CAPITULO III

O Imperio e o systema parlamentar

A monarchia no Brazil acha-se estreitamente ligada ao systema parlamentar e foi até, no seculo XIX, sem fallar na Inglaterra, alma mater do regimen representativo e não obstante efeitos procedentes das deficiencias politicas do meio, uma das suas expressões mais legitimas e pode mesmo dizer-se mais felizes. O nosso parlamentarismo foi, entretanto, mais uma lenta conquista do espirito publico do que um resultado do direito escripto (1). O direito publico brazileiro não consagra precisamente ab imitio semelhante regimen que, segundo o sem genuino modelo, que é o britannico, mais ou menos imitado com fidelidade alhures, repousa sobre a mfluencia preponderante da Camara emanada directamente da nação, o gabinete à frente dos negocios do Estado não representando, apezar de toda a amplidão adquirida da sua acção executiva, mais do que uma commissão delegatoria da maioria, unica fonte de auctoridade e abeberalo nas suas relações com a Corda. Esta não possue, em caso de crise e no desejo de prestar um ultimo apoio ao ministerio posto em minoria, senão o privilegio de dissolver a camara e fazer appello ao paiz, que julga em ultima instancia a desavença entre os dois poderes constitucionaes — executivos e legislativos. A Camara alta dos lords não podendo ser dissolvida como o não podia ser o Senado no Brazil, agia e age ainda com suas attribuições e poderes minguados à guisa de freio para

(1) Affonso Celso, Oito annos de Parlamento. Rio, 1901]. legislação revolucionaria e por tendencias radicaes. E' o elemento conservador necessario n'um organismo social.

A constituição do Imperio, de 25 de Março de 1824, e o Acto Addicional de 1834 não estabeleciam theoricamente, quer uma, quer outra, a supremacia politica da Camara dos Deputados. À maxima «o Senado não faz politica » — veio mais tarde, como expressão da evolução percorrida, que deve vantagens à Camara que era apenas eleita e que se renovava, sobre a camara que passava pelo crivo imperial e que era inamovivel. Todos os poderes, segundo a lei organica da nação, eram iguaes e independentes -—o poder legislativo dividindo-se em dois ramos —, cada um movendo-se na sua esphera de acção respectiva e peculiar, e sem distmeção provinham do povo, a quem realmente cabia a soberania. O poder moderador exercido pelo Imperador (artigos 98 e 101, paragrapho 6 da Constituição de 1824) era, na linguagem constitucional, «a chave de toda a organização politica e delegado privativamente ao monarcha como chefe supremo da nação e seu primeiro representante, para que incessantemente velasse sobre a manutenção da independencia, equilibrio e harmonia dos mais poderes publicos». O termo dizia bastante que não se tratava de despotismo, senão de fiscalização. Em qualquer systema, mesmo os democráticos, existe um chefe supremo.

Entre as attribuições do poder moderador estava incluida a faculdade de nomear e demittir livremente “os ministros, e que fez que o primeiro Imperador, mau grado todo o seu romantismo liberal, pudesse apparecer como pretendente à autocracia, sua influencia querendo ser predominante na administracão. Por sua vez a Constituinte de 1825 experimentou fazer o papel de uma Convenção Nacional, tendo, porem, que ser dissolvida manw militari por não haver lugar para duas auctordades soberanas rivaes. A historia desta assembléa: é interessante e honra o paiz. Não se compunha de jacobinos, menos ainda de cortezãos. Reunia o escol-intellectual e moral da nação n'essa epocha. Magistrados, membros do clero, altos funccionarios, chefes de administração, professores, officiaes superiores constituam seu conjuneto. Este pessoal, restricto como numero pois que a Constituinte se compunha apenas de 100 membros, forneceu mais para diante 33 senadores, 28 ministros d'Estado, 18 presidentes de provincia, 7 membros do primeiro conselho d'Estado, 4 zegentes do Imperio (2). Encontram-se no seu rol os nomes, depois celebres ou respeitados e respeitaveis, de Olinda, Vergueiro, Queluz (Maciel da, Costa), os trez Andradas, Cayrú (Silva Lisboa), Abrantes (Miguel Calmon), Monte Alegre, Barbacena (Felisberto Caldeira), Sapucahy (Araujo Vianna). Baependy (Nogueira da Gama), Caravellas (Carneiro de Campos), Inhanbupe (Pereira da Cunha), Cachoeira (Carvalho de Mello), Goyanna (Bernardo José da Gama), Pirapama (Cavalcanti de Albuquerque, Alencar, Maranguape (Lopez (Gama), São Leopoldo (Fernandes Pinheiro), Paula Souza, Moniz Tavares. Quasi todas as principaes personalidades politicas do Imperio, na primeira metade do seculo, fizeram parte de uma assembléa constituinte, por nenhuma outra excedida em cultura, probidade e civismo. Percorrendo a lista dos seus membros, pode dizer-se que nenhum era uma nullidade e alguns foram mesmo summidades.

Seguramente em 1823 as illusões politicas tinham todo o viço, e a experiencia das coisas humanas não entrava a fenecelas. À Revolucão Franceza, mal conhecida e sobretudo mal comprehendida e mal julgada, ferira profundamente os espiritos estrangeiros, já pelo lado das suas atrocidades, já pelo lado

(2) Homem de Melo, 4 Constituinte perante a Historia, 2º edição, Rio, 1868, dos seus heroismos, e a ultima impressão prevalecia entre os que só sonhavam com liberdades, engendrando ingenuos enihusiasmos ou calculadas aspirações. A Constituinte brazileira seguiu-se immediatamente à Independencia nacional: não podia senão irradiar fé e ardor patrioticos, misturados com o amor das novidades democraticas e com o rancor, espontaneo e sincero nuns, exaggerado e forçado n'outros, contra a mãi pafria, alcunhada de madrasta descaroavel.

