CAPITULO XI
O Imperio e as idéas


Uma idéa occupa apaixonadamente e agita febrilmente toda a epocha do Imperio no Brazil — a idéa de liberdade. Federalista e republicano, o ideal democratico impoz-se successivamente a todas as gerações que surgiram, embora pela continuação o abandonassem, fosse pelo interesse das posições dependentes até certo ponto do throno, fosse pelo effeito de novas convicções nascidas da experiencia.

Chamou-se a isto pittorescamente o sarampo republicano.

A nascente era muito mais franceza do que americana. O snr. Franklin Jameson, director da American Historical Review ha bem pouco observava[1] que muito do que se attribue á influencia da revolução americana, foi antes devido a causas de alcance mundial, que operaram na Europa tanto quanto no Novo Mundo, com resultados perceptiveis em paizes mesmo que nada tiveram a ver com a revolução americana.

De 1822 a 1889 a monarchia foi a «cabeça de turco» dos publicistas. Quasi todos sobre ella experimentaram a força do pulso, com mais ou menos sinceridade, com mais ou menos talento. A propaganda anti-dynastica era feita pelos proprios monarchistas, quer dizer, pelos homens politicos que se diziam partidarios do regimen, posto que adversarios occasionaes do soberano. Os conservadores foram até os mais desapiedados.

O Libello do Povo encerrou a satyra mais cruel da Casa de Bragança, que o seu auctor quiz mostrar historicamente divorciada da nação. A Conferencia dos Divinos era um tecido de pungentes ironias contra o Imperador, obra de um espirito subtil até o sophisma. No Senado um orador tonitruante, especie de Danton alimentado de letras classicas, evocou a proposito da Princeza Imperial o espectro de Joanna a Louca. O Brazil copiara da Grã Bretanha o systema parlamentar e assimilara o seu espirito, mas sem aprender as boas maneiras inglezas. A França inundou o seculo e os dois mundos das suas doutrinas revolucionarias e das suas declamações emphaticas ou atrabiliarias. Ella foi mestra, guia e inspiradora em primeiro gráo.

O primeiro capitulo do Libello do Povo, em que se descreve o movimento liberal europeu de 1848 que o suggeriu principalmente, poderia ter sido redigido por um escriptor francez de merito litterario, que no emtanto fosse familiar não só com Chateaubriand, mas com Macaulay. A concepção napoleonica do Imperio, revolucionario e democratico nos seus principios basicos ainda que não nos seus processos auctoritarios, enche aquellas paginas e seduz as intelligencias d'aquelles que na monarchia encontravam a melhor solução para a crise que ameaçara comprometter para sempre os destinos do Brazil.

«Em virtude do principio da soberania do povo, a nação preferiu a monarchia como poderia ter preferido a republica de Franklin e de Washington; acclamou rei o primogenito da Casa de Bragança, como teria acclamado do Grão Turco si assim lhe aprouvesse. Esse rei era uma simples feitura das suas mãos; nenhum direito antigo e preexistente o assistia, pois tudo era novo, tudo datava da vespera n'essa situação; o solo estava desbravado e limpo; seu unico titulo de legitimidade provinha da eleição nacional, titulo aliás mais bello e mais honroso do que o conferido pelo cego acaso do nascimento; seu throno, contemporaneo da nossa liberdade, descançava sobre o mesmo fundamento que ella — a Revolução.»

Si os liberaes adeptos do regimen assim fallavam, de que linguagem se não serviriam os republicanos? Aliás o respeito da realeza, tão caracteristico da nação britannica, faltou sempre ao Brazil imperial: não existira mesmo em escala notoria no Brazil colonial. Houve seguramente cortezãos, isto é, pessoas que lisonjeavam o soberano e que deste modo procuravam promover seus interesses pessoaes, mas para o loyalism inglez não possue a lingua portugueza traducção ou equivalente. Conheceu-se, de 1831 a 1840, certa ternura para com o imperador-menino «pupillo da Nação»: na velhice e na adversidade, porem, quando occorreu o pronunciamento que o derrubou, D. Pedro II viu-se quasi só e abandonado. Os seus partidarios retrahiram-se e ninguem appareceu a tentar defender o throno de semelhante monarcha. Camara e Senado eclypsaram-se: o Senado, que era o cenaculo das summidades politicas, não ousou formular um protesto. Attingira-o a passividade do Senado romano na Roma dos Cesares.

