Quadro 8
editarUma praça no arraial. Ao fundo, à esquerda, capela, e ao lado desta, ao fundo, à direita, um coreto onde se acha a banda de Carrapatini com este em evidência. Os três primeiros planos da esquerda são ocupados pelo barracão onde se improvisou o teatro. À porta desse barracão cartaz com o seguinte letreiro em caracteres graúdos: “Teatro, hoje! segundo espetáculo da grande Companhia Dramática Frazão, da Capital Federal. Representação da sublime peça em cinco atos O Poder do Ouro, do festejado escritor Eduardo Garrido. O papel de Joaquim Carpinteiro será representado pelo popularíssimo ator Frazão. “À direita baixa, coreto do leilão, sendo leiloeiros Frazão e Margarida. A cena está cheia de povo. Há diversos jaburus, rodeados por jogadores. Aqui e ali vêem-se pretas sentadas com tabuleiros de doces. Da capela saem de vez em quando devotos e devotas, anjos com cartuchos de doces etc.
CENA I
editarFRAZÃO, MARGARIDA no coreto do leilão ou império, CARRAPATINI e os músicos no coreto da música, VILARES, COUTINHO, FLORÊNCIO, ISAURA, foliões, povo, jogadores, vendedores de doces, depois CHICO INÁCIO e a MADAMA
Coro Geral
Que bonita festa
Do Espírito Santo!
Tudo causa encanto!
Tudo faz viver!
Sim, ninguém contesta:
Não nos falta nada
Nesta patuscada
Que nos dá prazer!
(Vendo Chico Inácio, que sai da capela, trazendo a Madama pela mão.)
Sai da capela seu Chico Inácio,
Acompanhado pela Madama!
Provou seu Chico não ser pascácio:
A sua festa deixará fama. (Declamando.)
Viva o imperador Chico Inácio! Viva a Madama!
(Chico Inácio e a Madama chegam ao proscênio agradecendo por gestos.)
Coplas
CHICO INÁCIO — Estou muito satisfeito!
MADAMA — Considero-me feliz!
CHICO INÁCIO — Imperador estou feito!
MADAMA — Estou feita Imperatriz!
Em plena democracia...
CHICO INÁCIO — Tem ali o seu sabor...
MADAMA — Ser imperatriz um dia!
CHICO INÁCIO — Ser um dia imperador!
AMBOS — Que toda a gente
Cumprimente
Este casal imperial
Que tem um trono refulgente
Do Pito Aceso no arraial!
CORO — Que toda a gente, etc.
II
MADAMA — O imperador do Divino
Ninguém poderá dizer
Que tenha o mesmo destino
Do imperador a valer...
CHICO INÁCIO — Mais parece o presidente.
Porque o presidente sai...
E pro lugar inda quente
Outro presidente vai!
AMBOS — Que toda a gente
Cumprimente, etc.
CORO — Que toda a gente, etc.
FRAZÃO (No império, apregoando.) — Agora, a última prenda, meus senhores!
MARGARIDA (Idem.) — Um frango assado!
FRAZÃO — Quanto dão por este perfumado frango? Quanto? Tenho um cruzado...
VILARES — Dois cruzados!
FRAZÃO (Idem.) — Dois cruzados! Dois...
MARGARIDA (Idem.) — Quem mais lança?
FRAZÃO (Vendo que ninguém mais lança.) —Dou-lhe uma. Dou-lhe duas. Dou-lhe três... É seu o frango.
VOZES DO POVO — Venha um verso!
FRAZÃO (Enquanto Vilares recebe o frango e paga.)
— Todo sujeito casado
Deve ter um pau no canto
Para benzer a mulher
Quando estiver de quebranto.
TODOS (Rindo.) — Bravo! Bravo!
MARGARIDA (A Carrapatini.) — T oca a música, seu Carrapatini!
CARRAPATINI (A Margarida.) — No bisogna prevenire! Giá lo sapeva... (A música toca um pequeno motivo. Frazão e Margarida descem do coreto, onde imediatamente começam a armar o império.)
CHICO INÁCIO — Ó minha senhora! Meu caro Frazão! Não sei como agradecer-lhes o terem aceitado os lugares de leiloeiros do Divino.
FRAZÃO — Não tem que agradecer, seu Chico Inácio. A Companhia Frazão é que está penhorada pela maneira por que foi recebida pelo chefe político do Pito Aceso.
CHICO INÁCIO — A Companhia Frazão mostrou-se na altura dos seus créditos. O primeiro espetáculo, anteontem, foi um sucesso sem precedentes. O segundo anuncia -se para hoje com outro sucesso igualmente sem precedentes.
MADAMA — Estou satisfeita porque fui eu que tive a idéia de mandar contratar a companhia.
OS TRÊS (Que ouviram, aproximando-se da Madama) — Ah! Foi a Madama?
MADAMA (Cumprimentando-os, muito satisfeita.) — Fui eu.
CHICO INÁCIO — Foi ela. Aqui para nós, que ninguém nos ouve: (Chama-os por gestos para um segreda) A Madama é uma antiga colega dos senhores.
ATORES — Uma antiga colega?
CHICO INÁCIO — É verdade! Em 1879, quando eu fui ao Rio de Janeiro pela última vez, vi Madama representar numa companhia francesa que trabalhava no Cassino Franco-Brésilien.
MARGARIDA — Onde era isso?
FRAZÃO — Onde é hoje o Santana. Tu ainda não eras gente.
CHICO INÁCIO — Representava-se Les Brigands.
MADAMA (Cantando) — C’est Fiorella la blonde, etc.
CHICO INÁCIO — É isso... Ela fazia uma das pequenas que se deixam roubar pelos salteadores. Uma noite, depois do espetáculo, eu fiz como Falsacapa: apoderei-me dela; fomos cear no Bragança...
MADAMA — E nunca mais entrei no teatro.
MARGARIDA (Dando um pequeno tapa na pança de Chico.) — Gostou, hein?
CHICO INÁCIO —Gostei. Gostei tanto que a trouxe comigo para o Pito Aceso, e dois anos depois estávamos ligados pelos indissolúveis laços do himeneu. Entretanto, impus uma condição...
MADAMA — E eu aceitei-a avec plaisir.
CHICO INÁCIO — Se algum dia me aparecer minha filha... Uma filhinha que eu... justamente em 1879... mas isto são particularidades que não os interessa. (Outro tom) Já vêem que é uma antiga colega.
