiu para o caes de embarque. Conta Pontois que as negras do serviço acompanhavam as carruagens gritando de desespero. Uma vez a bordo da Warspite, D. Pedro recobrou o bom humor. Seu temperamento era antes voluvel e o seu senso de majestade tinha alguma coisa de convencional ou de theatral. Sua alma romantica exaltava-se com a idéa do sacrificio, gozava mesmo d'elle com volupia, mas as suas maneiras por vezes vulgares, os seus costumes facilmente desregrados, a estreiteza occasional das suas vistas — defeitos de educação mais do que de caracter e que lhe tinham constituido uma segunda natureza, menos brilhante e menos altaneira do que a outra, cedo vinham á tona. Recuperou em todo o caso facilmente o seu orgulho para dizer ao enviado da Regencia que vinha offerecer-lhe um navio de guerra brazileiro para transportal-o para a Europa, que os reis da Grã Bretanha e da França estavam mais em condições de fazer essa despeza do que o governo do Brazil. Este tinha diante de si uma tarefa bastante dura, qual a de domar a insurreição e dissolver os magotes armados que acampavam no Campo da Honra — o antigo Campo da Acclamação — ao lado da tropa de linha e que protestavam alli permanecer de atalaia até que a Warspite desapparecesse no horizonte...
Escreveu com acerto Joaquim Nabuco[1] que a revolução de 7 de Abril de 1831 foi afinal, como se disse da Independencia, uma separação amigavel entre o soberano e a nação, isto é, a maioria que a si avocou represental-a e agir no seu nome. A separação comtudo não se effectuou sem rompimento; uma tempestade preliminar em que os relampagos e os trovões foram mais do que os raios. O que o publicista quiz dizer é que entre as duas partes se havia chegado a uma perfeita incapacidade de comprehensão, a um desaccordo que sómente se poderia resolver pelo despotismo ou pela abdicação, o despotismo repugnando, no emtanto, ao fundo do espirito liberal do soberano e ao proceder que elle se traçara e que se tornou seu destino historico. D. Pedro I estava desde algum tempo decidido a partir para a Europa. Melhor do que ninguem sentia quanto crescia sua incompatibilidade pessoal com o povo brazileiro no seu elemento dirigente, e percebera que para a sua dynastia a melhor politica a seguir era a de jogar tudo n'uma cartada e fazer do imperador menino o pupillo da nação. Deve ter mesmo pensado em José Bonifacio para regente quando o chamou para tutor da sua prole, e a circumstancia do Patriarcha da Independencia, esquecendo velhos aggravos, abraçar o credo Caramurú, isto é, a fé dos que desejavam o regresso de D. Pedro I, depois deste haver cruzado o oceano, leva a pensar que José Bonifacio não desdenharia completar seu papel historico, restaurando a união de 1821 e 1822 entre Principe e ministro que tinha sido o alicerce da grandeza brazileira.
A crise portugueza contava, porem, com um motivo determinativo essencial. Seu irmão D. Miguel, que D. Pedro consentiu em reconhecer como regente de Portugal, ao que aliás lhe assistia pleno direito, e que devia mais tarde consummar seus esponsaes com a sobrinha, a rainha D. Maria da Gloria, deixara-se proclamar rei absoluto, encarnando todos os sentimentos portuguezes fieis ao throno e ao altar e hostis á antiga colonia e a quantos tinham favorecido sua emancipação.
A situação politica da Europa em 1829, governada por Wellington, por Metternich e por Polignac, não permittia que se pensasse em Portugal n'uma reacção liberal, mas a revolucão de Julho de 1830 em França mudara o aspecto das coisas e reanimara as esperanças dos constitucionaes. D. Pedro experimentou novo impeto de jogar a partida final, sustentando os direitos da filha e da Carta que outorgara e appareceu-lhe a breve trecho o ensejo de, com sua audacia costumeira, confirmar a razão dos que o accusavam de haver desviado o melhor da sua attenção para os negocios da antiga mãi patria. O 7 de Abril apenas apressou o seguimento notavel dos acontecimentos e si a consequencia logica da abdicação não foi, como parecia dever ser, a republica, dado o caracter revolucionario do movimento, a razão da generosidade nacional é fornecida n'uns pela perspectiva diante de sua effervescencia demagogica de um periodo de transição de natureza já francamente democratica, e n'outros pelo desejo de dominar a confusão do ambiente politico por meio do livre jogo de uma instituição superior aos partidos e de origem genuinamente patriotica.
