Consistório do colégio dos jesuítas. — No fundo porta larga; à direita uma porta com grade de ferro; à esquerda portas de comunicação. — Vai escurecendo gradualmente.


CENA I

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JOSÉ BASÍLIO e ESTÊVÃO.

JOSÉ BASÍLIO (escrevendo.) – É escusado; nunca serei poeta! (amarrota o papel.)

ESTÊVÃO (entrando.) – José Basílio!

JOSÉ BASÍLIO – Ah! pensei que já me tinhas esquecido. Quinze dias!... Que fizeste todo este tempo?

ESTÊVÃO – Não vês em mim alguma mudança?

JOSÉ BASÍLIO – É verdade! Trazes farda e espada! Estás militar?

ESTÊVÃO – Desde ontem.

JOSÉ BASÍLIO – Assim, os teus sonhos de glória realizaram-se!

ESTÊVÃO – Os meus sonhos de glória e também os meus sonhos de amor.

JOSÉ BASÍLIO – Como foi isto? Conta-me; sabes que eu tenho direito, como teu amigo, à metade dessa ventura.

ESTÊVÃO – Lembras-te do dia em que tentaram prender o doutor Samuel? Pouco depois que me deixaste, Constança veio dar-me uma alegre esperança, e eu, ainda incrédulo, recusava abandonar-me à ela, quando de repente ouço a voz do conde de Bobadela, que vinha confirmar a minha felicidade.

JOSÉ BASÍLIO – Mas que tinha o Conde com o teu amor?

ESTÊVÃO – Não sabes? Constança é órfã e protegida pelo governador; ele consentiu que eu a amasse e deu-me esta espada para que enobrecesse o nome, que há de pertencer à minha esposa!

JOSÉ BASÍLIO – Como deves ser feliz!

ESTÊVÃO – Feliz! Não o sou completamente, José Basílio.

JOSÉ BASÍLIO – Por que razão?

ESTÊVÃO – Cuidas que posso ser indiferente à perseguição que se faz ao homem à quem devo tudo neste mundo? No meio de minha felicidade sinto um remorso por tê-lo abandonado, a ele, que me quer como um pai! Oh! só o amor e a glória podiam disputar-me à tão santa amizade.

JOSÉ BASÍLIO – Mas tu não o abandonaste, Estêvão. Algum dia tinhas de seguir uma carreira; aquela para que ele te destinou não te agradava; escolheste outra tão nobre e mais bela talvez!

ESTÊVÃO – Não avalias a dívida de afeição que contraí com esse homem, José Basílio; senão havias de compreender o que sinto. Ele não me alimentou o corpo unicamente; deu-me alguma cousa do seu espírito; e agora que talvez precisa dessa alma por ele criada para acompanhá-lo na desgraça, é quando ela foge-lhe e o deixa só! Não devo ter remorsos?

JOSÉ BASÍLIO – Por que não lhe falas?... Obterás dele o consentimento?

ESTÊVÃO – A isto vim hoje aqui; esperava encontrá-lo. Quero pedir-lhe perdão, e levar a sua bênção para santificar as minhas esperanças. Não o tens visto?

JOSÉ BASÍLIO – Apenas uma vez depois daquele dia.

ESTÊVÃO – Não sabes se ele costuma vir ao Colégio.

JOSÉ BASÍLIO – Todas as noites, se não me engano; mas é um segredo que surpreendi.

ESTÊVÃO – A que horas?

JOSÉ BASÍLIO – Logo que escurece. Acho bom que te dirijas ao Reitor.

ESTÊVÃO – Sim; Frei Pedro conhece-me; sabe como amo o doutor Samuel, e não me há de recusar! Ainda é cedo; tenho tempo de ir à Ajuda; hoje não vi Constança. Mas fala-me de ti, nada me disseste!

JOSÉ BASÍLIO – Que te hei de eu dizer?... Que sou feliz da tua felicidade!

ESTÊVÃO – E não tens também alguma esperança que se possa realizar?

JOSÉ BASÍLIO – Contento-me com a minha sorte, Estêvão, e deixo correr o mundo como Deus quer.

ESTÊVÃO – Que excelente gênio, o teu! Estás sempre alegre! Nada desejas, nada ambicionas.

JOSÉ BASÍLIO – Que queres, meu amigo? Quando perdi minha pobre mãe aos oito anos, fiquei ao desamparo; e estaria hoje feito tropeiro, ou tocador de porcos em Minas, se os padres de Mariana não me recolhessem. Vim depois para esta casa onde ensinaram-me o pouco que sei; aqui alimentam-me, agasalham-me e destinam-me para alguma cousa, segundo eles dizem! Que posso desejar mais?

ESTÊVÃO – Porém dize-me: às vezes não te sentes oprimido entre estas paredes nuas; não tens necessidade de respirar o ar livre, e gozar do mundo que vês de longe através das grades de tua cela?