FRAZÃO (A Madama.) — Filha, dá cá um abraço. (Abraça-a.) Tiveste a fortuna de encontrar o teu Pato... (Emendando) quero dizer o teu Pito.
MADAMA — Aceso.
FRAZÃO — Isto é uma coisa de que nem todos se podem gabar.
MARGARIDA — É muito difícil encontrar um Pito, mesmo apagado.
MADAMA — O que eu sinto é que não estejam bem acomodados.
VILARES — Não diga isso. Deram-nos os melhores quartos da casa.
FLORÊNCIO — E a casa é um casão.
COUTINHO — Mais gente houvesse que ainda chegava.
ISAURA — Ainda não moramos num hotel que tivesse tantas comodidades.
COUTINHO — Nem tão barato!
UM JOGADOR — Jaburu! Olha o joguinho do caipira! Quem mais bota mais tira! (A Bonifácio, que está no Jaburu.)
CHICO INÁCIO — Ó Bonifácio!
BONIFÁCIO (Vindo.) — Às ordes.
CHICO INÁCIO — Esse cateretê ficou pronto?
FRAZÃO — Olá! Temos cateretê?
BONIFÁCIO — É uma festinha que a gente fumo fazê em casa da Rosinha da Ponte. Eu inda tou vestido de arfere da bandeira. A coisa fico bem ensaiada. Se mêceis quê uma nota, eu chamo os folião.
TODOS — Sim... queremos... chame...
BONIFÁCIO (Chamando.) — Eh! Ó Manduca! Entra aqui no cateretê prestes, home vê! Ó Tudinha! (Chama. Entra Tudinha.) Ó Totó! Bamo co isso! Ó Chiquinha! Ó Zeca! Nhô Tedo! Nhô Tico! Nhá Mariana! Venha tudo! (As pessoas chamadas aproximam-se e formam uma roda. Bonifácio, ao ver formada a roda.) Ó mundo aberto sem portera! Cateretê
I
BONIFÁCIO — Vancê me chamou de feio;
Eu não sou tão feio assim.
Foi depois que vancê veio
Que pegô feio ne mim.
FOLIÕES — Neste mato tem um passarinho, ai,
Passarinho chamado andorinha, ai,
Andorinha avoou agorinha, ai,
Deixou os ovo chocando no ninho.
CORO GERAL — Neste mato tem um passarinho, ai, etc.
II
BONIFÁCIO — Não quero mais namorá
A filha do barrigudo.
Não quero que o povo diga
Que eu tenho cara pra tudo.
OS FOLIÕES — Neste mato, etc.
CORO GERAL — Neste mato, etc.
BONIFÁCIO — Pronto. Tá í.
TODOS (Aplaudem.) —Bravo! Bravo! (Os foliões dispersam-se à vontade.)
CHICO INÁCIO — Bem, os senhores hão de me dar licença. Tenho que me vestir de imperador para sair no bando.
FRAZÃO — O senhor vestido de imperador? Pois não é um menino?
CHICO INÁCIO — Não. A moda daqui é à antiga. Sou eu mesmo que vou vestido.
MARGARIDA (Olhando para dentro.) — Olhem quem ali vem. O Coronel Pantaleão.
FRAZÃO — O coronel Pantaleão?
TODOS — Sim. É ele! É ele!
ISAURA (À parte.) — Veio atrás da Laudelina. Dá Deus nozes...
CENA II
editarOS MESMOS e CORONEL PANTALEÃO
(Entra o coronel Pantaleão montado num burro e desce ao proscênio. Os circunstantes aglomeram-se em semicírculo.)
Coro
É ele! É ele! É o genuíno!
É o coronel Pantaleão,
Quem vem à festa do Divino
Por ser de sua devoção!
Rondó
PANTALEÃO (Montado no burro.)
— Eu, por chapadas e atoleiros,
Aqui vim ter, e dez cargueiros
Com os acessórios, vestuários,
E maquinismos e cenários
Do meu encaiporado drama,
Que uma desforra enfim reclama,
Porque, por infelicidade,
Não passou nunca da metade.
Um meio autor eu sou apenas!
Para aplacar as minhas penas,
Eu por chapadas e atoleiros,
Aqui vim ter com dez cargueiros!
CORO — Com dez cargueiros! Dez cargueiros!...
É ele! É ele! É o genuíno!
É o coronel Pantaleão,
Quem vem à festa do Divino
Por ser de sua devoção!
CHICO INÁCIO — Ó meu caro coronel Pantaleão Praxedes Gomes! Apeie-se.
PANTALEÃO (Apeando-se.) — Seu Chico Inácio! Madama! Meus senhores!
CHICO INÁCIO — O senhor por aqui. Grande honra.
PANTALEÃO — Vim ver a sua festa. (A Frazão.) Preciso falar-lhe.
FRAZÃO — Recebeu os vinte e cinco mil réis?
PANTALEÃO — Recebi. Não se trata disso.
CHICO INÁCIO (A Bonifácio.) — Ó Bonifácio! Recolhe o burro do coronel.
PANTALEÃO (Voltando-se.) — Como?
CHICO INÁCIO — Estou mandando recolher o seu animal, porque sei que o amigo vai para nossa casa.
BONIFÁCIO (Saindo com o burro.) — Bamo, patrício. (Sai.)
MADAMA — Para onde havia de ir?
PANTALEÃO — Mas é que vieram comigo mais dez cargueiros que estão ali do outro lado da ponte. São os cenários do meu drama.
ATORES — Quê! Pois trouxe?
PANTALEÃO — Não quero perder a vasa. (sic)
CHICO INÁCIO — Providencia -se já! (A um do povo.) Eustáquio! Vá doutro lado da ponte e diga ao arrieiro que descarregue os cargueiros na casa da Câmara. Se a chave não estiver na porta, está em casa da Chiquinha Varre-Saia. (O homem do povo sai correndo.)
PANTALEÃO — É muita amabilidade.
CHICO INÁCIO — Vamos até à casa, seu coronel.
MADAMA — Vou mostrar-lhe o seu quarto.
CHICO INÁCIO — Eu tenho que me vestir de imperador. (Aos artistas.) Até logo.
PANTALEÃO (Saindo, a Frazão.) — Preciso falar-lhe. (Sai com Chico Inácio e Madama.)
CENA III
editarFRAZÃO, VILARES, MARGARIDA, FLORÊNCIO, ISAURA, COUTINHO, depois VIEIRA
FRAZÃO — Pois não se meteu em cabeça este idiota de fazer montar aqui a tal bagaceira...