Observa Joaquim Nabuco que a Regencia foi uma epocha de abalos politicos que ameaçaram derruir todo o edificio nacional e que a reacção era uma necessidade por tal forma arraigada no espirito de quantos tinham responsabilidades de governo, que o que fez a grande reputação dos homens d'Estado desse periodo não foi o que elles realizaram em favor do liberalismo, mas a resistencia que oppuzeram á anarchia. Os annos immediatos á abdicação foram annos de lucta entre os trez ideaes — o ideal tradicional, cada dia mais esvaecido; o ideal revolucionario, cada dia mais desacreditado, e o ideal de auctoridade combinado com o espirito liberal, que foi o vencedor no Imperio porque se fundiu com o primeiro. «Foi o tempo, escrevia Theophillo Ottoni[2], das sociedades patrioticas de todos os matizes. No Rio de Janeiro, os conservadores conspiravam na Sociedade Militar e mesmo n'um dos Grandes Orientes maçonicos, transformado em alavanca politica. A Sociedade Defensora era, com suas filiaes, o instrumento de Evaristo e o Espirito Santo do governo. A Sociedade Federal, cujo presidente era o monge Custodio Alves Serrão, symbolizava o progresso pacifico». Como em Pariz, durante a Revolução, essas Sociedades — os nossos Feuillants e os nossos Jacobins — exerciam uma influencia excepcional e dirigiam toda a contenda, a qual foi ardente e mais de uma vez sangrenta. Faz comtudo grande honra ao pessoal politico do tempo que ella não impediu ou antes que não conseguiu eclipsar a sua feição puramente parlamentar, continuando a representação nacional a ser o principal theatro de acção, si bem que disputado por deputados que queriam converter a Camara n'uma Assembléa Nacional e senadores que buscavam cimentar sua oligarchia nascente á sombra da vitaliciedade.
A lei organica da nação foi modificada pelo Acto Addicional subsequente á abdicação, pode mesmo dizer-se ultra-liberalizada, mas por processos em summa pacificos, pois que eram alheios, impunham-se mesmo ás assuadas das ruas da capital e ás matanças nas provincias. Não foi sem razão que Theophilo Ottoni denominou o padre Feijó, regente unico de 1835 a 1837, Cavaignac de batina. A descentralização — palliativo contra a federação — affirmou-se por meio das assembléas locaes, e a suppressão do conselho d'Estado inamovivel vibrou tal golpe no poder moderador, consagrado pela Constituição, que o seu restabelecimento foi o primeiro cuidado da reacção conservadora que se seguiu á declaração da maioridade de D. Pedro II mezes antes de completar os 15 annos. A maioridade foi igualmente um golpe parlamentar, mas sustentado, senão impellido, pelo sentimento publico. Pode dizer-se que a folha do instrumento era de fino aço politico, e o punho de forte madeira popular. O movimento era o legitimo complemento da reacção conservadora de 1837, quando Araujo Lima (marquez d'Olinda) foi eleito para a regencia a que Feijó renunciara.
A gloria de Evaristo da Veiga foi ter salvado o principio monarchico; a de Feijó foi haver assegurado a supremacia do poder civil; e de Bernardo de Vasconcellos foi ter reconstituido a auctoridade. «Foi graças á possibilidade distante que o throno apresentava que o governo de uma Camara unica — o Senado offuscara-se politicamente — verdadeira Convenção da qual emanava tudo e á qual tudo retornava, se não fragmentava em fracções ingovernaveis. Á proporção que a distancia da maioridade se tornava mais curta, os temores diminuiam, a confiança renascia, a vida suspensa recomeçava, o coração dilatava-se como n'um navio desgarrado á medida que o porto se approxima»[3].