JOSÉ BASÍLIO – Oh! sim! Há momentos em que este hábito queima-me o corpo; em que eu daria tudo que sei pela ignorância e liberdade do menino que brinca nas chácaras da Ajuda, embaixo do morro.

ESTÊVÃO – E que fazes então que não abandonas esta casa e não segues a tua aspiração?...

JOSÉ BASÍLIO – Que faço?... Nesses momentos peço a Deus que me dê a força de suportar este duro cativeiro, e para esquecer o que sofro, tomo uma pena e escrevo.

ESTÊVÃO – Fazes versos?

JOSÉ BASÍLIO – Aprendo a fazê-los. Não sei o que me diz... Mas... Olha, Estêvão; creio que algum dia escreverei alguma cousa.

ESTÊVÃO (sorrindo.) – Um poema?

JOSÉ BASÍLIO – Não sei.

(Entra Garcia furtivamente.)

ESTÊVÃO – É quase noite; até logo.

JOSÉ BASÍLIO – Já vais?

ESTÊVÃO – Pouco me demoro; é só vê-la!

CENA II

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GARCIA e DANIEL.

(Escurece. Garcia, apenas sai José Basílio, vai fechar as portas.)

DANIEL (com uma lanterna.) – Já está escuro.

GARCIA – Oh! Donde saiu esta figura?

DANIEL – Que faz nesta sala?

GARCIA – Caramba! Sou eu que lhe pergunto o que vem fazer.

DANIEL – Não é da sua conta.

GARCIA – Pois vá saindo por onde entrou; não gosto de companhia.

DANIEL – Menos eu! Dou-lhe cinco minutos para esvaziar o beco.

GARCIA – Cinco minutos! Passo aqui a noite!

DANIEL – Também eu! Durmo nesta sala.

GARCIA – Sabe que mais, hombre?... Estou quase atirando-o pela janela.

DANIEL – E eu tenho minhas tentações de coser-lhe a pele com esta agulha.

GARCIA – Pois caia, amigo.

DANIEL – Nada; fará barulho, e virá gente.

GARCIA – Hombre!

DANIEL (ao mesmo tempo.) – Escute.

GARCIA – Que temos?

DANIEL – Pode falar.

GARCIA – Nada; comece.

DANIEL – Queria propor-lhe um negócio.

GARCIA – Vamos a isso. (D. Juan aparece.)

DANIEL – Ambos nós temos necessidade de estar só neste lugar; se ficarmos, é claro que seremos dois!...

GARCIA – Sem dúvida!

DANIEL – É preciso pois que um saia!

GARCIA – Não serei eu!

DANIEL – Menos eu! Não há remédio senão recorrermos à sorte.

GARCIA – Como?

DANIEL – Tire a sua faca; eu tenho a minha; o que ferir primeiro fica, o outro sai.

GARCIA – Está dito.

CENA III

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DANIEL, GARCIA e D. JUAN.

D. JUAN – Com licença; há um terceiro.

GARCIA – O que quer?

DANIEL – Donde vem?

D. JUAN – Venho de alguma parte, e quero o que os senhores querem.

DANIEL – Ficar só nesta sala?

D. JUAN – Justamente; tenho cá as minhas razões, (tirando a espada) e melhor direito.

GARCIA – Não admito; foi o último que chegou.

DANIEL – Nós cá estávamos primeiro.

D. JUAN – Pois bem; recorro à sorte.

GARCIA (à Daniel.) – Deixe este por minha conta, que eu o arranjo; depois decidiremos nós.

D. JUAN – Em guarda! (Vão atacar-se, quando aparece Samuel.)


CENA IV

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DANIEL, GARCIA, D. JUAN e SAMUEL.

SAMUEL – Loucos!

GARCIA – O doutor Samuel!

SAMUEL – Abaixai essas armas, que não deviam estar em vossas mãos; pois somente servem para cometerdes um roubo barateando a vida que não vos pertence!

D. JUAN – Que não nos pertence?...

SAMUEL – A desses dois homens, eles a deram à uma causa justa e nobre; a vossa, comprei-a eu.

DANIEL – Perdoai-nos; cada um de nós ignorava que os outros tivessem ordem de esperar-vos, e não queria comprometer o vosso segredo.

SAMUEL – Quem recebe uma ordem obedece sem indagar o motivo dela, nem perscrutar as intenções de quem as deu; mandei-vos esperar aqui; cumpria-vos esperar, e nada mais.

D. JUAN – Não esqueçais que preciso falar-vos sem demora.

SAMUEL (a Garcia e Daniel.) – Afastai-vos um momento; deixai-me ouvir este homem.

D. JUAN – O Sr. doutor recomendou-me há oito dias que solicitasse do governador, ser admitido como soldado à sua guarda.

SAMUEL – E conseguiu, já sei.