As excepções individuaes foram reduzidas. Quando se fallava no «amigo do Imperador», apontava-se para o visconde de Bom Retiro, seu camarista e homem de cultura que á politica militante deu um brilho fugaz. O segundo marquez de Paranaguá, o mais calmo e sensato dos homens publicos, cuja familia era muito da roda imperial, foi nos ultimos tempos accusado de aulico, como Aureliano nos tempos que succederam á maioridade. O velho senador Fernandes da Cunha, enfermo e destituido de meios, condemnado á indigencia, recusou nobremente e com indignação a pensão concedida pelo Governo Provisorio aos senadores vitalicios em condição de pobreza e subitamente privados do seu subsidio. Nenhum teve o pensamento, menos ainda esboçou o gesto de congregar os fieis do passado. Estava-se geralmente de antemão convencido de que a nova ordem de coisas triumpharia e o Imperio desappareceria para sempre, tanto se havia mofado delle, escarnecido o seu pessoal, envilecido o seu principio essencial, infamado o Imperador nas pessoas dos seus antepassados, não sendo possivel fazel-o nas pessoas da sua esposa e das suas filhas, cuja compostura e virtudes exigiam uma veneração á qual só um louco ou um malvado se poderia esquivar.

Foi até moda, que só passou com a Republica, diffamar D. Pedro I e zombar o mais possivel do bom rei D. João VI, a quem o Brazil deve sua organização autonoma, suas melhores fundações de cultura e até seus devaneios de grandeza.

O Libello do Povo descrevia-o sob estes traços: «Falso e suspicaz, irresoluto e poltrão, beato sem fé e sem costumes, nababo de Inglaterra, joguete dos mais baixos e despreziveis favoritos, alheio a todo sentimento de dignidade pessoal e de honra nacional, patrono dos crimes e desordens de uma côrte corrupta — tal foi João VI, regente e rei».

De D. Pedro I mil coisas se inventaram, entre ellas uma deslealdade tão consummada que só parecia roubada aos tyrannetes da Italia da Renascença. Salles Torres Homem chegou a aventar que a vida de Radcliffe, um dos suppliciados politicos de 1824, foi arrancada á justiça por uma atroz mentira. «Sedento de vingança, escreveu elle, o principe invadiu o sanctuario da justiça para reclamar as cabeças dos seus subditos: insistiu, rogou, ameaçou, corrompeu; mas um resto de consciencia dos juizes, que o exercicio da obediencia e da adulação não paralyzara completamente, hesitou diante do remorso de mandar ao patibulo cidadãos que não tinham commettido outro crime senão o de preferirem seu paiz a um homem, e a liberdade á tyrannia. Compondo então, como Tiberio, o gesto e o rosto, fallou das attribulações da sua alma, exaltou sua propria clemencia, e reclamou a pena capital só para ter a gloria de commutal-a e dar aos seus filhos transviados uma prova da magnanimidade dos seus sentimentos. O embuste decidiu o juiz; a morte achou lugar na sentença; o traidor porem não perdoou; a forca trabalhou e a mancha indelevel e eterna do assassinato juridico de Radcliffe sombreou a fronte imperial...»

A inauguração, em 1862, da formosa estatua equestre de D. Pedro I, obra de Rochet, que adorna a antiga praça do Rocio no Rio de Janeiro, defronte do terraço do theatro de São Pedro d'Alcantara, primeiro de São João e agora João Caetano, onde D. João VI jurou a futura Constituição portugueza e o Principe Real figurou em mais de um acto importante da sua vida politica, forneceu a occasião para um rebentar de odio demagogico contra aquelle que cingira o diadema imperial ao mesmo tempo que proclamava a independencia do Brazil. Poetas como Pedro Luiz Pereira de Souza, depois ministro da Corôa, compuzeram as estrophes vibrantes da Terribilis Dea; homens politicos como Theophilo Ottoni recusaram representar duas assembléas legislativas de provincias, varias camaras municipaes e sociedades scientificas na cerimonia que tão grata devia ser ao sentimento filial de D. Pedro II e constituia um testemunho solemne da gratidão nacional; chegou-se a appellidar o monumento de «mentira de bronze». Theophilo Ottoni, que tinha o habito e o gosto das cartas publicas, explicou n'um desses manifestos aos seus patricios que a Independencia fôra o resultado dos esforços de mais de uma geração e não o effeito da munificencia do principe que lhe fôra até hostil a começo, e que não tardou depois a manifestar seus designios intimos de reunir de novo sobre a sua cabeça as duas corôas; que si os seus serviços naquella occasião foram equivocos, a sua outorga de uma Constituição foi nada menos do que espontanea, pois teve lugar sob a pressão revolucionaria do Norte; que semelhante estatua só se acharia bem em Portugal, onde D. Pedro IV luctou realmente em prol do regimen constitucional. Essa repetição da coroação de Ignez de Castro representava aos seus olhos o repudio do movimento de 1831, que conduzira á abdicação e á regencia. O sestro commum aos politicos brazileiros era deprimirem a monarchia e o monarcha, tanto no poder como fóra delle. Alguns chefes jactavam-se de nunca irem apresentar cumprimentos ao Imperador, evitando, no seu dizer, a atmosphera pestilencial do Paço.