E' verdade que as Côrtes de Lisboa, convocadas, por effeito da revolução liberal portugueza de 1820, não pareciam ter tido Hto mais ambicionado do que o de restabelecerem no Brazil, equiparado à metropole em 1816 por uma formula dualista, a servidão colonial que fôra de facto abolida pela installação no Rio de Janeiro, em 1808, d'el-rei D. João VI, e da sua côrte, quando tivera de abandonar o velho remo à defesa anglo-lusitana contra os exerecitos de Napoleão que successivamente invadiram a Peninsula Iberica. Aquella politica erronea tinha levado à separação dos dois reinos unidos, tanto mais suavemente quanto a conservação no Brazil do Principe Real como regente emprestara às aspirações locaes de emancipação politica, divergentes umas das outras, impregnadas de particularismo, um centro notavel de attracção e cohesão que noutras circumstancias lhes teria faltado e cuja ausencia teria sem a menor duvida animado à desaggregação da enorme colonia, ou, melhor dito, conjuncto de colonias, que na verdade já tinham ultrapassado tal condição, a qual as queria de novo sujeitar um liberalismo de nome, mais do que de essencia. Uma parte dos membros da Constituinte do Rio de Janeiro — Araujo Lima (Olinda), Moniz Tavares, Versueiro, Antonio Carlos, outros mais — tinha sido eleita e lomara assento nas Cortes de Lisboa, tendo os deputados brazileiros que abandonar a assembléa das Necessidades porque chegou um momento em que sua posição se tornou difficil e até arriscada. À ralé vaiava-os das galerias e nas ruas, e no recinto os seus collegas portuguezes os crivavam de imjurias e de ameaças. De regresso ao paiz natal e recordando os maus tratos soffridos, tambem partilhando da embriaguez da nacionalidade creada e tornada senhora dos seus destinos, augmentaram as lileiras dos que faziam da antipathia a Portugal e a quanto era portuguez o primeiro artigo do seu credo politico. Ao Imperador D. Pedro não seria, num dia proximo, poupada a explosão d'esse odio nacional que se aninhava no coração mesmo dos muitos que tinham feito em Coimbra seus estudos universitarios, o Brazil achando-se privado, nos tempos coloniaes, das vantagens do ensino superior.

E' natural que a organização constitucional houvesse primado qualquer outra preoceupação no espirito dos novos legisladores. Seu primeiro afam foi corresponder ao pé da lettra ao desejo manifestado pelo Imperador na sua primeira falla do throno, a saber, que a Assembléa elaborasse uma Constituição digna d'Elle e digna do Brazil, caso em que seria o seu Defensor. Nem. poderia succeder diversamente, commentaram varios dos deputados, ciosos da sua valia e da sua dignidade. Não cabia aliás ao soberano — ajuntavam — ser o unico juiz da excellencia de uma lei organica cuja redacção era tarefa da competencia da Assembléa Constituinte. O mal entendido estava na raiz desse antagonismo de vistas. O Imperador preferia uma Constituição outorgada realmente, comquanto apparentemente submettida à approvação do povo, por intermedio dos seus representantes immediatos que eram, no seu pensar, as municipalidades, celulas da vida politica portugueza. A Assembléa não entendia as coisas do mesmo geito e pretendia decretar ella propria a Constituição, de facto impól-a ao monarcha. No seu tóro intimo, considerava-se superior a este, encarnar a legitima e intangivel soberania; o Imperador só podia esperar ser destitudo das suas funcções si não acceitasse integralmente as bases adoptadas pela representação nacional —o corpo legislativo — para o estatuto fundamental. Seria o depositario da confianca publica emquanto a merecesse, e não o regulador supremo da marcha dos eventos e da rotação das opiniões. O conflicto era pois insolnvel, porque essa superioridade a reivindicaram para si os delegados eleitos pelo suffragio popular. Os agrupamentos partidarios queriam a arena livre para o seu jogo, de que o Imperador não soffria ser espectador sem ser igualmente e principalmente o arbitro omnipotente.

E' mister ter presente que D. Pedro [ n'esse instante desiructava ainda toda a popularidade que lhe decorria do papel desempenhado na proclamação da Independencia, a qual elle tomara tanto a peito que se tornara o factor decisivo da mesma. Os irmãos Andrada cercavam-no do seu grande prestigio pessoal e José Bonifacio continuava a ser seu conselheiro predilecto. O Imperador só quer fazer o Brazil grande e feliz — declarava à Assembléa Martim Francisco, ministro da Fazenda, collega, portanto, do gabmete do irmão José Bonifacio, pois que Antonio Carlos só foi ministro na maioridade de D. Pedro Il (1840). A monarchia inspira uma confiança absoluta -—— acerescentava o maior dos Andradas, encarregado da pasta do Imperio e dos negocios estrangeiros. «Só me espanto -—- eram suas palavras — que alguem haja que possa distillar peconha do puro mel do discurso do Imperador». Antonio Carlos, incumbido de preparar o voto de graças a ser apresentado ao soberano, formulava observações analogas: «A Assembléa não atraiçoará seus committentes, immolando os direitos da nação em vil holocausto diante do throno de V. Majestade Imperial, que não deseja e a quem mesmo não pode convir sacrifício tão abjecto; mas tampouco terá a afoiteza de invadir as prerogativas da Corõa, que a razão indica serem o complemento do ideal da monarchia. A Assembléa não pode ignorar que, sempre que elas se mantiverem dentro dos seus proprios limites, serão à defesa mais efficaz dos direitos do cidadão e o maior obstaculo à apparição da tyrannia sob não importa que nome »...

A Assembléa deu a melhor prova da sua boa vontade, da sua firme intenção de trabalho intelligente e regular, consagerando sua actividade à discussão de varias medidas de grande alcance, quer pratico, quer moral. A solida edificação do paiz sobre seus novos alicerces foi-lhe tão grata tarefa que se oceupou directa ou incidentemente da abolição da escravidão, da catechese ow civilização dos indigenas, da fundação de universidades, da mudança da capital do Imperio, da administração das províncias, ainda sob a jurisdicção de juntas insurgentes, da liberdade de imprensa, das incompatibilidades entre mandato legislativo e os empregos publicos, de uma infinidade de assumptos importantes para a economia nacional. O melhor da sua attenção foi, entretanto, prestada a uma Constituição, a um tempo. imperial e democratica, de inspiração franceza, philosophica e tambem napoleonica, idealista e realista, que devia tornar defimtivas todas as conquistas theoricas ou concretas do espirito revolucionario liberal, taes como a igualdade perante a lei, a hberdade religiosa, a abolição do confisco e das penahdades inlamantes, a publicidade dos processos arrancados ao sigillo tenebroso das inquisições e das alçadas, a franquia das opiniões falladas ou escriptas, a liberdade de industria, a garantia da propriedade individual, o julgamento por qjury, etc.