D. JUAN – E que apenas a guarda se preparasse para alguma expedição, o avisasse.

SAMUEL – Então?

D. JUAN – Há ordem de marcha para esta noite.

SAMUEL – Com que fim?

D. JUAN – Ignora-se.

SAMUEL – Muito bem!

D. JUAN – Não precisais de mim?

SAMUEL – Não; na sala próxima encontrareis frei Pedro; ele vos pagará este serviço.


CENA V

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SAMUEL, DANIEL e GARCIA.

DANIEL (chegando-se.) – Cumpri vossa ordem. A moça bebeu em um copo d’água as gotas do frasco, e logo adormeceu; tomei-a nos braços e trouxe-a agora mesmo ao convento. Aqui tendes a chave da cela.

SAMUEL – Ninguém percebeu?

DANIEL – Creio que não, porque a envolvi na minha capa; .além disto já estava escuro, e só encontrei vosso filho.

SAMUEL – Estêvão?...

DANIEL – Descia a ladeira; pareceu-me que ia à sua casa.

SAMUEL – Ele esteve aqui?

GARCIA – Pouco antes de chegardes.

SAMUEL – Há de voltar. Podes ir, Daniel. (Sai Daniel.)

CENA VI

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SAMUEL e GARCIA.

SAMUEL – Garcia, tendes confiança em mim?

GARCIA – Experimentai.

SAMUEL – Se eu precisasse do vosso braço e da vossa coragem; se eu vos dissesse: — “É necessária a morte de uma pessoa” — Hesitaríeis?

GARCIA – Há muitos dias que desejava pedir-vos uma coisa. Sei que andais perseguido, que sois obrigado a esconder-vos. Mostrai-me o vosso inimigo, e amanhã ele não existirá.

SAMUEL – Há inimigos a quem é difícil chegar, porque estão mui altos.

GARCIA – Dizei-me o seu nome, e vereis. Qualquer que ele seja.

SAMUEL – Ainda que fosse o governador?

GARCIA – Ainda que fosse o rei.

SAMUEL – Não!... Seria um crime inútil. De que serviria ferir a mão desde que não esmagasse a cabeça?... Ele está muito longe; onde não chega o vosso braço.

GARCIA – Aonde?

SAMUEL – Em Portugal.

GARCIA – Ordenai, e parto.

SAMUEL – Careço da vossa coragem aqui neste momento. Não é nem contra o ministro poderoso, nem contra o governador, que deveis erguer o punhal; é contra uma menina fraca e tímida.

GARCIA – Ah! Uma mulher!

SAMUEL – Recusais?

GARCIA – Repugna-me matar quem não se pode defender.

SAMUEL – E se eu vos afirmar que a vida dessa menina responde pela minha e pela salvação de nossa causa?... que só o vosso braço pronto a feri-la pode suspender a sentença que me condena, ou vingar a minha morte?

GARCIA – Mostrai-me essa mulher.

SAMUEL – Estais decidido?

GARCIA – Podeis contar.

SAMUEL – A um aceno meu.

GARCIA – Fecharei os olhos e rezarei por sua alma.

SAMUEL (abrindo a grade.) – Entrai.


CENA VII

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SAMUEL e CONSTANÇA.

(Quando Garcia vai entrar, Constança sai, pálida, alucinada, com. os cabelos desgrenhados: Garcia para um momento, depois entra.)

CONSTANÇA – Onde estou eu?

SAMUEL – Tranquilizai-vos, minha filha; estais na casa de Deus.

CONSTANÇA (com desespero.) – Ah! Fostes vós que me arrancastes dos braços de minha mãe?...

SAMUEL – E não fostes vós que me roubastes meu filho?

CONSTANÇA – Estêvão?

SAMUEL – Por vossa causa não me abandonou ele no momento em que a desgraça pesava sobre mim, deixando-me só no mundo como uma velha ruína do passado?

CONSTANÇA – Bem sabeis que não posso viver sem ele!... que o amo?

SAMUEL – E eu não o amo também? Eu, para quem ele é mais que a existência, porque deve ser a minha segunda vida, uma nova encarnação de minha alma! O que é o vosso amor comparado ao meu? Um prazer efêmero, que não se compara com esse gozo supremo do espírito, que triunfa da morte e da destruição pelo poder da inteligência. Um sorriso basta para satisfazer o vosso amor; ao meu é preciso o futuro, e a imortalidade!

CONSTANÇA – Conheço que sou uma pobre mulher; não tenho a vossa inteligência; sei apenas amar com o coração...

SAMUEL – E que direito tendes de amá-lo?

CONSTANÇA – É preciso um direito para amar?