O movimento revolucionario mais grave que o Imperio teve a combater e a supprimir foi o do Rio Grande do Sul, conhecido pela Guerra dos Farrapos e que durou dez annos, de 1835 a 1845. Começou ao tempo da regencia de Feijó e teve por causa meras rivalidades politicas todas locaes. O partido denominado exaltado, que era afinal o liberal, estava no poder; o outro partido, denominado moderado, que era afinal o conservador, estava na opposição. A eleição da assembléa legislativa creada por virtude do Acto Addicional deu a victoria aos moderados: a facção contraria, contando com a protecção do poder central, isto é, da Regencia, não se quiz sujeitar ao resultado do suffragio e pegou em armas, os elementos paizanos, secundados por certos elementos militares. Si as paixões reinavam na politica, é sabido que a disciplina não reinava no exercito. O vice-presidente em exercicio teve de deixar Porto Alegre, a capital da provincia, e installar-se em Rio Grande, emquanto que o presidente rebelde, acclamado tomava seu lugar e entrava em funcções, apoiado por uma assembléa legislativa composta da minoria eleita e de supplentes convocados para preencher o numero legal.
Um novo presidente despachado do Rio de Janeiro, Araujo Ribeiro (visconde do Rio Grande), que mais tarde se illustrou como scientista e diplomata, escrevendo um tratado de geologia — O fim da creação — e negociando em Londres os limites com a Guyana Britannica, procurou apaziguar os espiritos, promettendo justiça e uma amnistia. Quasi conseguiu ver coroados seus esforços, e a defecção de um dos dois chefes rebeldes, nomeado commandante das forças do governo, determinou a reoccupação de Porto Alegre e a captura do outro chefe, Bento Gonçalves, o qual foi transportado como prisioneiro de guerra para a Bahia. Uma mudança de politica no Rio, provocada pelos exaltados, e que se manifestou pela substituição de Araujo Ribeiro e pela destituição do commandante militar, fez recomeçar a lucta, mais cruel e deshumana do que anteriormente, caracterizada desta vez por fuzilamentos de prisioneiros, devastações de propriedades e pilhagem das povoações, e rematadas, pela proclamação em Novembro de 1836, com a republica do Piratinim.
A situação geographica do Rio Grande do Sul, limitrophe das republicas do Uruguay e Argentina, favorecia singularmente essa tentativa ousada de separação. Os insurgentes, perseguidos, podiam facilmente refugiar-se em territorio estrangeiro, onde não eram incommodados: d'ahi outrosim lhes vinham armas e dinheiro, pois que aquellas republicas estavam theoricamente interessadas na propaganda do seu ideal revolucionario e, practicamente, não só no enfraquecimento do Imperio cujas dimensões colossaes as aterrorizavam, como nos seus lucros, hauridos nos fornecimentos d'essa lucta armada de que era theatro o territorio vizinho. O governo local entrou a ser batido e esta circumstancia contribuiu não pouco para desgostar o regente Feijó e a leval-o a deixar o seu posto a 19 de Setembro de 1837. Por sua vez tentaram os conservadores restabelecer a legalidade na provincia anarchizada, ora augmentando os effectivos militares e urgindo as operações, ora offerecendo a amnistia, em troca do reconhecimento da auctoridade central, a saber, a reincorporação da unidade rio-grandense no Imperio. A fortuna das armas sorria alternadamente ás duas facções, mas as victorias do governo não foram bastante assignaladas — a mais importante foi em 1840, no passo de Taquary —, accrescendo que novas revoluções, na Bahia, Pará e Maranhão, desviavam forçosamente um pouco do extremo Sul a attenção do regente Araujo Lima, o qual, comtudo, fez para alli embarcar, como auctoridade ao mesmo tempo civil e militar, o general Andréa (barão de Caçapava), vencedor da rebellião do Pará e que em Santa Catharina tivera a boa sorte de desalojar de Lages e de Laguna os revoltosos do Rio Grande sob as ordens do general Canavarro, do condottiere Garibaldi, tão celebre depois na historia da unidade italiana.