Naturalmente a maneira pela qual se affirmam ou se exercem essas hherdades comporta grãos e aspectos diversos e não sómente se deram no seio da Assembléa debates prolongados e elavados. como é visivel o resultado da differença dos pareceres ao estabelecer-se uma simples comparação entre as duas Constituições — a que não chegou a ser sanccionada pelo Imperador e a que, redigida por uma commissão escolhida ad hoc. embryão do Conselho d'Estado, foi ratificada pelas camaras municipaes. Os principios cardeaes são identicos em ambas e pode mesmo dizer-se que a segunda foi quasi inteiramente cal. cada sobre a primeira, no tocante à orientação philosophica e à declaração dos chamados direitos do homem, mas num ponto essencial a «dissemelhança é obvia. Na obra da Constituinte não existe menção do poder moderador imaginado por Benjamin Constant e que Metternich tratava de idéa metaphysica porque para elle a positiva era a do direito divino. Combinada com à permanencia do titular e com a sua irresponsabilidade a funeção era absorvente, não passando o ministerio de uma chancella responsavel pelos actos do chefe do executivo, o qual dispunha a seu talante da sorte dos seus gabinetes, sem que lhe fosse preeiso seguir os dictames da vontade nacional exarados pela Assembléa. A Constituição por esta elaborada não assistia ao Imperador da faculdade de dissolver a Camara quando o exigisse o bem ou a conveniencia do Estado, de sorte que à soberania ficava antes residindo plenamente na Assembléa do que era partilhada com o monarcha, ambos encarnando a ttulo igual a nação: soberana. A limitação à soberania ahsoluta da Assembléa era a possibilidade de sua. dissolução, assim como a limitação à soberania absoluta do Imperador seria a responsabilidade dos ministerios emanados e representando a maioria da Camara. O eonflicto politico do Imperio deflue desse contraste vital que forma a trama da rixa primordial entre D. Pedro Te a Constituinte, a que os adversarios do regimen pelo tempo adiante quizeram emprestar uma tonalidade crimminosa que só circumstancias fortuitas impediram de ser tragica.

Quando. quarenta annos mais tarde, se inaugurou no Rocio, theatro das suas declarações constitucionaes, a estatua equestre do primeiro Imperador, chrismada pela opposição «a mentira de bronze», Theophilo Ottoni, impando ainda de vaidade da sua victoria eleitoral, escreveu que os ministros de 1823, fieis servidores do capricho imperial, entregaram José Bonifacio e seus companheiros de deportação a um pirata de (Goa, que os teria transferido para os calabouços portuguezes si junto ao governo hespanhol lhes não tivesse valido a intervenção diplomatica anglo-franceza, e que a dissolução da Constituinte seria ainda um mysterio si da bitacula do « Luconia» um archote de luz não esclarecesse os notaveis incidentes que de Ievereiro a Abril de 1824 occorreram em Vigo. O duello era de morte entre as concepções de governo, embora o motivo não fosse publicamente expresso. A ausencia na Constituição de 1824 de um artigo do projecto da Constituinte denuncia tambem elaramente uma idéa oeculta do Imperador que nunca foi posta bastante em relevo na historia dos acontecimentos dessa epocha. O artigo 158 do projecto, estabelecia que o Imperador renunciartia dpso jacio a corõa do Brazil si, herdando uma corôa estrangeira, a acceitasse. Bra o veto da Assembléa posto e antemão à reunião de Portugal e Brazil. O caso deu-se em 1826 por occasião do fallecimento d'elrei D. João VI e só então D. Pedro I se convenceu de todo que lhe não seria lícito volver a soldar a união mesmo nominal dos dois paizes (?).

Planejava-se apresentar a Constituição de 1824 como projecto a uma nova Constituinte, mas, trabalhados de certo neste sentido, as camaras municipaes, ás quaes fôra aquella Constituição offerecida como materia de estudo e de apreciação, emittiram o voto que o Imperador a adoptasse immediatamente como lei organica da nação, prestando juramento e fazendo as camaras igualmente prestal-o. A solução foi, com effeito, esta.

A obra do conselho redactor é mais detalhada e mais adstreta à terminologia legal do que a da Constituinte, vendo-se que resultou do trabalho de gabinete feito sem precipitação por um grupo de jurisconsultos possuindo experiencia de administradores e não do concurso febricitante de uma assembléa de legisladores improvisados: nessa lida si bem que muitos superiormente dotados para ella. O espirito liberal do tempo permeou comtudo em muitos topicos as duas obras, approximando-as fortemente nas suas variantes, e evidenciando-se m'outros o espirito tradicional em igual concorrencia ou em divergencia.

Os direitos politicos eram, por exemplo, concedidos pelo projecto da Constituinte a todos os membros das communhões christãs, as outras religiões sendo apenas toleradas. Pela Consttuição o culto religioso outro que não o catholico, apostolico, romano —- religião do Estado - era apenas admittido em locaes ou edificios sem a forma ou aspecto exterior de templo. Só na ultima phase do Imperio se tomaram os acatholicos por lei eleitores e elegiveis.

Na Constituição figurava a pena de exílio, que não se acha mencionado no projecto da Constituinte, o qual enumera entre

(3) Oliveira Lima, D. Pedro e D. Miguel, A querela da Successão, 1826-288 Paulo, 1926. os deveres dos Brazileiros o de morrer, si preciso fosse, pela patria. Na Constituição do que se falla é da obrigação de defendela contra todos os seus inimigos. O acto imperial apparecia meramente suspensivo em ambas as redacções. À approvação da medida pelas duas legislaturas seguintes tornaria dispensavel toda -saneção do soberano, a qual não invalidaria igualmente pela sua ausencia os decretos da assembléa geral à que houvesse faltado a recusa ou a approvação no prazo previsto de um mez e que assumiram conseguintemente o caracter de obrigatorios. O projecto da Constituinte ia alem: segundo elle, a Constituição e todas as modificações à mesma relativas, supervenientes no futuro, e bastantes resoluções privativas do ramo legislativo sobre policia interna do Parlamento, verificação de poderes, emprego da força armada pelo executivo, etc, permaneciam independentes da sancção imperial. O artigo 157 do projecto era complementar do 158: um principe extrangeiro, herdeiro presumptivo de uma corôa, não poderia cingir a corda brazileira sem abdicar a outra.