SAMUEL – Não sabeis ainda quem é Estêvão. É um filho que Deus me enviou para consumar a obra que comecei. A maior glória a que um homem pode aspirar neste mundo, a glória de ter criado um povo e elevado um império, será a sua recompensa. Ele deve ser mais do que um rei; deve ser o libertador de sua pátria. E agora interrogai o vosso coração e respondei: uma mulher, ainda a mais bela e a mais virtuosa, tem o direito de roubar essa existência consagrada à tão nobre missão?

CONSTANÇA – Roubar! Não!... Partilhar!

SAMUEL – Roubar, sim; porque um olhar vosso lhe fará esquecer a glória, e rojará a vossos pés como um escravo o homem que deve dominar pelo pensamento; porque ele gastará a seiva de sua vida e o melhor de sua alma em um sentimento comum que pode experimentar o ente mais miserável da sociedade; porque vossas preces hão de curvar aquela razão forte e superior que eu consumi tantos anos a formar!

CONSTANÇA – Oh! não compreendeis o coração de uma mulher, senhor! Não sabeis como ela vive da vida do homem a quem ama!

SAMUEL – Vós é que não compreendeis o culto de uma ideia! A religião da inteligência é como a religião de Cristo: só tem um Deus! Para os homens que se dedicam a um pensamento há uma única esperança, uma única ambição: a glória. De que lhes serve pois, o amor, consolação mesquinha daqueles cuja alma não passa do coração?

CONSTANÇA – Porém ele ama-me!

SAMUEL – Enganai-vos; Estêvão não vos ama!

CONSTANÇA – É impossível!

SAMUEL – O que Estêvão sente por vós é o mesmo que sentiria por qualquer outra mulher que tivesse visto no momento em que sua mocidade começou a expandirse; é o mesmo que sente o homem devorado de sede pela água que refresca-lhe o sangue, ou o animal pelo alimento que pode matar-lhe a fome.

CONSTANÇA – Oh! calai-vos, senhor!

SAMUEL – Quando os seus lábios tocarem os vossos, e o primeiro beijo o arremessar como o arcanjo da luz, do céu da imaginação à triste realidade, vereis o que restará disso que chamais amor. Um desgosto, o tédio, talvez o remorso!

CONSTANÇA – Vossas palavras enchem-me de horror!... Não blasfemeis! O amor não pode ser essa paixão egoísta!... Não! Eu o sinto aqui! Eu o sinto em minha alma! Ele vem de Deus, que o inspira e anima! Ele é nobre e santo como a religião que o consagra! Se não dá ao homem a glória que tanto ambicionais, dá a felicidade!

SAMUEL – Pois bem! Correi atrás dessa felicidade; deixai-vos amar por Estêvão; e um dia ele acordará nos vossos braços desse sono estéril, para esquecer-vos como um pesadelo! Que fareis quando a sua razão pedir-vos conta do tempo perdido, quando a vossa consciência perguntar-vos o que fizestes do apóstolo de uma causa santa? Correi atrás da felicidade, e achareis no fim do caminho o desprezo do vosso esposo e a maldição do Senhor.

CONSTANÇA (com desespero.) – Ah!

SAMUEL – Então reconhecereis que não blasfemo. (Pausa.)

CONSTANÇA – Que posso eu fazer? Inspirai-me, aconselhai-me! Eu vos obedecerei cegamente; mas não exigi de mim que deixe de amá-lo, porque é inútil! Mil juramentos que eu desse, uma só palavra dele os quebraria todos! Aceito qualquer sacrifício, menos o de esquecê-lo.

SAMUEL – E tereis força de repelir o homem a quem amais?

CONSTANÇA – Para que mentir-vos!... Ainda que o quisesse, não o poderia!

SAMUEL – Mas assim é preciso! Pela minha voz, Deus vo-lo ordena! Salvai Estêvão!

CONSTANÇA – Para salvá-lo só há um meio!

SAMUEL – Qual?

CONSTANÇA – Matai-me; ele ficará livre, e eu morrerei amando-o.

SAMUEL – A vossa vida é necessária neste momento!

CONSTANÇA – Que valor tem a vida de uma pobre mulher?

SAMUEL – Que valor tem a centelha que produz o incêndio? Os grandes efeitos nascem de pequenas causas; sobre vossa cabeça repousam neste instante os destinos de uma revolução. Deveis viver pelo menos algumas horas; e cumpre que esta noite Estêvão recupere a sua liberdade.

CONSTANÇA – Fazei que ele deixe de amar-me, que me repila.

SAMUEL (com brandura.) – Não; haveis de ser feliz!

CONSTANÇA – Oh!... Não me deis uma esperança para roubar-ma depois!

SAMUEL – A glória, o poder, a grandeza do homem amado não será a felicidade suprema da mulher que ama?

CONSTANÇA – Sim!

SAMUEL – Pois essa felicidade vós a tereis, Constança!

CONSTANÇA – Como? Falai!