O governo da maioria, leal á união, comprehendendo que pela força exclusivamente se não chegaria a desmoralizar e submetter uma revolução que já attingira tão notaveis proporções, buscou entrar em accordo com o governo da nova republica, suspendendo-se as operações em curso, e propondo condições que o general Andréa não consentiu em formular quando lhe foram apresentadas para isso. Essas condições abrangiam a alforria, sem indemnização para os senhores, dos escravos fugidos e alistados nas fileiras adversas e a admissão dos officiaes intrusos no exercito imperial, conservando os postos que lhes tinham sido facultados ou melhor dito que elles se tinham outorgado a si proprios nas tropas rebeldes. Esta nova politica era antes a politica pessoal de Antonio Carlos Ribeiro de Andrada, o qual se deixava embalar pelas illusões do prestigio do seu nome, caro ao sentimento nacional e, desconfiando assaz do enthusiasmo do delegado official pela conciliação, contida nos termos do seu projecto, entregou a negociação a um emissario secreto, o deputado Alvares Machado, pouco depois nomeado presidente do Rio Grande do Sul com o general Santos Barreto como commandante militar, ao mesmo tempo que Andréa era chamado. Todos estes conchavos falharam. O coronel Bento Gonçalves, presidente da republica de Piratinim, exigia mais ainda do que lhe offereciam, só para não dizer que não, de facto para prolongar as coisas e melhor se preparar, persuadido como estava de que o govero imperial estava cedendo e nutria fundados receios da solução final. Uma vez posto de lado o ensaio de pacificação, a lucta recomeçara em condições mais desfavoraveis para a legalidade. As negociações tinham amortecido a tensão da guerra; tinham revelado um desejo demasiado intenso de concordia, toda em vantagem dos rebeldes; os defensores da dependencia sentiam-se rebaixados e mesmo em vesperas de serem expostos ás peores vinganças dos seus inimigos. Para cumulo, o novo commandante militar seguia uma tactica diversa, de concentrar todas as suas forças na fronteira para impedir as communicações com o estrangeiro, em vez de perseguir os contrarios por meio de columnas separadas, e se negava a toda peleja formal e definitiva sob pretexto de insufficiencia de recursos, deixando-se abater o moral pelas constantes surprezas e assaltos das guerrilhas rebeldes. A partida parecia a breve trecho perdida para a causa da unidade nacional. A situação era insustentavel como se antolhava e apenas podia conduzir às mais serias consequencias politicas, na côrte para o ministro, pelo menos, que tentara a experiencia do que os jornaes da epocha chamavam o programma do vinho e marmelada. A crise ministerial de 21 de Março de 1841 d'ahi decorreu, o Imperador com sua precoce reflexão e gravidade tendo decidido a questão em favor de Aureliano Coutinho (Visconde de Sepetiba) que, contra todos os seus collegas de gabinete — não existia ainda a presidencia do conselho, creada em 1847 — queria substituir as auctoridades imperiaes no Rio Grande do Sul, acceitando a demissão solicitada por Alvares Machado.
O novo ministro da Guerra, um veterano das luctas incruentas da Independencia, José Clemente Pereira, desenvolveu grande actividade no seu lugar, expedindo abundantes soccorros sob a forma de tropas e munições de guerra. Esses recrutas vinham principalmente do Norte, como mais tarde, por occasião da Guerra do Paraguay, e recebiam no Rio de Janeiro os rudimentos da instrucção profissional e da disciplina militar. O novo commandante, conde do Rio Pardo, não correspondeu infelizmente ao impulso dado e gabando-se de um plano estrategico que concebera, permaneceu inactivo em Porto Alegre, cuja defesa eventual parecia ser seu objectivo unico, permittindo entrementes aos rebeldes saquearem livremente villas e campos, á moda gaúcha, igual dos dois lados da fronteira pela semelhança da região, do nomadismo pastoril e da taciturnidade envolvendo desprezo da vida humana. Não só comboios eram atacados e manadas de gado — bois e cavallos — roubadas aos seus donos, como a audacia insurgente ia até o ponto de emprehender operações navaes na lagôa dos Patos, sem fallar nos corsarios armados para a guerra maritima. O effeito da dupla revolução liberal sobrevinda em São Paulo e em Minas Geraes em 1842 só podia ser o de avolumar a confiança em si da revolução riograndense, pela sympathia de attitude suscitada n'aquellas duas provincias, cujo povo era fundamentalmente hostil ao recrutamento para a guerra civil do Sul. Bebeu o movimento suas politicas nas leis ditas reaccionarias do gabinete de 1841, e na dissolução da Camara, de grande maioria liberal, eleita em 1840, medida reclamada do soberano pelo ministerio, para tanto allegando as numerosas fraudes e violencias da votação nas urnas, que a assembléa perfilhava, reconhecendo todos os diplomados da sua parcialidade, sem admittir quer protestos, quer contestações. Grandes personalidades estiveram compromettidas n'essa sedição das duas mais importantes unidades do imperio: o senador Vergueiro, Feijó, portanto dois antigos regentes, Limpo de Abreu, ministro da vespera, Theophilo Ottoni, o brigadeiro Raphael Tobias de Aguiar. Precedeu-a forte agitação da imprensa, jornaes e opusculos inflammando os espiritos. O manifesto paulista de Feijó é um documento notavel pelas idéas, si bem que de linguagem violenta.