ISAURA — O que ele quer montar sei eu...
VILARES — Livra! Não venha ele trazer-nos a caipora. Por enquanto vamos tão bem!
MARGARIDA — É verdade! Fomos de uma felicidade inaudita.
FLORÊNCIO — Há muito tempo que não víamos tanta gente no teatro.
VILARES — Nem tanto dinheiro!
COUTINHO — E que entusiasmo!
FRAZÃO — Teatro é um modo de dizer. Olhem para aquela fachada. (Aponta o barracão.)
VILARES — E o palco?
FRAZÃO — Não subo nele sem recear a todo o momento que as barricas venham abaixo.
MARGARIDA — E a repetição do primeiro ato?
FRAZÃO — É verdade! Fomos obrigados a repetir todo o primeiro ato, porque Chico Inácio só apareceu depois de cair o pano.
VILARES — Não foi por gosto dele...
FRAZÃO — Não foi por gosto dele, mas o povo todo começou a gritar: Repita, repita o ato que seu Chico Inácio não viu, e não houve outro remédio senão repetir! Confesso que é a primeira vez que me acontece uma destas. (Entra Vieira.)
VIEIRA (Entrando fúnebre como sempre.) — Venho do correio. Nem uma carta da família... Como é dolorosa esta ausência... Em compensação mandei-lhes cem mil-réis...
VILARES — E eu, cinqüenta para o Monteiro.
FRAZÃO — Coragem, Vieira. Em breve estaremos no nosso Rio de Janeiro.
VIEIRA — Mas até lá!...
MARGARIDA — Até lá é esperar. Descansa, que não haverá novidade em tua casa.
VIEIRA (A Frazão.) — Você já viu o cemitério daqui?
FRAZÃO — Não.
VIEIRA — Uma coisinha à-toa: ali atrás da igreja. Nem parece cemitério.
FRAZÃO — Esta noite depois do espetáculo, se Deus não mandar o contrário, vou fazer uma fezinha...
ARTISTAS (Interessados.) — Onde? Onde?
FRAZÃO — Cá, em certo lugar. Já fui convidado por um alabama, mas não consinto que vocês joguem! Jogarei por todos!
VILARES — Por falar nisso, se fôssemos para casa cair num sete-emeio até a hora do jantar?
MARGARIDA — Bem lembrado!
TODOS — Valeu! Valeu! Vamos! (Saem!)
VIEIRA — Vou sempre dar um giro até o tal cemitério. (Sai.)
CENA IV
editarLAUDELINA, DONA RITA e EDUARDO, saindo da igreja
DONA RITA (Contemplando o Vieira, que não os vê.) — Pobre homem! Mire-se naquele espelho, Laudelina. Como o teatro é mentiroso!
(Vieira sai.)
LAUDELINA — Mentiroso, mas cheio de surpresas e sensações. Anteontem estávamos desanimadas, tendo perdido quase a esperança de poder voltar à nossa casa e ainda agora, ajoelhadas e de mãos postas, naquela igreja, agradecemos a Deus a reviravolta que houve na nossa situação. Para isso bastou um espetáculo...
DONA RITA — E que felicidade a de termos encontrado esta gente que nos hospedou. Que francesa amável!
LAUDELINA — E o senhor Chico Inácio! Que homem simpático!
DONA RITA — Não nos esqueçamos de que estamos convidadas para comer canjica com eles depois do espetáculo.
EDUARDO —O diabo é ter eu que decorar este papel para depois de amanhã. Que lembrança do Frazão em fazer representar um dramalhão de capa e espada, quando há tanta peça moderna.
LAUDELINA — Console-se comigo, que fui obrigada a estudar o papel de Dona Urraca.
DONA RITA — E eu o de Dona Branca... uma ingênua! Eu a fazer ingênua! Nesta idade e com este corpanzil...
EDUARDO — A necessidade tem cara de herege... A peça exige quatro ingênuas. Quatro irmãs. (Ouve-se a música de Carrapatini vir se aproximando.)
LAUDELINA — Lá vem a banda do Carrapatini.
EDUARDO — Naturalmente vem tocar outra vez no coreto.
DONA RITA — Não. Foi buscar o Chico Inácio para assistir ao
sorteio do imperador do ano que vem.
VOZES (Dentro.) — Viva o imperador Chico Inácio! Viva! ...
CENA V
editarOS MESMOS, CHICO INÁCIO, MADAMA, CARRAPATINI, dois mordomos, um Anjo, irmãos do Espírito Santo, músicos, povo [e RODOPIANO] (Soltam foguetes, repicam os sinos. A irmandade do Espírito Santo sai da igreja e vai receber Chico Inácio, que entra com toda a solenidade dando a mão à Madama. Chico Inácio, que vem vestido de casaca de veludo verde, manto escarlate, calção, meias de seda, sapatos afivelados, com coroa e cetro, tendo ao peito refulgente emblema do Espírito Santo, vem debaixo de um pálio cujas varas são encarnadas. Dois mordomos de casaca, chapéu de pasta, espadim e calção, suspendem-lhe o manto. Seguem-lhe Carrapatini à frente da música, soldados em linha e povo. Dão todos uma volta pela praça. Chico Inácio, a Madama e o Anjo sobem para o palanque, que foi transformado em império, depois que o leilão terminou. Cessa a música.)
CHICO INÁCIO (Sentado no trono do lado da Madama.) — Meus senhores, atenção!
MADAMA — Attention! Attention!
CHICO INÁCIO — Agradeço aos bons moradores deste arraial a ajuda que me deram para eu levar até o fim a festa do Divino. Ao vigário dos Tocos, de vir fazer a festa. Ao seu Frazão, o ter trazido a sua companhia dramática. Ao senhor Carrapatini, a sua banda.
CARRAPATINI — Grazie tanti.
CHICO INÁCIO — Agora vai-se fazer o sorteio do imperador do ano que vem. Neste chapéu... (Procurando.) Quedê o chapéu?
ANJO (Dando.) — Tá qui.
CHICO INÁCIO (Tomando o chapéu.) — Neste chapéu estão os nomes das pessoas mais no caso de serem festeiras. (Ao Anjo.) Tire um papel, Bibi. (O Anjo tira. Abre e lê.) Rodopiano Nhonhô de Pau-a-Pique.
MADAMA — O meu palpite!
RODOPIANO — Eu, o festeiro? Vou para casa esperar a bandeira! (Sai correndo.)