SAMUEL – A Providência, minha filha, envia à terra de espaço a espaço alguns entes privilegiados, a quem ela comunica um raio de sua luz criadora; esses homens passam pelo mundo como meteoros; não tem família, nem amigos, nem afeições; devem caminhar só, envoltos em seu mistério, protegidos pelo seu destino. Deus só lhes deu de humano o corpo, que em luta com a razão, às vezes se revolta. O mundo julga que essas rebeliões da matéria contra a vontade que as domina são paixões! Não passam de desejos que consomem a carne, sem tocar o espirito! Sabeis o que deve fazer a mulher que teve a desgraça de amar um desses entes privilegiados?

CONSTANÇA – Não!... Se eu o soubesse!...

SAMUEL – Sacrifica-lhe todos os prejuízos da sociedade, entrega-se, e não pede em troca nem amor, nem gratidão.

CONSTANÇA – O que peço eu? Não sou sua esposa?!...

SAMUEL – Não podeis ser.

CONSTANÇA – Por que senhor?

SAMUEL – O gênio, já vos disse, não tem família, não tem esposa; ele colhe a beleza com vós colheis a flor; aspira o perfume e deixa-a murchar! Se a mulher que ama tem bastante coragem para amá-lo assim.

CONSTANÇA – Mas é a desonra que me propondes, senhor!

SAMUEL – Chamais a isso desonra? E que o seja! Resta-vos o orgulho e a felicidade de ter concorrido para uma grande concepção. O mundo repete o nome daquelas que se associaram às inspirações do gênio; a história, as artes, os monumentos recordam a sua memória, e nenhuma delas trocaria decerto a celebridade de sua vida e o reconhecimento da humanidade pela honra de uma esposa obscura.

CONSTANÇA – Essa ao menos não é obrigada a corar diante dos homens!

SAMUEL – Porque não tem a coragem necessária para o sacrifício! Mas vós a tereis, Constança.

CONSTANÇA – Nunca!

SAMUEL – É assim que amais Estêvão?

CONSTANÇA – Ele não pode querer a minha vergonha!

SAMUEL – Não é ele quem o quer; é a ordem providencial da natureza; é a sabedoria suprema, que não pode sujeitar a liberdade de um povo aos escrúpulos de uma mulher. Refleti bem; lembrai-vos que estais em meu poder; e que a inocência se empana com um sopro. Em uma hora a menina casta e pura estará perdida!... Então que fareis de vosso amor?

CONSTANÇA – Meu Deus, tende piedade de mim! É horrível!

SAMUEL – Escolhei!... Ofereço-vos a felicidade.

CONSTANÇA – Não tendes alma, senhor! Essa felicidade que me ofereceis é um suplício de humilhação.

SAMUEL – É uma abnegação sublime.

CONSTANÇA – Meu Deus!

SAMUEL – Escolhei! A glória de Estêvão, e a sua felicidade; ou o desespero que o matará odiando-vos, porque ele não pode ser vosso esposo, e não o será jamais! Que lhe respondereis quando em uma derradeira maldição, pedir-vos conta de seu futuro, de suas esperanças aniquiladas, de sua vida arrancada por esse amor fatal?...

CONSTANÇA – Estêvão odiar-me!... A mim que só vivo para amá-lo?... Ele morto? E por mim... e amaldiçoando-me no seu último suspiro?... Oh! não! Tomai a minha vida, a minha felicidade, tudo; e salvai-o. Eu morrerei à seus pés... mas a vergonha...

SAMUEL (brandamente.) – Fortalecei-vos na fé e tirai forças da religião, minha filha, para consumar o vosso grande e nobre sacrifício. Não temei o motejo dos homens e o desprezo do mundo. Mártir do amor como os outros mártires do cristianismo, sofrereis com a fronte calma o escárnio da multidão. Mas Deus verterá em vossa alma o bálsamo das grandes dores; fazendo a felicidade do homem a quem amastes, vos associareis à sua glória, à glória majestosa do fundador da pátria.

CONSTANÇA – Não me iludis, senhor?... É Deus quem exige de mim esse tremendo sacrifício? Deus, em cujo santo nome ensinaram-me a virtude!

SAMUEL (persuasivo.) – Quem foi, minha filha, que inspirou a Ester, à formosa filha dos judeus, a força de ganhar o amor de Assuerus, inimigo de sua religião e de seu povo, para aliviar o exílio e a perseguição que sofriam seus irmãos? Quem levou Judite à presença de Holofernes para oferecer-lhe a sua beleza e livrar sua pátria da vingança do rei de Babilônia? Falta-vos a coragem que elas tiveram?

CONSTANÇA (exaltada.) – Não; cumpra-se o meu destino. Venha o martírio.

SAMUEL – Jurai-o! (apresenta-lhe o crucifixo.)

CONSTANÇA – Juro!... (aproxima-se do altar e ajoelha-se.)


CENA VIII

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SAMUEL, CONSTANÇA e ESTÊVÃO.