No projecto da Constituinte o conselho Estado inamovivel, destinado a ajudar o Imperador a exercer o poder moderador, tinha a sua modalidade anterior, que era um conselho privado de livre nomeação ou demissão pelo soberano. Por aquelle projecto conselhos provinciaes, conselhos de districtos e juizes de termos deveriam ser eleitos: a Constituição conservou sómente o suffragio para os conselhos provinciaes, afóra as camaras municipaes, e supprimiu toda eleição para o elemento -judiciario. No que diz respeito à força armada a Constituição de 1824 é muito laconica. O artigo 148 rezava simplesmente que pertencia privativamente ao poder executivo empregar as tropas de terra e mar da forma que entendesse convemente à segurança e á defesa do Imperio. Ao contrario, o projecto da Constituinte dividia as forças de terra em tropas de linha, de guarnição nas fronteiras e destinadas a guardar sua segurança exterior, salvo no caso de declarar uma revolta interior, em que poderiam ser usadas para supprimila; milicias com officiaes eleitos e temporarios, propostas ao serviço domestico nas suas proprias comarcas e termos, excepto nos casos de invasão ou revolta, sujeitos sempre à consideração e juizo da assembléa legislativa; e policia effectiva para perseguir Os criminosos e vigiar a segurança dos particulares.

A Constituição é muda quanto às obrigações impostas ao governo pelo projecto da Constituinte, e ahi expressas sob a inspiracão e orientação de José Bonifacio, de crear fundações para cultura dos aborigenes e de cuidar da emancipação lenta dos escravos de origem africana e de sua educação religiosa e industrial. O projecto reconhecia, entretanto, a instituição servil pois que admittia as relações entre senhores e escravos, às quaes a Constituição não se referia absolutamente. Tambem o projecto mencionava as officinas para os sem trabalho, as casas de correcção, os estabelecimentos reformatorios e penitenciarias para os ociosos, os vagabundos os dissolutos e os criminosos. A revisão constitucional caberia, mediante o projecto, pelo voto emittido em trez legislaturas successivas por dois terços de cada uma das duas casas do Parlamento: uma assembléa especial seria então convocada pelo soberano e eleita como a Camara dos deputados, em numero igual a dois terços da totalidade dos membros das duas camaras, dissolvendo-se apoz a conclusão da sua tarefa. De accordo com a Constituição, a imetativa da revisão devia emanar de um terco dos membros da Camara dos deputados sendo a proposta apresentada trez vezes com intervallos de seis dias, discutida e votada como lei ordinaria, untes de chamados os eleitores da legislatura immediata a conterirem aos seus mandatarios faculdades constituintes para a retorma indicada.

A lembrança do confheto entre o Imperador e a Assembléa Constitumte perturbou e envenenou as relações entre os dois poderes constitucionaes durante todo o remado de D. Pedro I e determinou por fim a retirada do soberano diante dos motins. Elle se identificara com as instituições monarchicas até o ponto de converter em ataque dynastico toda censura dirigida contra seus actos ou contra sua politica pessoal. À Corda era no seu entender inatacavel e inattingivel e o monarcha infallivel. Por seu lado o Parlamento farejava em qualquer attitude irreconcihavel do throno o claro despertar da tradição absolutista. Pode dizer-se que desde 1826, quando as Camaras se reuniram pela primeira vez depois da promulgação da Constituição, até 1831. quando o Imperador embarcou para a Europa, tendo abdicado o diadema, executivo e legislativo nunca viveram num pe de confiança, menos ainda de cordialidade, porque não os prendia um laço commum de parentesco político.

O Imperador só recrutava o pessoal dos seus ministerios no Senado, onde tinham assento os seus amigos, os poucos depositarios suecessivos dos seus pensamentos — Barbacena, Paranaguá (Villela Barbosa), São Leopoldo, Baependy, Santo Amaro -- ou então fóra do Parlamento. Duas vezes que succedeu diversamente e que D. Pedro tentou governar com a maioria da Camara, em 1827 e em 1830, 0 accordo foi passageiro e o Senado continuou a ser o viveiro dos gabinetes imperiaes. O regimen parlamentar era, aliás, tão imperfeitamente applicado que o governo recusava à Camara os elementos de que esta carecia para preparar o orçamento e que os ministros não sómente se não julsavam responsaveis para com ella, como mesmo se esquivavam a mandar-lhe. relatórios da gestão dos seus departamentos ou adar-lhe conta das suas deliberações. Os deputados dirigiam-se directamente ao Imperador e os membros do gabinete Jjulgavam-se dispensados de assistir às sessões legislativas e de acompanhar os debates. A discussão da resposta à falla do throno em 1527 encerrou-se sem que os ministros comparecessem uma vez sequer na Camara e sem que sua defesa fosse esbocada em opposição aos ataques que cada dia se tornavam mais vigorosos ('). Ao mesmo tempo a Camara concedia absurdamente aos

(I) Affonso Celso, Oilo amnos de Parlunento. ministros senadores o direito de votarem os projectos de lei sujeitos pelo governo à approvação parlamentar, incorporando-se deste modo a uma assembléa para a qual não tinham sido eleitos. Esse absurdo não impedia, entretanto, Os attrictos e as discordias.

N'esse mesmo anno de 1827 a Camara rejeitava a proposta do executivo fixando o effectivo das forças navaes; em 1828 votava em desafio ao ministerio o primeiro orçamento da teceita e despeza; em 1829 approvava moções de censura aos ministros e aos agentes diplomaticos do Imperador, o qual, com seu temperamento impetuoso, não poude ou não soube clissimular seu descontentamento na sessão de encerramento. A pendencia latente foi-se tornando aguda e 1831 vingava 1823: a abdicação foi a consequencia do acto- violento da dissolução.