CHICO INÁCIO (Erguendo-se.) — Vamos entregar a bandeira.
Toque a banda. Viva o imperador Pau-a-Pique!
TODOS — Viva! Viva! (Forma-se a marcha. Toca a música e saem todos a dar vivas. Mutação.)
Quadro 9
editarVaranda em casa de Chico Inácio. Ao fundo, pátio iluminado por um luar intenso que clareia a cena. A direita, passagem para o interior da casa. À esquerda, primeiro plano, porta para o quarto de Pantaleão. No segundo plano, uma passagem que vai ter aos aposentos de Chico Inácio.
CENA I
editarPANTALEÃO, só
PANTALEÃO (Saindo do seu quarto em mangas de camisa.) — Que maçada! Estou às escuras! Acabou -se o toco de vela que havia no meu castiçal, e não tenho outro. Não sei a quem pedir luz... Não quero chamar: seria um abuso. Aqui está claro, graças ao luar, mas lá noquarto está escuro que nem um prego... Ainda se tivesse vidraças, mas as folhas das janela são de pau... Gastei toda a vela porque estive a escrever esta carta... É uma carta para Laudelina... Francamente, eu não vim cá por causa dela... vim por causa do meu drama... mas ontemquando a vi no Poder do Ouro, toda a minha paixão despertou. Era um leão que dormia dentro de um Pantaleão! É impossível que ela não se dobre aos argumentos (Faz sinal de dinheiro.) que encontrará aqui... O poder do ouro! A festa não me sairá barata, mas é um capricho, e mais vale um gosto que quatro vinténs. Espero que desta vez ela não se faça de manto de seda, e ceda. Se não cedeu em Tocos, foi por causa do tal galã empata-vasas. Estava cai, não cai, quando ele surgiu e fez todo aquele escândalo. Laudelina ficou, mais a velha, conversando com a família do Chico Inácio, que as convidou para comer canjica. Ah! Elas aí vêm. Por que meios conseguirei fazer chegar esta carta às mãos da minha bela?
CENA II
editarO MESMO, LAUDELINA e DONA RITA, entrando pela direita alta
DONA RITA (Entrando.) — Decididamente, são muito amáveis.
LAUDELINA — Não há dúvida. Procuram todos os meios de agradar.
PANTALEÃO (Adiantando-se.) — Minhas senhoras.
DONA RITA — Ah! É o coronel? Que estava fazendo aqui?
PANTALEÃO — Saí do quarto para apreciar o luar desta varanda. Está admirável, não acham?
LAUDELINA (Secamente.) — Esplêndido. (Deixa cair o lenço.)
PANTALEÃO (À parte.) — Uh! Que bela ocasião! (Apanha o lenço e [o] restitui depois de meter nele a carta.)
LAUDELINA — Obrigada.
PANTALEÃO (Baixinho, a Laudelina.) — Leva recheio! (Disfarçando.) Hum, hum! (Alto.) Boa-noite, minhas senhoras.
DONA RITA — Boa-noite, seu Coronel.
PANTALEÃO (À parte.) — É minha! (Entra no seu quarto.)
DONA RITA — Então, menina, vamos para o quarto. (Vendo que Laudelina fica imóvel, sem lhe responder.) Que tens? Estás assim a modo que apalermada!
LAUDELINA — Sim, dindinha, apalermada é o termo.
DONA RITA — Por quê?
LAUDELINA — Pois não é que esse velho sem-vergonha, que já devia estar bem ensinado, aproveitou o ensejo de me entregar o lenço para me entregar também uma carta?
DONA RITA — Uma carta?
LAUDELINA — Sim, aqui está. (Mostra a carta, que tira de dentro do lenço.)
DONA RITA — Que desaforo!
LAUDELINA — Vou dá-la a seu Eduardo. (Dá um passo para a direita.)
DONA RITA (Detendo-a.) — Estás doida! Queres provocar novo escândalo?
LAUDELINA — Tem razão, mas que devo fazer?
DONA RITA — Restituir a carta a esse patife, sem abrir ela. Dá cá, eu me encarrego disso.
LAUDELINA — Mas ele há de ficar impune? (Vendo entrar Frazão.) Ah! Cá está quem vai decidir.
CENA III
editarAS MESMAS e FRAZÃO
FRAZÃO — Que é isso? Ainda acordadas? É quase meia-noite.
DONA RITA — Estivemos com a família do Chico Inácio.
FRAZÃO — Eu fui fazer uma fezinha no lasca... Quem não arrisca não petisca... Entrei no jogo com um medo dos diabos... Vi os turunas cheios de pelegas de cem, de duzentos e quinhentos... Mas Deus é grande! ... Quando peguei no baralho, comecei por dois doublés de cara... Não capei... dei a terceira sorte... Depois veio um sete de cabeça para baixo... o sete de cabeça para baixo não falha!
LAUDELINA — Não falhou?
FRAZÃO — Qual falhou, qual nada! Oito sortes seguidas! Um chorrilho! Acabei dando lambujas fantásticas!... E justamente quando veio o azar, foi que ninguém lhe pegou! Enfim, (Batendo na algibeira da calça.) foi como se o M adureira houvesse respondido três vezes ao meu telegrama! Agora sim, agora estamos garantidos contra a miséria.
DONA RITA — Bravo!
LAUDELINA — Também eu tenho que lhe contar uma coisa.
FRAZÃO — Que é?
LAUDELINA — Quando entramos inda agora, estava aqui o coronel Pantaleão.
FRAZÃO — Meus pêsames.
LAUDELINA — Sabe que fez ele? Apanhou este lenço, que por acaso deixei cair, e ao entregar-me, meteu-me esta carta na mão.
FRAZÃO (Tomando a carta.) — Uma carta?
DONA RITA — Não acha o senhor que deve ser devolvida sem ser aberta?
FRAZÃO — Era o que faltava! Vejamos primeiramente o que ela diz. (Abrindo resolutamente a carta.) O luar é magnífico, mas leio com dificuldade. (Dando a Laudelina uma caixa de fósforos.) Faça o favor de ir riscando enquanto leio. (Dona Rita, sem dizer nada, tira também uma caixa de fósforos e ambas, enquanto Frazão lê, vão riscando fósforos e alumiando uma de um lado e outra do outro. Lendo.) “Minha adorada Laudelina (Passando os olhos.) Hum...hum... (Fala.) Tudo isto são bobagens. Ah! (Lendo.) Tenho aqui no meu quarto a quantia de dois contos de réis a tua disposição, sob a condição de vires buscá-la quando der meia-noite no relógio da capela. A essa hora todos estarão dormindo. Deste que te adora loucamente — Leãozinho.” Que grande bandalho!