SAMUEL – Estêvão! (Abre-lhe os braços.)

ESTÊVÃO – Que fizestes de Constança, senhor?

SAMUEL – Chamei-a para junto de mim; porque reconheci que era o meio de trazer o filho esquecido aos braços do pai que ele abandonou.

ESTÊVÃO – Tendes razão! Eu sou um ingrato! Mas... ela!... Onde está?...

SAMUEL – Olhai!

ESTÊVÃO – Constança! (Corre a ela.)

CONSTANÇA (com espanto.) – Meu Deus!

ESTÊVÃO – Que é isto? A minha presença te causa espanto!

CONSTANÇA – Não!... Porém...

ESTÊVÃO – O que tens?

CONSTANÇA – Deixe-me!... Por compaixão! Não me olhe! fuja de mim. (Afasta-se.)

SAMUEL (à Constança, baixo.) – Lembrai-vos do juramento!

ESTÊVÃO – Tu me repeles, Constança? Já não me amas? (Samuel passeia no fundo.)

CONSTANÇA – Oh! se o amo!

ESTÊVÃO – E não me queres perto de ti?

CONSTANÇA – Pudesse eu passar toda a minha vida ao seu lado, como agora.

ESTÊVÃO – Pois vem comigo; estamos em uma igreja; ajoelhemo-nos aos pés do altar; um padre abençoará a nossa união; e...

CONSTANÇA – É impossível!

ESTÊVÃO – Recusas?

CONSTANÇA – Não me interrogue.

ESTÊVÃO – Então não queres ser minha esposa?

CONSTANÇA – Serei sua esposa no céu, meu amigo! Mas neste mundo...Não!... Deus não consente!

ESTÊVÃO – Confesse antes que esse amor com que me iludiu era uma mentira... Que escarneceu de mim!

CONSTANÇA – Estêvão!

ESTÊVÃO – E eu que lhe sacrificava tudo; que fizera dela a minha vida, a minha glória, a minha religião!

CONSTANÇA – Oh! não fale assim! Que maior prova pode dar uma mulher de seu amor e de sua dedicação por um homem?

ESTÊVÃO – É partilhar a sua existência.

CONSTANÇA – Há outra mais forte! Outra para a qual é preciso tanto heroísmo e tanta abnegação que eu tenho medo me falte a coragem.

ESTÊVÃO – Que prova é essa, Constança?... Responde!...

CONSTANÇA – Não sei!

ESTÊVÃO – Compreendo! Procura um pretexto, e não o consegue, Constança, porque ainda não sabe mentir. Adeus.

CONSTANÇA – Quer deixar-me?

ESTÊVÃO – Que faço eu aqui?

CONSTANÇA – Ouça-me, Estêvão!

ESTÊVÃO – É inútil.

CONSTANÇA – Eu lho suplico!... Escute-me! Uma palavra! E repila-me depois!

ESTÊVÃO – Que quer de mim ainda?

CONSTANÇA (alucinada.) – Não sabe por que eu não posso ser sua esposa? Tem um futuro brilhante, Estêvão, tem um grande destino a cumprir! Aquela que o ama não deve roubar-lhe essa glória! Ela tem orgulho em ser sua escrava.

ESTÊVÃO – És tu mesma que me falas, Constança! São teus lábios puros que proferiram semelhantes palavras! Não! Não creio! Dize-me! Dize-me que tudo isto é uma alucinação do teu espírito! Que deliras!... Escondes o rosto!... Ah!

CONSTANÇA (arrastando-se a seus pés.) – Oh! não me despreze!

ESTÊVÃO – Erguei-vos, senhora; eu amava uma menina pura, e contava fazê-la a companheira de minha vida; não conheço a mulher que me oferece um amor indigno. (Sai.)

CONSTANÇA – Ah!

SAMUEL – Estêvão!

CONSTANÇA – Eu bem vos disse que ele me desprezaria!

SAMUEL – Voltará!... Vinde!


CENA IX

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SAMUEL e FR. PEDRO.

FR. PEDRO – Samuel, o convento está cercado.

SAMUEL – Em que vos admira isto? Não é hoje treze de novembro, véspera do dia fatal?

FR. PEDRO – Que devo eu fazer?

SAMUEL – Nada. Eu incumbo-me de salvar-vos. Tranquilizai-vos!

FR. PEDRO – O perigo não me assusta, Samuel; porém ainda duvido que as vossas previsões se realizem. O marquês de Pombal, com toda a sua audácia, não se animava a ofender o poder de Roma.

SAMUEL – Não o ofendeu, frei Pedro, comprou-o. Roma já foi a rainha do universo; hoje é apenas uma messalina que se vende ao ouro do estrangeiro.

FR. PEDRO – Contudo! O Instituto não podia ser indiferente.