A Regencia (1831-1840) que foi como que um ensaio geval da Republica, devia necessariamente trazer a prepondes rancia politica da Camara eleita, O que não succedeu, porem, immediatamente. O regente Feijó (1835) logrou ainda governar algum tempo contra a maioria dos deputados, mas esta maioria adquiriu por fim forca bastante para impôór suas tendencias conservadoras e levar ao poder em 1837 o representante das suas idéas. O antigo regente, a quem Araujo Lima (Olinda) succedeu, combatia sempre em 1840, quando os liberaes apressaram a declaração da maioridade, a pretenção da maioria da Camara de intervir na organização dos ministerios, que elle considerava como devendo emanar exclusivamente da confiança do soberano; insistindo na absoluta independencia dos dois poderes, executivo e legislativo, com relação um ao outro, e ne- cando qualquer outra doutrina constitucional. O primeiro gabinete do reinado de D. Pedro IH foi com effeito escolhido entre os membros da minoria parlamentar, mas a tendencia geral era para uma interpretação mais approximada e mais exacta do modelo britannico. O snr. Affonso Celso faz datar de 184%, quando foi creado o posto de presidente do Conselho de ministros, o estabelecimento definitivo do regimen parlamentar que devia consubstanciar-se com o Imperio Brazileiro e sossobrar com elle. Naturalmente houve logo exaggero nesta evolução, ao caminhar desassombrada. A breve trecho ficou distante o tempo em que, como no inicio do Imperio, se respeitavam tão pouco as immunidades parlamentares que se instauraram causas criminaes sobre a base de discursos pronunciados na Constituinte, e o segredo da correspondencia tão superficialmente se observava que, por ordem do ministro da justiça, cartas interceptadas e violadas no correio figuravam em processos politicos. Vinte e cinco aunos depois os gabinetes tinham passado a viver da confiança do Parlamento e a este presfavam contas minuciosas ta sua gestão administrativa, na qual as Camaras participavam elfectivamente. Tambem aos presidentes de Conselho seria dado recrutarem livremente seus collegas de ministerios. Diz-se mesmo que já em 1843 Careiro Leão (Paraná) gozara desta faculdade. Quando em 1883 o ministro da Guerra Rodrigues Junior foi convidado pelo presidente do Conselho, Lafayette, a demittir-se por incompetente, recorreu ao Imperador para reparação da alfronta que lhe fóra assim infligida. A resposta de D. Pedro 1] toi que de ha muito tinha transferido aos presidentes do Conselho o privilegio de propôór a nomeação ou a demissão dos seus collegas. Aliás, nas palavras do snr. Calogeras, varias vezes ministro na Republica (º), «o esforço imperial quanto aos partidos procurou sempre exercer-se no rumo da opimão nacional e do interesse publico, mesmo nesse ponto de escolhas de ministros, que representava faculdade privativa sua, Na organização de governos ».

O executivo foi até certo ponto culpado da auctoridade crescente do legislativo, permittindo que a intervenção deste se extendesse a assumptos administrativos de menor alcance, os quaes passaram a ser regulados pelos pareceres das commissões parlamentares em vez de selo por decisões ministeriaes. A denominação de congressional government, usada por Wilson nos nossos dias com relação ao governo americano, não foi na sua realidade uma innovação. O governo imperial entrou


(5) O poder pessoal e o lapis fatídico», no mumero commemotrativo d'O I I

Jornal. de 2 de Dezembro de 1925. a receber advertencias, recommendações e soluções de orisem legislativa e a soffrer mesmo que os seus funecionarios fossem responsabilizados pelas Camaras por actos publicos (º) O prestigio pessoal do soberano, igualmente crescente com os annos, a experiencia que foi ganhando de govemo, sua sabedoria esclarecida, o exemplo com que sondava a opinião, apezar de amorpha, não se limitando á auscultação. partidaria, foram os melhores elementos, senão os unicos, ao activo do poder executivo, ou melhor dito da auctoridade do executivo, para preservar illesas sua autonomia e dignidade. A dignidade do soverno, quer dizer, do gabinete foi, na expressão de Cotegipe, seu chefe, arranhada por occasião da questão militar dos ultimos tempos da monarchia, mas a da Corôa não foi attingida, não porque fosse esta irresponsavel, mas porque a mantinha sempre invariavelmente alta.

O executivo obteve com relativa frequencia do poder moderador a dissolução da Camara. De 1823 a 1889 houve treze dissoluções. Não porque estivessem tantas vezes em jogo a salvação do Estado, motivo exigido pela Constituição para um novo appello eleitoral ao paiz, nem porque se tratasse cada vez, como na Inglaterra, onde o Parlamento é eleito por sete annos e nunca ou muito raramente chega ao fim do seu mandato legislativo, da necessidade ou conveniencia de uma consulta leal à vontade nacional, convidada a pronunciase sobre uma questão de maior urgencia ou sobre um movimento decidido da opinião. As eleições no Imperio Brazileiro realizavam-se para pór de accordo a representação parlamentar e o partido ou grupo no poder e transformar este n'um governo de maioria. Apenas nos ultimos tempos o appello deixa por vezes de corresponder à voz de

(6) Visconde de Ummguay, Busaio de Direito Administrativo. commando do ministerio: verdade é que os motivos de política geral tinham acabado por substituir-se aos motivos puramente pessoaes. Assim é que as ultimas dissoluções fiveram por causa a questão da abolição da escravidão, em volta da qual eyrava desde certo tempo à vida politica do paiz, quando as primeiras do reinado de D. Pedro IL tinham tido por origem a necessidade de assegurar a manutenção à frente dos negocios publicos do grupo que foi denominado a «facção aulica» e tornar por assim dizer legal a especie de tutela por alguns annos exercida por Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho sobre o joven soberano de quinze annos. Em 1844 Carneiro Leão apresentou a demissão do gabinete conservador, organizado no anno anterior, pelo facto da Corôa negar-lhe a exoneração de um irmão de Aureliano — Satumino, imspector da alfandega do Rio de Janeiro e culpado de publicações contra o governo — e a dissolução consequente à volta dos liberaes ao poder com Mmeida Torres (Macahé) trouxe a amnistia aos revoltosos de 842 e posteriormente a revolução pernambucana de 1848, sob pretexto da dissolução de uma Camara recem-eleita, de côr liberal, quando os conservadores de novo succederam aos seus adversarios.