DONA RITA — Que devemos fazer?
FRAZÃO — Homessa! Não há duas opiniões a respeito: apanhar os dois contos de réis.
LAUDELINA — Quê! Pois o senhor acha que eu?...
FRAZÃO — A senhora? Quem falou aqui da senhora? Vão ambas para o quarto e durmam sossegadas. Eu encarrego -me de tudo. Era o que faltava... Esse dinheiro compensará os prejuízos que aquele tipo nos causou, pois foi, não há dúvida, o seu drama que em Tocos escabriou o público e desmoralizou a companhia...
LAUDELINA — Mas será uma extorsão!...
FRAZÃO — Pode ser, mas eu não quero um vintém para mim. Será tudo distribuído pelos artistas, a título de receita eventual.
DONA RITA — Mas qual é o seu plano?
FRAZÃO — Depois saberão... Basta dizer-lhes que disto não lhes resultará mal algum. Só lhe peço uma coisa, Laudelina: empreste -me esse xale.
LAUDELINA (Hesitando.) — Meu xale?
FRAZÃO — Sim, dê cá. (Toma-lho.) Bom, vão dormir com Deus. (Sai pela direita.)
DONA RITA — É dos diabos este Frazão!
LAUDELINA — Mas que irá ele fazer?
DONA RITA — Naturalmente mandar a Margarida, ou a Josefina, ou a Isaura, em teu lugar ao quarto do Leãozinho.
LAUDELINA — Isso não. Esse homem vai julgar que sou eu.
DONA RITA — Apenas à primeira vista, por causa do xale vermelho, mas depois...
LAUDELINA — Eu achava melhor acordar seu Eduardo.
DONA RITA — Qual seu Eduardo, qual nada!... Seu Eduardo é um estabanado! Quer logo deitar o mundo abaixo! Deixa lá o Frazão: ele sabe como essas coisas se fazem e não será capaz de te comprometer. Vamos dormir.
LAUDELINA — Queira Deus! (Saem pela direita.)
CENA IV
editarCHICO INÁCIO, MADAMA e BONIFÁCIO
(Entram os três cautelosamente em camisola de dormir. Bonifácio vem à frente trazendo um lampião.)
Canto
OS TRÊS — Nós, sem primeiramente
A casa revistar,
Não vamos nos deitar.
Este costume, a gente
Não pode mais largar.
Pisando de mansinho
Pra não incomodar,
Cantinho por cantinho
Nós vamos revistar. (Saem.)
CENA V
editarPANTALEÃO, depois FRAZÃO
PANTALEÃO (Saindo do quarto.) — Eu podia ter pedido um toco de vela a Dona Rita: não me lembrei. Decididamente, fico no escuro. Ora, o amor mesmo às escuras tem graça... Talvez seja melhor assim: Laudelina não terá vergonha e portanto se entregará com mais facilidade. Mas como são as mulheres! Aquela história do lenço não acudiria a um homem viajado! Ela percebeu que eu tinha uma carta engatilhada e deixou cair o lenço... Falta pouco! Que ansiedade! Que ansiedade!... (Volta para o quarto.)
FRAZÃO (Entrando da direita vestido de mulher e com a cabeça envolvida no xale de Laudelina.) — Arranjei um vestido da Josefina, que me ficou ao pintar. Eu já fiz um papel em que havia uma situação parecida com esta. Mas era no teatro: não sei se na vida real a coisa se passará do mesmo modo. O que eu quero são os dois contos de réis na mão. (Dá meianoite.) Meia -noite! Está na hora. (Vendo Pantaleão sair de um quarto.) Lá vem o Leãozinho.
PANTALEÃO (Vendo Frazão, à parte.) — É ela! Eu não disse? Não há nada como o poder do ouro! (Baixo.) És tu, Laudelina?
FRAZÃO (Baixo.) — Sim!
PANTALEÃO (Aproximando-se.) — Como és boa! (Toma-lhe a mão. À parte.) Com que força aperta a mão. Ai! Que delícia! Que mãozinha de cetim!
FRAZÃO (Baixinho.) — Que é do dinheiro?
PANTALEÃO (Idem.) — Está ali.
FRAZÃO (Idem.) — Dê cá.
PANTALEÃO — Vou buscá-lo. (À parte.) Quer adiantado! Fiem-se lá nestas ingênuas.
FRAZÃO — Dê cá.
PANTALEÃO — Dar-to-ei logo que entres no meu quarto. Vamos, vamos, meu amor, porque aqui podemos ser surpreendidos. (Puxa Frazão para o quarto.)
FRAZÃO — Não, meu Deus! (Cobre o rosto com as mãos.)
PANTALEÃO — Deixa-te de luxos. Agora, que deste o primeiro passo, não podes recuar.
FRAZÃO — Que vai pensar de mim?
PANTALEÃO — O mesmo que a outra perguntou a Pedro I. Vamos.
FRAZÃO — Meu Deus! (Pantaleão puxa-o. Entram ambos no quarto.)
CENA VI
editarCHICO INÁCIO, MADAMA, BONIFÁCIO, depois FRAZÃO
Canto
OS TRÊS — Nós, sem primeiramente, etc.
(Terminado o canto, abre-se a porta do quarto de Pantaleão e sai Frazão a correr derrubando na passagem Chico Inácio,. a Madama e Bonifácio, que gritam.)
CENA VI
editarCHICO INÁCIO, BONIFÁCIO, MADAMA, depois PANTALEÃO, depois DONA RITA, LAUDELINA, EDUARDO, VILARES, MARGARIDA, ISAURA, FLORÊNCIO, COUTINHO, VIEIRA, depois FRAZÃO
CHICO INÁCIO e BONIFÁCIO (No chão.) — Ai! Ai!
MADAMA — Au sécours!
PANTALEÃO (Saindo do quarto a gritar.) — Pega ladrão! Pega ladrão! (Saem todos os artistas, sobressaltados, em camisolões de dormir trazendo castiçais com velas acesas.)
CORO — Ai, quanta bulha, que alarido!
Que foi, que foi que se passou?
Foi o meu sono interrompido:
— Pega ladrão! alguém gritou.
PANTALEÃO — Sim, eu gritei: pega ladrão!