SAMUEL – O tempo em que o Instituto lutava com o Papa e os soberanos passou; os gerais Santo Inácio de Loyola, Francisco de Bórgia e Cláudio Acquaviva não tiveram sucessor. (Ouve-se bater fora.)

FR. PEDRO (assustado.) – Batem à porta do convento!

SAMUEL – Mandai abrir, e reuni a comunidade para receber dignamente o conde de Bobadela, que vem intimar-vos a sentença de proscrição.

FR. PEDRO – Não vos ocultais? Quereis que o governador vos surpreenda?

SAMUEL – Ficai descansado a meu respeito; não o temo.

FR. PEDRO – Se cairdes em seu poder, estais perdido!

SAMUEL – Tenho um escudo no qual se embotará a sua espada! (Entra à direita e fecha a grade.)


CENA X

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FR. PEDRO, CONDE DE BOBADELA, MIGUEL CORREIA, JOSÉ BASÍLIO, FRADES e SOLDADOS.

(Apenas Samuel desaparece, vai se reunindo a comunidade. Os frades acendem as velas dos lampadários que estão sobre os bufetes. O sino dobra lentamente.)

FR. PEDRO – Quem vos deu o direito, senhor governador, de penetrar com força armada na casa de Deus?

CONDE – O meu direito é o meu dever; cumpro uma ordem d’El-Rei!

FR. PEDRO – Sua Majestade D. José I, não podia esquecer o exemplo de seus avós; para quem o templo do Senhor foi sempre um asilo sagrado.

CONDE – Quando a hipocrisia e a falsidade se cobrem com o hábito da religião e se abrigam aos pés do altar, o rei deve expulsá-las do templo onde só pode entrar a virtude.

FR. PEDRO – Falais dos companheiros de Jesus, senhor governador?

CONDE – Falo da Ordem rebelde e ambiciosa, que, traindo o instituto do seu fundador e a santidade de sua missão, abusa da hospitalidade que lhe concederam os reis de Portugal e do poder que eles lhe conferiram em bem da religião, para conspirar contra a majestade.

FR. PEDRO – Não sois vós, senhor governador, nem os reis da terra que nos hão de julgar. Aquele que tudo vê e tudo sabe, conhece a nossa inocência.

CONDE – A sua punição vai cair sobre vossas cabeças. O convento está cercado; tenho-vos a todos em meu poder; nenhum me escapará!

FR. PEDRO – São escusadas essas precauções; nenhum dos que vedes aqui, ministros da religião, abandonará a casa do Senhor, onde o seu dever lhe manda que permaneça.

CONDE – Para guardar as riquezas que tendes acumulado nos vossos cofres!...

FR. PEDRO – A riqueza que possuímos é uma consciência tranquila.

CONDE – Faltais à verdade, Reitor. Neste convento existe um tesouro avultado, que tantas lágrimas custou aos órfãos e às viúvas de quem o extorquistes.

FR. PEDRO – Os objetos de valor que existem nesta casa são os vasos e as sagradas imagens que servem ao culto do Senhor.

CONDE – Dizei antes que servem para conspirar. Mas iludiram-se! A Providência vela sobre o trono de Portugal e sobre o ministro poderoso que o defende contra a vossa audácia. Ordeno-vos que me entregueis esse tesouro.

FR. PEDRO – É um segredo, senhor, e eu o ignoro.

CONDE – Não espereis enganar-me.

FR. PEDRO – Juro pela salvação de minha alma.

CONDE – Não creio em juramentos de quem ensina que é uma virtude mentir.

FR. PEDRO – Disse a verdade, Sr. conde.

CONDE – Se vós, reitor deste convento, não sabeis o segredo, quem o sabe então? (A porta larga do fundo abre-se e aparece o Dr. Samuel vestido de jesuíta.)


CENA XI

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SAMUEL, CONDE, FR. PEDRO e SOLDADOS.

SAMUEL – Sabe-o Deus no céu, e eu na terra, conde de Bobadela! ( Batendo no peito) Arrancai-o daqui, se podeis.

CONDE – Ah! enfim!... Deixastes o disfarce!

SAMUEL – Venho reclamar o meu lugar, como chefe desta família, que o Senhor confiou à minha guarda.

FR. PEDRO – Quem sois, então, Samuel?

SAMUEL – Sou o vigário-geral da Companhia de Jesus no Brasil.

FR. PEDRO – Vós! Não é possível!

SAMUEL – Lede. {Dá-lhe um pergaminho.)

CONDE – Pensais iludir-me ainda com a vossa impostura?

SAMUEL – O rei de Portugal e os príncipes da cristandade falam-nos de pé e com a cabeça descoberta. Tirai o vosso chapéu, conde de Bobadela!

CONDE – Hei de humilhar a vossa arrogância; todo o poder da ordem não vos salvará. Revelai o segredo de que sois sabedor, ou entregar-vos-ei ao braço secular, como rebelde e desobediente às ordens régias.