Em 1863 a dissolução já assumia um caracter menos pessoal, provindo da circumstancia do ministerio haver sido derrotado na escolha do presidente da Camara. A nova Camara então eleita foi liberal, mas a dissolução da anterior fôra precedida de uma pequena remodelação dos partidos politicos. Os conservadores moderados, entre elles Saraiva, fundiram-se com os liberaes, cujo ostracismo datava de 1848. À Corda desconfiava d'elles com certa razão desde a revolução daquele anno, a revolta praieira, é fazia o possivel para conservar os conservadores no poder, sem com isto no emtanto consolidar sensivelmente a estabilidade constitucional. De 1857 a 1862, quer dizer, nos cinco annos seguintes aos do consulado de Paraná, registram-se cinco gabinetes do mesmo matiz de conciliação ou sem côr muito definida (4 de Maio de 1857, 12 de Dezembro de 1858, 10 de Agosto de 1859, 2 de Marco de 1861 e 30 de Maio de 1862) e um gabinete mais, francamente liberal, orgauizado a 24 de Maio de 1862 e que durou precisamente seis dias porque o Imperador lhe recusou a dissolução que no amnno immedtato concedeu ao gabinete Olinda-Sinimbú, liberal, de origem conservador e de tendencia igualmente conservadora. Tendo-se forçosamente restringido do ostracismo, o pessoal liberal experimentava a necessidade de renovar-se.

A dissolução de 1868 for provocada por um incidente antes pessoa] do que politico, que produziu a queda do gabinete lhberal presidido por Zacharias e no qual figuravam personalidades como Affonso Celso, Paranaguá, Dantas e Martim Francisco. Este gabinete prestara ao paiz os melhores serviços durante a phase mais «dbfficil da guerra do Paraguay, emprehendida em deploraveis condições financeiras, apoz uma crise bancarta afflictiva, ec em condições não menos deploraveis da defesa nacional. O escolho já apontado foi a designação de Salles Torres Homem como senador do Rio Grande do Norte, à qual o governo se oppoz por desaccordo partidario com um conservador, allegando razões, de resto exactas e justificadas, de mentira eleitoral, de que partido algum andava, porem, innocente. Os liberaes acolheram com' azedume nunca visto a attitude da Corôa e negaram ao novo gabinete conservador os creditos mesmo os indispensaveis à continuação das operações da campanha em andamento, resultando da sua manifestação de desconfiança a dissolução mais antipathica de nossa historia parlamentar. A moção votada pela Camara foi apresentada e defendida na tribuna pela vigorosa eloquencia de José Bonifacio, O moço, que nas considerações adrede adduzidas não trepidou em comparar o gabinete Itaborahy a um bandido que na calada da noite se introduz numa casa para saqueal-a. A mocão em si dizia que «a Camara vira com profunda magoa e geral surpreza o estranho apparecimento desse ministerio gerado fóra do seu seto e symbolizando uma politica nova, sem que uma questão parlamentar houvesse provocado a perda do seu predecessor. Deplorando esta circumstancia singular e ligada por sincera amizade ao systema parlamentar é à monarchia constitucionai, a. Camara não tinha nem podia ter confiança em tal gabinete». Da controversia attinente nasceu o famoso sorites do senador Nabuco, tantas vezes lembrado em discussões ulteriores - que o governo no Brazil procedia do poder pessoal, que escolhia os ministros, que nomeavam os presidentes das provincias, os quaes por sua vez faziam as eleições, donde procediam as Camaras, que apoiavam os gabinetes, servidores do poder pessoal.

D'ahbi por diante as dissoluções entraram a offerecer razões de ser harmonicas com a natureza do regimen parlamentar, mesmo porque depois de 1869, isto é, da fusão dos liberaes progressistas e dos hberaes historicos que durante annos hostilizaram seus antigos companheiros, os partidos tinham perdido do convencionalismo em que os enroupara a conciliação que se seguiu de perto à extineção do trafico, com a unica ambição depois de 1860, apontada pelo senador Nabuco entre os liberaes, de darem combate ao uti-possidetis dos conservadores. Sómente, com a destreza politica que distinguia Paranhos (Rio Branco), os conservadores condemnaram virtualmente a maxima. reaccionaria de Ifaborahy, de que o rei reina, governa e administra, para ir endossando ads poucos O novo programma liberal nascido do movimento reformista de 1869, fazendo sahir do seu lethargo as idéas organicas e os planos constructores à vista dos problemas economicos e sociaes agitados sobretudo pelo talento previsor e pratico de Tavares Bastos, preoceupado com a «morte dos partidos». Elle foi o grande doutrinario do segundo reinado, quem « fugindo dos interesses partidarios subalternos em comparação com a crise do paiz, e achando prematura a solução republicana, procedeu á analyse do organismo imperial, combateu a sua política exterior conducente ao isolamento americano e à aventura paraguava, desmontou a centralização geradora da apathia, preconizou a federação, voltou os olhos para os Estados Unidos, prégando a medida internacionalmente conciliadora e liberal da abertura do Amazonas, elogiou as tentativas de politica experimental organica da Regencia, vilipendiou a escravidão, reclamou a colonização e bradou pela educação do povo, esgotando-se na lucta heyculea em que se via desamparado, sentindo-se grande entre gentes pequenas que não enxergavam com o seu descortino a lucta entre a Constituicão que queria amainar a tormenta e a revolução que queria subir demolidoramente » (7).