TODOS — É o coronel Pantaleão,
Pantaleão, Pantaleão.
FRAZÃO (Entrando de camisola e castiçal.)
— Que foi, meu caro amigo?
PANTALEÃO — Eu lhe digo... Eu lhe digo...
Um audaz ratoneiro, um bandido qualquer,
O meu quarto invadiu, disfarçado em mulher,
E dois contos de réis o ladrão me levou
E estendido no chão, a correr, me deixou!
CORO — Um audaz ratoneiro, um bandido qualquer,
O seu quarto invadiu, disfarçado em mulher,
E dois contos de réis o ladrão lhe levou
E estendido no chão, a correr, o deixou!
LAUDELINA — Sei o que foi, vou dizê-lo:
O coronel teve um sonho,
Ou antes um pesadelo,
Um pesadelo medonho.
CHICO, MADAMA e BONIFÁCIO — Eu tinha a casa revistado,
Ninguém aqui de fora entrou.
EDUARDO — Se estava o quarto bem fechado,
Como o ladrão lá penetrou?
MARGARIDA — Por que motivo, disfarçado,
O malfeitor no quarto entrou?
FRAZÃO — Eu também estou capacitado
De que o Pantaleão sonhou.
TODOS — Sei o que foi: basta vê-lo!
O coronel teve um sonho,
Ou antes um pesadelo,
Um pesadelo medonho.
PANTALEÃO (Consigo.) — Sem os dois contos fico:
Não posso me explicar,
Porque se eu abro o bico,
Se toda a coisa explico,
Pancada hei de apanhar.
(Alto.) Foi, foi, um sonho!
CORO — Sim, foi um sonho,
Um pesadelo medonho!
PANTALEÃO — Desculpem tê-los
Incomodado, senhores meus.
Boa-noite, e que desses pesadelos
Os livre Deus
Boa-noite!
TODOS — Boa-noite!
(Todos, à exceção de Pantaleão, se retiram lentamente cantando o boa-noite.)
PANTALEÃO (Só.) — Sim, senhor, dois contos de réis! Caro me custou a lição! Ah! Laudelina, Laudelina! Vais obrigar-me a ir ao Rio de Janeiro! É lá que te quero apanhar! (Entra no quarto. Mutação.)
Quadro 10
editarA cena representa um teatrinho improvisado. Ao fundo, o palco levantado sobre barricas. O pano está arriado: é uma colcha, O lugar da orquestra é separado da platéia por uma grade de pau tosca. Toda a cena é tomada pela platéia, cheia de longos bancos longitudinais. À direita, a entrada do público. Á esquerda, uma porta que dá para o quintal de Chico Inácio, e pela qual passam os artistas. O teatro não tem camarotes. Ao levantar o pano, Bonifácio tem acabado de varrer o teatro e está arrumando os bancos.
CENA I
editarBONIFÁCIO, depois CHICO INÁCIO, MADAMA, depois um
ESPECTADOR
BONIFÁCIO (Só, arrumando os bancos.) — Tá tudo pronto. Agora só farta acendê as irendela. O drama de hoje parece que é bão memo! Seu Frazão faz de velho...
CHICO INÁCIO (Entrando com a Madama da esquerda baixa.) — Então, o teatro ainda está às escuras?
MADAMA — Fora o gasista!
BONIFÁCIO — Isto é um instantinho! (Começa a acender os candeeiros, que são de petróleo.)
CHICO INÁCIO — As nossas cadeiras estão no lugar?... (Examinando a primeira fila, onde se acham duas cadeiras.) Estão.
MADAMA — Devíamos ter mandado pôr também uma cadeira para o coronel Pantaleão.
CHICO INÁCIO — Ora, o coronel Pantaleão que vá para o diabo! Não lhe perdôo o ter-se engraçado... Então com quem?... Com a Laudelina, uma rapariga honesta, ajuizada...
MADAMA — Que simpatia você lhe tem!
CHICO INÁCIO — Eu sou assim... quando simpatizo com alguém, simpatizo mesmo!
MADAMA — Eu que o diga! Lembras-te? (Apóia-se no ombro de Chico Inácio.)
CHICO INÁCIO (Sorrindo.) — De quê?
MADAMA —De 1879?
CHICO INÁCIO — Olha o Bonifácio.
Coplas
I
MADAMA — Naquele belo, venturoso dia,
Em que te vi pela primeira vez,
Houve entre nós tamanha simpatia
Que outra maior não haverá talvez!
De outra mulher gostavas, mas, em suma,
Desde que tu me conheceste bem,
Tu nunca mais pensaste em mais nenhuma,
Tu nunca mais amaste a mais ninguém!
II
Correspondi ao teu bondoso afeto
Com toda a força do meu coração,
E à sombra amiga do teu doce teto
Achei sossego, achei consolação.
O meu passado é triste, mas perdoa,
Porque, ao ser tua, ao conhecer-te bem,
Eu nunca mais pensei noutra pessoa,
Eu nunca mais amei a mais ninguém!
CHICO INÁCIO — Pois sim, mas escusas de falar-me do passado...
Também eu tenho culpas no cartório...
MADAMA — Bem sei... tua filha...
CHICO INÁCIO — Falemos de coisas mais alegres.
MADAMA — Avec plaisir.
ESPECTADOR (Entrando.) — Parece que cheguei cedo.
CHICO INÁCIO — Que deseja?
ESPECTADOR — Vancê mi dá dous mi réis de teatro?
CHICO INÁCIO — A bilheteria é lá fora, mas é cedo para entrar. Agora é que se estão acendendo as luzes, não vê? (Empurrando-o para fora.) Entre quando entrar a música. Nem o porteiro está no lugar.
ESPECTADOR — Então até logo, seu Chico Inácio. A sua festa tem estado de primeira!
CHICO INÁCIO — É... tem estado de primeira, mas vá-se embora.
(Espectador sai.)
BONIFÁCIO (Que tem acabado de acender as luzes.) — Pronto!
FRAZÃO (Caracterizado de velho, com cabeleira e barbas brancas, aparecendo por trás da colcha.) — Ó seu Bonifácio!
BONIFÁCIO — Que é?
FRAZÃO — Diga a seu Vilares, a seu Vieira e a dona Rita que são
horas. Eles estão esperando para passar, que a platéia fique cheia de
espectadores.
MADAMA — Aí vêm eles!
FRAZÃO — Bom! (Desaparece.)