Uma instituição aviltada pelos proprios que tinham por missão defendel-a não pode aspirar a viver prolongadamente. Em vez de inspirar confiança, acaba por suscitar desprezo. A primeira coisa que um partido fazia, quando apeado do mando, era injuriar o chefe do Estado e maldizer do regimen. Muito poucos conservadores e liberaes houve que se não tornaram culpados dessa falta de coherencia e de dignidade politicas. É verdade que numerosos muito embora e apparentemente arregimentados e disciplinados, os partidos politicos do Imperio acabaram por não ter opiniões arraigadas que os fizessem mover em sentidos diversos sob o impulso das mesmas idéas: o snr. Oliveira Vianna muito bem os definiu como «simples aggregados de clans organizados para a exploração em commum das vantagens do poder»[2]. Tocavam esta ou aquella tecla segundo a conveniencia do momento politico e entretanto só uma coisa tinham em mira: ganharem as eleições, uma vez empossados no mando, e formarem camaras unanimes ou quasi — como ainda a ultima da monarchia, sob o gabinete Ouro Preto —, apontando para ellas na qualidade de reflexos da opinião publica. Dahi o desdem do Imperador por essas maiorias esmagadoras e a explicação do seu proceder em 1868 e em 1878.

Quando D. Pedro II fez appello aos conservadores em 1885, Joaquim Nabuco escrevia: «Nem o Imperador nem sua familia distingue entre o partido conservador e a monarchia. A experiencia das outras casas reinantes não basta para separar n'essas cabeças coroadas entidades de facto diversas. Napoleão tambem não teria concebido o exercito francez como uma noção distincta da do Imperio. Entretanto monarchia e partido conservador são forças não só differentes, mas frequentemente oppostas. Os inimigos de uma instituição são, no sentido vulgar, os que a combatem, mas, no sentido preciso, os que a destroem. O parasita está longe de nutrir odio, deve mesmo nutrir amor pelo organismo de que se alimenta e que corróe. A monarchia não julga poder subsistir sem um partido conservador, mas este sabe que pode viver sem a monarchia. Em todo o mundo os soberanos vão-se e os partidos desapparecem. É mesmo duvidoso que a forma monarchica seja uma forma conservadora. A forma conservadora é a oligarchia, da qual a realeza é instinctivamente a inimiga. O Imperador comtudo está persuadido do contrario e bem surpreso ficaria si lhe dissessem que si a Republica viesse amanhã, os primeiros republicanos seriam os conservadores, porque a Republica constituiria o facto consummado, que elles adoram; a força, que elles veneram; os empregos e as posições». Joaquim Nabuco foi dessa vez propheta.

A compressão eleitoral sob que vivia politicamente o paiz, mercê das circumstancias, entre ellas a ausencia de antagonismo de classes que o snr. Oliveira Vianna menciona, portanto ausencia de uma lucta de interesses collectivos, era a negação pratica da liberdade que theoricamente a nação exaltava e para exercer a qual lhe faltavam em todo caso educação e capacidade, tendo o soberano que substituil-a na funcção reguladora do governo. A intervenção imperial deixava porem sempre descontente, azedo, irritado, o partido esbulhado do poder, e todos quantos viviam d'essa exploração politica, e actuava portanto n'um sentido demolidor das instituições. Por sua vez a federação, ligada de nascença á republica, não podia, mau grado a phraseologia de Joaquim Nabuco, ser um ideal monarchico. Era justamente considerado o correctivo da omnipotencia da Corôa.

Outra idéa fundamental da politica ou melhor dito da intelligencia brazileira foi o nacionalismo, reacção perfeitamente natural contra a sujeição colonial. Este nacionalismo inspirou a politica, tendo por principio opposto o estrangeirismo. Até 1848 pode mesmo dizer-se que foi vibrante e combativo. Tendeu depois a abrandar, deixando de ser aggressivo e passando sobretudo a impregnar as lettras, expressão, como deviam sel-o, do sentimento geral. Nunca, porem, se deixou sopitar pelo cosmopolitismo, que apenas poude affectar superficialmente os costumes. Um diplomata estrangeiro, Tietz, encarregado de negocios da Prussia, acreditado no Rio de Janeiro de 1828 a 1837, escreveu[3] nos seus relatorios officiaes que o brazileiro era hospitaleiro e bem disposto para com os forasteiros, mas que se resentia do que contra elle se escrevia de malevolo. Com outro qualquer povo aconteceria o mesmo, confundindo-se n'esse caso o nacionalismo com o patriotismo.