A dissolução de 1872 for normal e explica-se, como tantos exemplos em Westminster, pelo enfraquecimento da situação conservadora depois da ardua campanha parlamentar que libertou o ventre escravo, campanha de quatro mezes que foi das mais rigorosas e das mais violentas da historia do Imperio porque a facção conservadora hostil à opportunidade da mudança nas condições do trabalho não era a menos esclarecida nem a menos activa. Seu leader, Paulino de Souza, foi o mesmo em 1888 no Senado. O motivo daquela dissolução foi a moção apresentada para o adiamento da discussão do orçamento até o ministerio explicar à Camara as razões da sua recomposição e terem sido distribuidos os relatorios annuaes dos differentes departamentos. Reumiu a moção a maioria dos suffragios, mas o appello eleitoral ao paiz deu mais trez annos de vida ao gabinete abolicionista. Naturalmente “o advento dos liberaes em 1878 com o gabinete Sinimbú determinou outra dissolução: e mais uma, a votação da lei de eleição directa sob o gabmete immediato, presidido por Saraiva. Esta consulta à nação foi a mais livre que se fez no Brazil. Em 1884 houve a dissolução provocada pelo programma do gabimete hberal Dantas de liberdade dos sexagenarios, sendo o soberano aceusado de impôr as suas preferencias abolicionistas a uma Camara de opinião manifestamente contraria. Si o Imperador não tomasse porem por vezes o lugar da nação, o partido no poder ahi se perpetuaria e o partido adverso nunca teria a menor probabilidade de assuúmil-o (*.. A practica do systema representativo não era bastante honrada para que acontecesse diversamente e a rotação dos partidos fosse regulada pela linguagem franca das umas. O go-

(1) Vicente Licinio Cardoso, 4º margem do segundo reinado. O Estado de S. Paulo de 2 e 3 de Dezembro de 1925. (8) Tobias Monteiro, Pesquizas e depoimentos. verno ganhava sempre as eleições e esta regra perdurou até a queda do regimen.

Por occastão do seu ministerio de 1885 Saraiva repetiu o que já uma vez dissera no Parlamento, que «a Corda exercia no-Brazil um poder absoluto igual ao que em França exercera Napoleão HI, com a differença que a lei facultava semelhante poder ao imperador dos Francezes, mas que não succedia, outrotanto, com o imperador do Brazil: o facto explicava-se todavia pela falta de liberdade eleitoral». —— E como o deputado republicano Campos Salles, testemunho vivo do contrario, lhe observasse que mesmo com a reforma do suffragio levada a cabo pelo chefe do gabinete de 1880 era possivel eleger camaras unanimes, o presidente do conselho respondeu que em tal caso a culpa cabia aos partidos, cuja corrupção permittia a dictadura imperial e que se regosijavam em conceder à Corôa o poder absoluto. «Si os partidos se alliassem com um fito elevado - ajuntava Saraiva — nenhum perigo haveria de ir a Corôa alem dos limites constitucionaes, pois é bem sabido que não entra nos habitos do Imperador constranger ou querer constranger quem quer que seja». Na verdade o monarcha possuia a regala constitucional de nomear e demittir livremente os seus ministros e livremente escolher os senadores nas listas triplices, mas na practica acabara por abandonar essas prerogativas e por adoptar a real interpretação do systema parlamentar. Os ministerios eram compostos de harmonia com os sentimentos da Camara, os presidentes de conselho formulavam sem restricções os convites aos seus collaboradores e a propria designação dos senadores tinha lugar de accordo com os gabinetes. Si por acaso o Imperador apressava o advento da opposição, é porque suas responsabilidades de arbitro dos partidos assim lh'o aconselhavam numa terra onde a mudanca de politica não resultava de uma escrupulosa verdade das urnas.

Tambem o Imperador podia ter e revelar preferencias de pessoas: o papel de moderador não exeluia o jogo humano das sympathias e das antipathias, mas a estas se antepunha a imparcialidade da sua missão constitucional. Quando por exemplo chamou os liberaes ao poder em 1878, obedeceu a um puro sentimento de justica. Alguns chefes conservadores como Rio Branco, Cotegipe, Inhomirim (Torres Homem) tinham-se pronunciado em favor da eleição directa e estavam promptos para apresentar a, respeetiva proposta. O Imperador declarou-lhes porem, que, no seu juizo, a honra competia aos liberaes, que tinham feito a propaganda da idéa e tinham solicitado a responsabilidade da mesma. A surpreza foi comtudo viva quando se viu o soberano confiar a organização do gabinete a Sinimbú, que era apenas vice-presidente do Club da Reforma, pondo à margem o sacerdos magnus Nabuco, politico prestigioso e chefe acclamado do partido. Nabuco não era, porem, alheio ao mundo dos negocios como advogado de companhias e de interesses financeiros, dos quaes Sinimbú se conservava a grande distancia: ora D. Pedro II queria absolutamente que a politica fosse tão immaculada quanto possivel.

Aliás não foi dado a Sinimbú realizar a reforma, que para elle envolvia materia constitucional, desde que penetrava na orbita dos direitos do cidadão garantidos pela Jei organica da nação. Na eleição indirecta ou de dois grãos votavam todos, para a escolha dos eleitores; o suffragio directo exigia até a qualificação de certa capacidade profissional ou pecuniaria. O imperador partilhava a opinião dos que, em vista da redueção do eleitorado, achavam que faltava a uma legislatura ordinaria auctoridade para alterar sua composição; ao tratar-se, porem, de convocação de uma Constituinte com poderes limitados à reforma, o gabinete dividiu-se, querendo o ministro da Fazenda, Silveira Martins, fazer vingar o principio da elegibilidade dos acatholicos, isto é, a extensão do direito de suffragio aos adeptos de outras religiões que não a catholica. Em consequencia esta divergencia, da pretenção do Senado de collaborar na reforma, embora de caracter constitucional, como quizera collaborar no Acto Addicional de 1834 — ponto de direito publico que fôra desde então discutido e resolvido —,e do compromisso assumido por Saraiva de consummar a reforma por meio de uma Jei ordinaria, o soberano confiou-lhe inopinadamente a tarefa. O Senado mettera-se abertamente a suscitar difficuldades, acabára rejeitando o projecto de lei de convocação de assembléa constituinte, mas do que sobretudo se valeu, o Imperador foi da impopularidade do gabinete Sinimbú, produzida pela repressão violenta das arruaças incitadas pela creação do imposto do vintem sobre as passagens nos bondes.