Teve ella, entretanto, uma influencia indirecta bastante sensivel, contraria á republica de Piratinim, pela circumstancia de haver sobretudo contribuido para pôr em destaque a competencia e tambem a sorte, que é um elemento positivo de acção, do general Luiz Alves de Lima, futuro marechal duque de Caxias. A expedição de São Paulo não passou de uma passeata militar; os rebeldes debandando aos primeiros tiros e abandonando as armas n'um campo que só por ironia se poderia chamar de batalha. O governo central alistou os prisioneiros como soldados e deportou provisoriamente para o Espirito Santo os chefes Vergueiro e Feijó, alli os deixando em liberdade. Em Minas Geraes a resistencia foi mais seria, animada como era pela actividade e tenacidade de Theophilo Ottoni; mas o combate de Santa Luzia, que durou todo um dia, entre 3.000 soldados de linha e da guarda nacional e 3.000 rebeldes da policia local e da guarda nacional mineira, e de gente do povo commandada por fazendeiros liberaes, poz cobro inteiramente á agitação revolucionaria. Os insurgentes, comquanto admiravelmente collocados sobre uma altura que tinham fortificado, tomaram a offensiva, mas foram surprehendidos por um ataque pela retaguarda, habilmente preparado pelo general em chefe Alves de Lima. Assaltando-os o panico, trataram de escapar-se, cahindo os principaes cabecilhas nas mãos de vencedor, de animo tão generoso que, convidado pelo bispo e capitulo de Marianna para assistir a um Te Deum em acção de graças, respondeu que competia ao clero rezar pelos mortos e não festejar os resultados de uma guerra fratricida, a qual devia antes entristecer todos os corações brazileiros[4].
Tão conspicuo se tornara Caxias que o governo imperial não demorou em designal-o como seu delegado civil e militar no Rio Grande do Sul, onde com sua presença as operações militares entraram immediatamente n'uma phase nova, de differente aspecto, assignalada por successivos e frequentes ganhos dos legalistas, coroados pela captura, por Marques de Souza (futuro conde de Porto Alegre) da cidade de Piratinim, capital da republica, com seus depositos de munições de guerra e de provisões de bocca. Batidos n'outros encontros ulteriores e onde quer que pelas ultimas vezes tentaram a fortuna das armas, sentiram os revolucionarios que a sua causa estava absolutamente perdida.
Chefes importantes, seduzidos pelas promessas de perdão, desfraldaram o pavilhão imperial; os soldados, esgotados e sem mais esperanças, desertavam, e o armamento entrou a faltar desde que a fronteira foi efficientemente vigiada.
A solicitação de um appello á fraternização foi perfeitamente recebida pelo general com caracter de proconsul, homem de tino e homem de coração. Como Hoche na Vendéa, recorreu á moderação e ao esquecimento, concedendo plena amnistia; garantias integraes para as pessoas e bens dos rebeldes, em troca da entrega das suas armas e do reconhecimento da auctoridade do Imperio, os militares conservando seus postos e os civis voltando aos seus affazeres; a encampação pela união de uma parte da divida da Republica e, finalmente, a restituição dos escravos fugidos alistados nas fileiras insurgentes, o governo imperial respeitando sua liberdade assim alcançada, mas pagando uma indemnização aos seus senhores. Passava-se isto em 1845. Mil e duzentos rebeldes depuzeram as armas e no mesmo anno o Imperador e a Imperatriz — a virtuosissima princeza napolitana que elle desposara em 1843 — visitaram o theatro dessa guerra civil de dez annos, conquistando a affeição geral e sendo por toda a parte recebidos com o mais vivo e sincero enthusiasmo.