CENA II
editarOS MESMOS, DONA RITA, VILARES, VIEIRA
(Todos três vestidos a caráter. Vieira traz o vestuário dos lacaios do teatro clássico francês.)
DONA RITA (Da porta da esquerda.) — Ainda não está ninguém?
CHICO INÁCIO — Não. Pode passar.
DONA RITA (Atravessando a cena a correr.) — Eu! Eu a fazer ingênuas! (Desaparece ao fundo.)
VILARES (Atravessando a cena.) — E eu ser obrigado a amar esta matrona! Isto só no Pito Aceso! (Desaparece ao fundo.)
BONIFÁCIO (Vendo Vieira e rindo-se a perder.) — Ah! ah! ah! Sim, senhor! Isto é que é um diabo jocoso!...
VIEIRA (Sempre muito triste.) — Felizmente é o último espetáculo... Vou breve abraçar a família... (Atravessa a cena e desaparece ao fundo, como os demais.)
CHICO INÁCIO — Este Vieira acaba suicidando-se!
MADAMA — Vamos para os nossos lugares?
CHICO INÁCIO — Espera. Temos tempo.
CENA III
editar[OS MESMOS], CARRAPATINI, músicos
CARRAPATINI (Aos músicos.) — É molto cedo.
CHICO INÁCIO — Não é muito cedo, não.
CARRAPATINI (Cumprimentando.) — Oh! Signor Chico Inácio... Madama...
CHICO INÁCIO — Ó maestro, veja se hoje você varia um pouco o repertório... Você tem nos impingido todas as noites as mesmas músicas!
CARRAPATINI — Si... no há molta varietá ! ... ma no se puó dire que non sia un repertório de primo cartelo! Habiamo tutte le novità musicali !
MADAMA — Pois sim! (Carrapatini vai com os músicos para a orquestra e começa a afinar os instrumentos.)
CHICO INÁCIO — Vá para a porta, Bonifácio, e veja lá! Não deixe ninguém entrar sem bilhete!...
BONIFÁCIO — Povo tudo já tá esperando. (Vai para a porta. Desde esse momento em diante vão entrando espectadores, isolados ou por família. Grande rumor. Cena muda. Aos poucos, o teatrinho enche-se completamente, e todos os lugares ficam ocupados. Pantaleão entra e vai, com Chico Inácio e Madama, tomar lugar na primeira fila. Durante este tempo, os músicos afinam os instrumentos) Sim... não há muita variedade!... mas não se pode dizer que não seja um repertório de primeira categoria. Temos todas as novidades musicais! (os espectadores conversam uns com os outros. Quadro animado, cujo resultado os autores confiam à inteligência do ensaiador. Os atores que não figuram mais na peça podem, caracterizados, fazer número entre os espectadores, para que a cena não fique entregue exclusivamente à comparsaria, da qual não é possível esperar coisa com jeito. É preciso que todos concorram com a sua boa vontade para que este quadro, de uma execução difícil, dê um resultado satisfatório.)
CENA IV
editarCHICO INÁCIO, MADAMA, PANTALEÃO, BONIFÁCIO, CARRAPATINI, músicos, espectadores, FRAZÃO
FRAZÃO (Deitando a cabeça fora do pano.) — Ó seu Chico Inácio!
ESPECTADORES (Rindo.) — Ah! ah! ah! Bravos, ó Frazão!...
CHICO INÁCIO — Que é?
FRAZÃO — Não é nada. Apenas queria saber se o senhor estava aí, para não nos acontecer o mesmo que o outro dia, em que tivemos de repetir o primeiro ato. (Risadas dos espectadores.) Ó Carrapato, vamos com isto!
CARRAPATINI — Carrapato, non: Carrapatini! (Nova risada dos espectadores. Frazão desaparece. A sala está de bom humor A música toca uma peça a que o público dá pouca atenção. Continuam a entrar alguns espectadores retardatários. Bonifácio, à porta, de vez em quando tem uma pequena discussão. Afinal, cessa a música e restabelece-se o silêncio. Pausa. Ouve-se um apito. Depois outro. Sobe o pano.)
CENA V
editarOS MESMOS, VIEIRA, depois VILARES
(A cena do teatro representa uma praça. Vieira está em cena com uma carta na mão. Representa o baixo cômico de um modo muito exagerado.)
VIEIRA — Coitado do meu amo, o senhor Lisardo!... Por causa destes amores o pobrezinho não dorme, não come, não bebe, não... hum... hum... (Gargalhada do público.)
BONIFÁCIO (Da porta.) — Ah, danado!
VIEIRA — Está desesperado, coitadinho, e quando ele está desesperado quem paga sou eu, que logo me transforma em caixa de pontapés!... (Risadas do público.) Se ele me pagasse os salários com a mesma facilidade com que me dá pontapés, eu seria o mais feliz dos lacaios!... Ah, mas desta vez outro galo cantará, porque tenho aqui uma cartinha que lhe dirige a formosa Urraca! (Examinando se a carta está bem fechada.) Se eu pudesse ler antes dele... Os criados devem conhecer os segredos dos patrões...
BONIFÁCIO — Ah, ladrão!...
ALGUNS ESPECTADORES — Psiu! Psiu!...
VIEIRA — A carta está mal fechada... Que tentação!...
VILARES (Que tem entrado sem ser pressentido, dando um grande pontapé em Vieira.) —Patife! (Grande risada do público.)
BONIFÁCIO — Bem feito!...
VIEIRA (Sem olhar para trás.) — É ele, é o senhor Lisardo!... O meu posterior está tão familiarizado com aquele pé que não há meio de o confundir com outro!
VILARES — Ó tratante! Pois não te voltas! (Dá-lhe outro pontapé. Risadas.)
VIEIRA (Sem se voltar.) — Outro! Este foi mais taludo que o primeiro! Pôs-me as tripas em revolução! (Risadas.)
VILARES — Se não te voltas, apanhas outro!
VIEIRA (Voltando-se.) — Não vos incomodeis, senhor meu amo: bastam dois.
VILARES — Olha, se queres outro, não faças cerimônias...
(Risadas)
VIEIRA — Sei que sois muito liberal.., sei que sois um mãos largas... quero dizer um pés -largos, e não me despeço do favor, mas por ora falta-me o apetite! (Risadas.)
BONIFÁCIO — Apetite de pontapé! Que ladrão!...
VILARES — Anda! Dá-me essa carta!...
VIEIRA — Aqui a tendes. É da formosa Urraca!