A idade d'ouro do regimen parlamentar brazileiro não data, como succede com o geral das lendas de civilização humana, do começo da sua evolução, e sim do meado da sua duração, quando o Parlamento já adquirira bastante consciencia do seu papel politico e do seu valor social para assimilar a opinião publica, ou melhor dito tomar o seu lugar; e ao mesmo tempo encontrava seu verdadeiro equilibrio constitucional na experiencia e sabedoria de um soberano que um representante da nova geração intellectual da Republica (9) retrata como «sceptico por não poder ser pessimista, visceralmente bom, honesto, sem nenhum esforço ou alarde, liberal por ser tolerante, tolerante por ser culto »>. Nos ultimos annos da monarchia, o systema chegara apparentemente á sua perfeita florescencia, pois que o Imperador não, pensava em resolver crise alguma parlamentar sem ouvir os presidentes das duas camaras e os chefes partidarios mais em evidencia; porem seu prestigio não se conservara intacto porque se marcara pela propria falta de muitos dos que delle viviam politicamente. De 1882 a 1885 a Camara dos deputados derrubou quatro ministerios, sobretudo por motivos da questão do elemento servil, mas o fosso ia-se cavando entre a representação nacional e o sentimento publico. Em 1871 o gabinete presidido pelo marquez de São Vicente (Pimenta Bueno)

(9) Vicente Licinio Cardoso, A' margem do segundo reinado, no Estado de São Paulo de 2 e 3 de Dezembro de 1925. retirou-se por causa da opposição da imprensa, como o declarou o homem d'Estado que dava semelhante exemplo de respeito à opinião, a qual já encontrava fóra do recinto parlamentar.

O parlamentarismo foi comtudo geralmente praticado no Imperio com honestidade e brilho sufficientes para deixar saudades do passado nos espiritos capazes de as alimentar e até para com elas abastecer uma corrente adversa à Republica presidencial, que trouxe comsigo uma aggravação do poder mode: rador restaurando-lhe as prerogativas pela consagração da inhuencia do executivo central sobre os organismos estaduaes, à dos quaes os mais pujantes fazem o papel dos grandes eleitores do sacro imperio romano. D. Pedro Il pensava, ao que parece (10), na possibilidade de modificar-se a Constituição imperial para transferir as attribuições do poder moderador, não para um presidente escolhido por conchavos de cardenes leigos inspirados pelo Espirito Santo das suas conveniencias, mas para um tribunal supremo que garantiria a fiel execução do systema federal reunindo poderes politicos aos poderes judiciarios. Sa O principe D. Luiz de Bragança, neto de D. Pedro II, escreveu num livro notavel de impressões de viagem na America do Dul, que «o jogo do parlamentarismo, assegurado por dois grandes partidos, revezando-se no poder, alcançou sob o governo de seu avô uma perfeição de que fóra da Inglaterra, debalde se hbusearia o equivalente». E a razão está em que a monarchia brazileira se desenvolveu sempre no sentido mais progressivo.

O principe a ella se refere com justiça e acerto como à «uma concepção politica grandiosa, habilmente modelada segundo as instituições britannicas, das quaes assimilou desde o inicio a elasticidade e a amplidão sustentada por uma pleiade de homens Estado eminentes e desinteressados, encarnada na pessoa de um soberano cuja vida domestica e publica nunca offereceu thema de commentarios à critica, e dando ao mundo o exemplo raro de um systema parlamentar que se encaminhava

(10) Salvador de Mendonça, 4 situação imtemucional da Brasil , e approximava do ideal entrevisto pelos seus fundadores ». Jiste escriptor mais do que nenhum outro competente para julgar instituições que representava como pretendente monarchico e interessado na sua publica discussão (1), é no emtanto o primeiro a pôr em relevo o erro capital do Imperio — erro bem perdoavel e que até se pode qualificar de meritorio — qual o de «preterir, para base da sua auctoridade, as idéas abstractas aos fundamentos naturaes que os ensinamentos do passado pudessem ter-lhe indicado ».

Recorda tambem o Principe D. Luiz que na sua opinião os annos de 1860 a 1870 assignalam o apogeu do regimen impenal e que depois de 1870 «o enfraquecimento gradual dos partidos. começado em 1853 e produzido nomeadamente pela grande seisão do grupo conservador, determinou uma decadencia rapida das instituições parlamentares. Multiplicaram-se as coteres; as ambições e os interesses pessoaes entraram a agir, e a vida politica da nação perdeu a magestade serena que até então a tinha caracterizado ». São aliás unanimes em verifical-o os mais notaveis publicistas do regimen. As famosas Cartas de Erasmo, cartas publicas dirigidas ao Imperador pelo mais celebre dos eseriptores da pleiade romantica brazileira, José de Mencar, faziam appello antes de 1870 á suprema auctoridade do throno, de que exaltavam a excellencia e o poder, para corrieir a confusão dos partidos e a anarchia das idéas, Não se passaria, porem, muito tempo sem que esse José de Maistre se revelasse menos ardentemente monarehista por um incidente pessoal (1º)

No conceito de Joaquim Nabuco nenhum periodo pode comtudo ser comparado ao da Regencia com relação ao sentimento elevado das coisas publicas e ao espirito essencialmente liberal. « Esses homens, diz elle no livro destinado a descrever o meio em que operou a actividade paterna, possuiam avaquella epocha outro caracter, outra solidez, outra rectidão; os prin-

(11) Sous la Croje du Sud, Barvig, 1912. (12) Vide capitulo sobre o Imperio e a ordem civil, cipios conservaram-se em toda sua firmeza e sua pureza; os ligamentos moraes que seguram e apertam a communhão estavam ainda fortes e intactos, e por causa disso, apezar do desgoverno, mesmo por motivo do desgoverno, a Regencia apparece como um grande periodo nacional, animado, inspirado por um patriotismo que tem alguma coisa do sopro puritano. Novos e grandes moldes se fundiram então. A nação agita-se, abala-se, mas não treme e não declina. Um padre tem a coragem de licenciar o exercito que fizera a revolução, apoz hatel-o nos seus reduetos e telo sitiado nos seus quarteis, sem fazer appello ao estrangeiro, sem bastilhas, sem espiões, sem alçapões por onde os corpos desapparecem clandestinamente, sem pór toda a sociedade incommunicavel, fazendo appello ao civismo e não a uma classe de paixões que tornam todo governo impossivel». Esses homens «revelando todos elles um grão superior de virilidade e energia, sentindo-se apenas incapazes de organizar o chaos, imtegros atê a medulla » foram os verdadeiros fundadores da nossa ordem civil.