A imprensa foi o grande vehiculo das idéas no Brazil. Em parte alguma é sua influencia mais caracteristica e tem sido mais poderosa. Logo que se desencadeou fez a Independencia, como depois a abdicação, a abolição e por fim a republica, mais do que qualquer outro factor. Serviu de valvula á maçonaria e de porta-voz ao exercito. Theophilo Ottoni descreve nas seguintes palavras repassadas de vibração liberal o papel que coube aos jornaes no unico periodo de auctoritarismo monarchico, ainda assim relativo, posto que alcunhado de despotismo, que o paiz conheceu e que foi o reinado de D. Pedro I apoz a dissolução da Constituinte e durante a reacção anti-revolucionaria: «A causa da razão e da patria era desesperada; o despotismo parecia infallivel e a ignorancia persuadia não poucos brazileiros, porque não se achavam em contacto directo com o governo, que podiam esperar a calma do chaos do absolutismo. As phalanges da tyrannia avolumavam-se sensivelmente; mas por outro lado deputados, revestindo-se de coragem até defenderem do alto da tribuna nacional os direitos inauferiveis do povo soberano, tinham emprestado vigor á imprensa para combater a tyrannia. Desde então começou o rebate contra os traidores que nos opprimiam; os clarins da liberdade tinham conseguido muito, tinham despertado o povo do lethargo, tinham-lhe desvendado as perfidias do poder e a necessidade de abatel-o, tinham-lhe feito apreciar as doçuras da liberdade e o tinham levado assim a pegar em armas e deitar por terra o tyranno. Este resultado maravilhoso e quasi inesperado foi devido á surprehendente revolução que no espirito nacional operou a imprensa livre!»

A principio pessoal e chocarreira, a imprensa foi-se depurando na agitação crescente das idéas e depressa passou a discutir principios mais do que atacar reputações, n'uma forma geralmente cortez, si bem que nem toda primorosa, porque esta pertence aos mestres, mais doutrinarios do que partidarios. Nos ultimos tempos do Imperio Ruy Barbosa foi alem da linha, entrando pela «dilaceração impiedosa»[4] e contribuindo mais do que ninguem, com sua campanha do Diario de Noticias a derrubar o throno que Evaristo da Veiga salvara em 1831. Os extremos tocam-se e no circulo desenhado pela monarchia na evolução politica do Brazil, Ruy volveu á phase destruidora do primeiro reinado. Apenas, como dispunha de um formidavel talento, manejou uma ironia ferina em vez da aggressão frequentemente soez dos primeiros folicularios anti-dynasticos.

Ferreira de Araujo e Quintino Bocayuva foram os ultimos, no regimen passado, dessa escola em que foram corypheus Francisco Octaviano e Justiniano José da Rocha, nos quaes a urbanidade não excluia o vigor. «Ser moderado não quer dizer abster-se», escrevia Octaviano ao advogar a necessidade de partidos politicos representativos de idéas. Tambem Justiniano condemnou a conciliação partidaria emprehendida por Paraná porque achava-a na especie arriscada a converter-se n'uma burla e assim prejudicar as instituições; não porque fosse uma transacção, porque, sem ella, a reacção ultra-democratica poderia irromper irresistivelmente e abalar o edificio politico e social. E Justiniano era, como o definiu o snr. Nestor Victor[5], um pensador e sociologo do ponto de vista de Guizot, segundo o qual «nenhum principio chega a ter um desenvolvimento extremo, ao contrario do que aconteceu nas civilizações antigas e asiaticas», offerecendo deste modo a Europa muito maior riqueza de aspectos. O Brazil espiritualmente é, como toda America, um prolongamento da Europa. São as mesmas as idéas que se entrechocam no Novo Mundo. O pamphleto celebre de Justiniano — Acção, reacção e transacção — é uma synthese historica que o snr. Nestor Victor qualifica justamente de «equanime e serena», da historia constitucional do Brazil que ahi apparece como um trecho da cultura européa, segundo de facto o é.

  1. The American Revolution considered as a social movement, Princeton, 1926.
  2. O occaso do Imperio, S. Paulo, 1926.
  3. F. Tietz, Brasilianische Zustände. Nach gesandtschaftlichen Berichten, Berlim, 1839.
  4. Evaristo de Moraes, artigo sobre Francisco Octaviano, no Jornal do Brasil de 21 de Agosto de 1926.
  5. Conferencia sobre Justiniano, no Jornal do Brasil de 25 de Agosto de 1926.