A ultima das revoluções do Imperio Brazileiro, na primeira metade do seculo XIX, foi a de Pernambuco em 1848-49. O presidente da provincia sustentado pelos fusionistas ou praieiros (partido da praia) era Chichorro da Gama, que em 1847 foi incluido na lista senatorial triplice — tratava-se mesmo de uma lista sextupla, porque havia duas vagas — por effeito de uma eleição tão tumultuaria e tão sobrecarregada de assassinatos e motins que o gabinete Hollanda Cavalcanti (visconde de Albuquerque) oppoz duvidas á sua validade, a qual o Imperador não quiz admittir, o que provocou a retirada do ministerio e a organização d'outro de côr francamente liberal, presidido por Alves Branco (Caravellas) e de que faziam parte Vergueiro e Paula Souza, este conhecido pelas suas tendencias democraticas e no ideal de liberdade, verdadeira alma de girondino, como delle se escreveu. O Senado apresentou um parecer contrario á eleição de Pernambuco e favoravel a uma nova consulta ao suffragio, sendo esse parecer adoptado por 17 votos contra 13, apezar das objurgatorias dos deputados praieiros na Camara, invectivando a oligarchia senatorial e zelando as prerogativas da Corôa, n'esse momento muito vilipendiada pelos adversarios da chamada «facção aulica», os quaes se recrutavam então nas fileiras dos conservadores. Contra estes se dirigiam especialmente as manobras violentamente partidarias do gabinete, de tal natureza que enojaram Paula Souza e o levaram a repudiar a sua pasta, posto que Alves Branco as considerasse apenas como «dolorosos mas indispensaveis sacrificios para poder concentrar a fé politica»[5]. O deputado Barboza, de Minas Geraes, condensava n'estas palavras a vida da Camara cujo mandato expirava em 1847: « Nascida da fraude e da violencia, vegetou no servilismo e desapparece no opprobrio». Nunca houve mais cruel epitaphio.
O fermento revolucionario que tinha suas raizes na Independencia e que a monarchia estava tratando de destruir pela clemencia, não perdera o travo nativista que não queria amargar tanto o espirito cosmopolita como propriamente a tradição portugueza. O nacionalismo fizera-se virulentamente xenophobo. Os europeus eram alvo em Pernambuco dos mesmos ataques que os conservadores: queria-se expulsar os marinheiros (alcunha dada aos portuguezes) e prohibir o commercio a retalho aos estrangeiros. A desordem armada pudera ser mais ou menos domada, mas não arrastara na sua queda a desordem civil. Tinha subsistido uma condição de rivalidades pessoaes, de ciumes de grupos parlamentares, de rancores de facções, sobretudo locaes, complicados com antipathias de raças e com despeitos de classes e tanto mais accesos quanto a tonalidade geral dessa sociedade politica era ainda não pouco grosseira e inculta, não obstante exemplares acabados de educação e de saber. Uma intriga terrivel grassava atravez todo o Imperio e a revolução de 1848 foi a explosão não inesperada mas abortiva desse estado malsão: em linguagem medica dir-se-hia talvez com propriedade ter vindo á suppuração um abcesso purulento.
O gabinete de 1844, conservador no rotulo, liberal em muitos dos seus actos, proviera da incompatibilidade entre o chefe do anterior ministerio, Honorio Hermeto Carneiro Leão (depois marquez do Paraná e politico do maior prestigio) e a «facção aulica» dirigida por Aureliano Coutinho (Sepetiba). Começou por conceder amnistia aos revoltosos liberaes de 1842, justificando mesmo sua attitude com as leis repressivas de 1841, e recorreu á dissolução da Camara, cuja maioria lhe era por isso hostil e onde difficilmente se formou uma minoria de apoio ao governo, graças ás discordias provinciaes que puzeram em conflicto seus respectivos representantes na Assembléa Geral. As eleições que se seguiram occorreram sob uma forte pressão official, precedida de reversões de juizes de direito e demissões de altos funccionarios e delegados de policia. As desordens foram numerosas e a fraude imperou em todas as freguezias. Os revolucionarios de 1842, aproveitando a amnistia, tomaram a sua desforra, sem todavia lograrem impôr-se á facção conservadora da nova maioria, igual em proporção, e obter a execução das suas idéas de reforma ou, mais precisamente, a abrogação das leis reputadas inconstitucionaes. Data dessa epocha a fusão pernambucana entre conservadores ministeriaes, como Urbano Sabino e Nunes Machado, e os ultra-liberaes ou praieiros inimigos da oligarchia territorial das poderosas familias Cavalcanti, Souza Leão e Rego Barros, compostas de ricos senhores de engenho.