SAMUEL – Estou habituado a ver a morte de perto! Apóstolo da milícia de Cristo, nos desertos desta América e entre os selvagens, só e sem armas, também aprendi a encarar o perigo, como vós, soldado do rei, nos campos da batalha. O martírio não me assusta. Podeis mandar preparar o suplício: mas ficai certo de que a mão do algoz tocando-me vai ferir-vos no coração!

CONDE – Nunca sentirei remorsos de haver punido os inimigos da religião; não tenho coração quando se trata de cumprir um dever.

SAMUEL (com ironia) – Exigis de mim um segredo, Sr. governador; eu o revelarei, mas quando estivermos sós.

CONDE (para os soldados) – Afastai-vos!

(Saem os frades e os soldados.)


CENA XII

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SAMUEL e CONDE DE BOBADELA.

CONDE – Falai; estamos sós.

SAMUEL – Quando aludi ao vosso coração, senhor conde, não me referia ao fidalgo, nem ao governador; mas ao pai que não pode ser indiferente à perda de uma filha.

CONDE – De uma filha!

SAMUEL – Bem vedes; este único nome vos estremece.

CONDE (imperativo) – O segredo?

SAMUEL – O segredo? É este. Todo o homem, ainda o mais forte, tem na sua vida um momento de fraqueza. Há dezesseis anos amastes uma donzela, Sr. conde de Bobadela; por vós traiu ela, seus deveres, abandonou sua família. Vossa indiferença depois a castigou cruelmente; o vosso desprezo a matou. Ela morreu, deixando-vos uma filha que adorais com a paixão veemente e profunda do pai que é obrigado a ocultar seu amor.

CONDE – Como soubestes este segredo?

SAMUEL – Como?... O poder da Companhia de Jesus repousa sobre a consciência, onde não penetram nem as armas dos vossos soldados, nem o braço dos vossos esbirros. Aos pés do humilde confessionário, que lhe serve de trono, nenhum cortesão da realeza vem depor a torpe lisonja; todos se prostram, grandes e humildes; todos lhe abrem sua alma. O que ela ouve é a voz da verdade, o grito do coração que lhe denuncia quanto crime impune, quanta miséria dorme às vezes no passado de homens reputados bons e virtuosos.

CONDE – Ah! Abusastes do segredo da confissão! E tendes a impudência de o declarar? Vós, ministro do Senhor, traístes o seu sacramento.

SAMUEL – Usei do poder que ele me confiou para “maior glória de Deus”. Tendes uma ordem do marquês de Pombal que manda prender os jesuítas e expulsá-los do Brasil no dia quatorze de novembro. Hoje são treze; eu vos esperava, senhor governador, eu vos esperava, para dizer-vos que essa ordem não se há de cumprir.

CONDE (com ironia.) – Quem o obstará? Vós?...

SAMUEL – A Providência, que armou o meu braço para punir-vos, se ousardes tentar contra a companhia de Jesus.

CONDE – Insolente!

SAMUEL (aponta para o interior.) – Vede!

CONDE – Constança! (espanto)

SAMUEL – É vossa filha sim, que ali está adormecida. Aquele homem que a contempla apertando o cabo do punhal, é um autômato, instrumento cego de minha vontade.

CONDE – É um infame assassino, como vós que lhe armastes o braço.

SAMUEL – Prudência! Ao menor movimento, vossa filha, deixará de existir. Não vedes que uma barreira vos impede o passo, e que há maior distância entre vós e ela, do que entre o punhal e seu corpo?

CONDE (consigo.) – Que horrível transe!

SAMUEL – Curvai-vos à fatalidade!... Fostes vencido por Deus!

CONDE (num assomo de ira.) – Oh! Eu a salvarei! Ainda que seja preciso matar-vos com as minhas mãos, e roubar-vos ao patíbulo! (Ergue o punhal para Samuel.)

CONSTANÇA (dentro.) – Ah!

CONDE (recuando.) – Constança! Ele a assassina!... O miserável!...

SAMUEL – Porque hesitais!... Podeis martirizar-me a carne; mas eu tenho fechada em minha mão a vossa alma. (Pausa)

CONDE – Que pedis? A liberdade?

SAMUEL – Nada peço, conde de Bobadela. Exijo que não executeis a ordem de proscrição.

CONDE (com dignidade.) – Feriste-me no coração, sicário! Mas o coração, tu o disseste, é do pai que não está mais aqui. Esse que vedes, jesuíta, é o conde de Bobadela, governador deste Estado. Ordeno-vos que entregueis o tesouro da Companhia; e dou-vos esta noite para cumprirdes a minha ordem.

SAMUEL – Esta noite, dou-vos eu, conde de Bobadela, para refletir.

CONDE (imperativo.) – Ao primeiro toque d’alvorada aqui estarei.

SAMUEL (com altivez.) – Eu vos espero.