As novas eleições senatoriaes de Pernambuco em 1847 foram tambem no genero das anteriores, usando-se de todos os recursos da chicana de votações e de todas as brutalidades do poder por fazer trumphar o partido interessado e protegido pelo presidente da provincia. O proprio vice-presidente, si bem que da mesma facção, não hesitava em descrever a situação como «lamentavel e desesperada». De igual ausencia de garantias e de identicos abusos se resentiam as eleições dos deputados. A mudança de gabinete e um appello, muito embora platonico, á boa vontade geral e a processos menos escandalosos e mais decentes produziram em todo caso uma certa folga que o effeito da revolução de 1848 veio comprometter. Não bastava mais a modificação das leis reaccionarias: pretendeu-se como na Inglaterra de Asquith e Lloyd George, antes da guerra, cercear as attribuições politicas da Camara Alta para punil-a de haver pela segunda vez annullado por grande maioria as eleições senatoriaes de Pernambuco, onde a situação se tornara puramente anarchica; a guarda nacional em armas e as auctoridades policiaes em plena florescencia de auctoridade pessoal.
Paula Souza, que voltara ao poder como presidente do Conselho, não possuia, com toda sua tradição de liberalismo, energia bastante para impôr uma direcção definida a um partido fragmentado e trabalhado por orientações individuaes diversas e divergentes. Preconizava leis de incompatibilidade, como si a situação não exigisse gestos mais amplos e attitudes mais decididas. Evocava n'uma imagem o indio que, cançado, extenuado de querer luctar contra a corrente que o arrebata, larga o remo e, aguardando o momento de ser precipitado no abysmo, levanta os olhos para o ceu, resignado perante a fatalidade que elle não poude evitar. As scenas tumultuosas sobrevindas na capital por occasião da eleição, a 7 de Setembro, da camara municipal e dos juizes de paz das parochias, seguidas de invasão do recinto da Camara dos Deputados pelos arruaceiros das galerias a soldo dos politicos radicaes por occasião de um discurso do conhecido historiador Pereira da Silva, o qual insinuou a cumplicidade do governo com os malfeitores de sua convivencia, determinaram reacção salutar, denunciada pela formação de um gabinete conservador presidido pelo antigo regente marquez de Olinda. Este gabinete, mais tarde presidido por Costa Carvalho (marquez de Montalegre) incluiu Eusebio de Queiroz, Paulino de Souza (visconde de Uruguay), Rodrigues Torres (visconde de Itaborahy), Manoel Felizardo e Vieira Tosta (marquez de Muritiba), uma pleiade de nomes illustres.
Nos primeiros dias de Outubro de 1848 o gabinete obteve do Imperador o adiamento do Parlamento para 18 de Abril de 1849. Apoz a victoria do governo sobre a revolução de Pernambuco e antes de reunida, foi a Camara dissolvida e a nova Camara convocada para 1.º de Janeiro de 1850. A reacção precipitara entretanto os acontecimentos, onde todos os empregados administrativos da provincia, todos os funccionarios policiaes, todos os officiaes da guarda nacional pertenciam á opposição ultra-liberal, a qual resolveu resistir pela força a qualquer demissão. Intimação foi feita ao novo presidente, seguida de tropas, e declarou-se a insurreição. Rompia aliás a guerra civil em condições excellentes para os rebeldes, si apenas o delegado do governo central não fosse um homem de fibra como Vieira Tosta, magistrado de alta respeitabilidade que se revelou um verdadeiro temperamento militar. Elle principalmente e pode até dizer-se que elle só preparou e organizou a defesa legal, reunindo aos contingentes de linha vindos das provincias da Bahia e do Rio de Janeiro, batalhões de voluntarios e companhias de artifices dos arsenaes de marinha e de guerra.
O deputado Nunes Machado, que era um fogoso tribuno de consideravel popularidade, acudiu da Côrte a ver si podia impedir a lucta armada, mas deixou-se arrastar pelo seu ardor combativo em politica, que ia até a paixão, e muito tambem pelo sentimento dos seus amigos, que começavam a pôr em duvida sua lealdade e a tomar a mal seus primeiros conselhos de prudencia. Nunes Machado foi victima afinal do seu civismo democratico combinado com uma recrudescencia nesse instante de certa fraqueza moral, filha de um perigoso espirito de solidariedade. Uma bala atravessou-lhe o craneo quando marchava á frente de uma das duas columnas, cada qual de 2.000 homens, que tentaram por differentes caminhos, a 2 de fevereiro de 1849, apoderar-se do Recife depois que o grosso das forças legalistas, sob o commando do brigadeiro Coelho (barão da Victoria) tomaram, enganadas por falsas informações, o caminho de Agua Preta, no interior, onde a maior parte dos insurgentes se congregava primeiro e onde se dizia continuarem elles acampados. Reconhecendo o engodo, Coelho voltou atraz chegando a meio do combate para ajudar vigorosamente o triumpho final da ordem, já assegurada pelo presidente Tosta por meio dos seus 1.000 homens, bem arregimentados e bem dirigidos, resultado obtido apezar das relações que os rebeldes mantinham na cidade e das sympathias com que ahi contavam. Perderam estes 1.500 homens entre mortos e prisioneiros. A contenda prolongou um pouco, graças a elementos que escaparam á derrota e que persistiram em proclamações furibundas contra os portuguezes e contra o «tyrano implacavel» que os batera. Recommendavam mesmo que a vida não fosse poupada aos prisioneiros e fizeram victimas entre os commerciantes portuguezes indefesos, mas a calma e a generosidade bem calculada tiveram sua recompensa e confirmaram sua superioridade. O espirito revolucionario socegou, abrandou o regimen da violencia, sem um fuzilamento nem uma represalia dura, dominado pela magnanimidade do soberano que impunha sua politica de paz. Só tornou a apparecer á moda antiga com a queda do regimen imperial, a qual foi incruenta como effeito que era de uma propaganda doutrinaria e pacifica, embora n'ella acabasse por enxertar-se uma anachronica imitação das revoluções militares hispano-americanas.
A queda do Imperio em 1889 foi já por si determinada como causada pela recrudescencia do espirito revolucionario trazida por varios factores — a gradual invasão das prerogativas da corôa pela acção representativa popular, arguindo-se o poder moderador de ter-se transformado em poder pessoal; o desprezo pelo throno dos privilegios e principios da Egreja Catholica Romana, religião do Estado, quando em 1873 se abriu a lucta entre o governo protector da maçonaria e alguns membros da hierarchia; o abandono dos interesses da agricultura ao promover-se a abolição sem indemnização; finalmente a propaganda subversiva nas forças armadas. A joven officialidade do exercito especialmente das armas scientificas, em bom numero obedecia á inspiração de Benjamin Constant Botelho de Magalhães, a quem o Imperador tratava com regular tolerancia e que era um adepto fervoroso das doutrinas de Augusto Comte. A alta oficialidade desde a guerra do Paraguay já em parte reatara a anterior tradição de indisciplina, juntando-se aos civis que a 3 de Dezembro de 1870 firmaram o manifesto republicano, reflexo da mudança de regimen na França a 4 de Setembro. Existe sempre uma intima correlação entre os successos historicos da França e das suas filhas espirituaes.
O papel que coube á imprensa em 1831 de salvar a monarchia brazileira, coube-lhe de 1870 a 1889 para derrubal-a. Foram primeiro jornaes doutrinarios como a Republica e o Globo, em cujas columnas o primoroso jornalista Salvador de Mendonça não esquecia a urbanidade; logo folhas de combate mais porfiado e menos impessoal, como o Paiz, dirigido por Quintino Bocayuva, mestre da arte da polemica de idéas; por fim a analyse desapiedada de Ruy Barbosa no Diario de Noticias desfibrando a trama de realeza constitucional e esmagando as instituições do passado sob a clava formidavel de seu estylo seiscentista. A substituição do gabinete liberal Zacharias pelo gabinete conservador Itaborahy em 1868 é por alguns publicistas considerado o inicio da ultima e grande campanha demolidora do Imperio e é facto que os liberaes, com o senador Nabuco á frente, a exploraram o mais possivel. Reforma ou revolução — foi o seu lemma, e a revolução não veio mais cedo porque a questão servil quasi monopolizou a attenção publica até 1888.