VILARES — Dela?! E fazias-me esperar, maldito! (Toma-lhe a carta das mãos. Lendo-a.) Que vejo! Urraca dá-me uma entrevista nesta praça!...
VIEIRA — Ela espera apenas que eu lhe faça um sinal.
VILARES — Falaste -lhe?
VIEIRA — Falei-lhe, sim, senhor.
VILARES — Que te disse ela?
VIEIRA (Imitando voz de mulher.): “Tareco, meu Tarequinho, dize a teu amo que o amo, e que me espere na praça. Lá irei a um sinal teu!” (Risadas dos espectadores. Roda de palmas.)
VILARES — Então, faze-lhe o sinal.
VIEIRA (Depoi s de fazer sinais para fora.) — Ela aí vem!
VILARES — Ó suprema dita!... Retira-te, mas não vás para muito longe. (Vieira sai, resguardando o assento para não levar outro pontapé. Risadas.)
BONIFÁCIO — Tá co medo do pé do patrão!
CENA VI
editarOS MESMOS, DONA RITA, depois FRAZÃO e depois VIEIRA
DONA RITA (Entrando, saltitante.) — Lisardo!
VILARES — Urraca! (Enlaça-a com dificuldade.)
DONA RITA — Ó meu belo cavalheiro! Não calculas como tardava ao meu coração este momento ditoso! Sabeis? Meu pai quer meter-me no convento das Ursulinas...
VILARES — Que ouço?
BONIFÁCIO — Coitada!
DONA RITA — É absolutamente preciso que me rapteis hoje mesmo...
VILARES — À primeira pancada da meia -noite estarei debaixo da vossa janela com uma escada de seda e dois fogosos corcéis que nos transportarão longe, bem longe daqui!
DONA RITA — Sim, meu belo cavalheiro! Até à meia -noite!... Sou vossa!...
FRAZÃO (Entrando.) — Maldição!... Maldição!... Filha desnaturada!...
DONA RITA (Com um grito.) — Ah! (Foge. Frazão vai persegui-la. Vilares toma-lhe a passagem.)
VILARES — Senhor conde!...
FRAZÃO — Deixa-me passar, vilão ruim!
VILARES — Não passareis!
FRAZÃO (Desembainhando a espada.) — Abrirei com a minha espada um caminho de sangue!...
VILARES (Desembainhando a espada.) — Encontrareis ferro contra ferro! Em guarda!...
FRAZÃO — Encomenda a tua alma a Deus! ... (Batem-se em duelo. O público aplaude com entusiasmo.)
VIEIRA (Entrando.) Meu amo bate-se? Devo salvá-lo. Vou empregar o seu processo!... (Dá pontapé em Frazão que se volta. Vilares foge.)
FRAZÃO — Quem foi o miserável? (Agarrando Vieira.) Vou matar-te como se mata um cão!
VIEIRA (Gritando.) — Desculpai! ... Julguei que fosse meu primo!
FRAZÃO — Infame! (Outro tom.) As barricas estão dando de si! O palco vai abaixo! (Cai o palco com Frazão e Vieira, que gritam. Todos os espectadores se levantam assustados. Grande confusão.)
CORO — O teatro foi abaixo!
Que terrível confusão!
Coitadinho do Vieira!
Pobrezinho do Frazão!
Apanharam ambos eles
Um tremendo trambolhão!
O teatro foi abaixo!
Que terrível confusão! (Mutação.)
Quadro 11
editarA mesma cena do Quadro 9, mas de dia
CENA I
editarPANTALEÃO, só
PANTALEÃO (Saindo do seu quarto.) — A companhia está se aprontando para partir... Também eu parto! Vou a Tocos, ponho em ordem os meus negócios, e de lá sigo para o Rio de Janeiro. Não descansarei enquanto Laudelina não me pertencer! O que me está aborrecendo é o material da Passagem do Mar Amarelo, que tem que voltar comigo para Tocos. Também que lembrança a minha! O meu drama poderia ser lá representado num teatro daqueles! ... Um teatro que cai!...
CENA II
editarOS MESMOS, LAUDELINA, DONA RITA, EDUARDO, vêm todos três prontos para a viagem [depois CHICO INÁCIO eMADAMA]
EDUARDO — Senhor coronel, estas senhoras e eu andávamos à procura.
PANTALEÃO — Ah! Já sei, resolveram entrar em acordo comigo para a aquisição do material do meu drama.
LAUDELINA — Não, senhor, não é isso!
EDUARDO — A Companhia Frazão resolveu unanimemente restituir -lhe estes dois contos de réis, que lhe foram subtraídos por brincadeira... (Dá-lhe o dinheiro.)
PANTALEÃO (Contente.) — Ah! Foi brincadeira?
DONA RITA — Nós três fomos incumbidos de lhe fazer esta restituição.
PANTALEÃO — Muito obrigado. Já lhes tinha chorado por alma.
(Entram Chico Inácio e a Madama, também prontos para sair. Ele de botas e rebenque, ela de amazona.)
CHICO INÁCIO (Entrando.) — Estão prontos? Tomaram todos o café?
DONA RITA — Com bolo de milho.
CHICO INÁCIO — Vou acompanhá-los até fora da povoação. A Madama também vai.
MADAMA — Avec plaisir.
CHICO INÁCIO — Dona Laudelina, creia sinceramente que deixa aqui um verdadeiro amigo. Vou dar à sua madrinha este cartão com o meu nome, para que em qualquer circunstância da vida não se esqueçam de mim. Recorram ao Chico Inácio como se o fizessem a um parente rico.
DONA RITA (Que toma o cartão, lendo-o com um grito.) — Que é isto?!
TODOS — Que é?
DONA RITA — O senhor chama-se Ubatatá?
CHICO INÁCIO — Francisco Inácio Ubatatá. Mas que tem isso?
DONA RITA — Dar-se-á caso que... O senhor esteve no Rio de Janeiro em 1879?
MADAMA — Esteve. Foi quando me conheceu.
DONA RITA — E quando conheceu a Florentina Gaioso... Lembrase?...
CHICO INÁCIO — A Florentina Gaioso... sim!... Pois a senhora sabe?
DONA RITA — Sei tudo!
CHICO INÁCIO — Onde está ela?
DONA RITA — No céu!
MADAMA (À parte.) — Tant mieux!
CHICO INÁCIO — E... minha filha? Que fim levou minha filha?
DONA RITA — Que fim levou? (Solenemente, a Laudelina.) — Laudelina, abrace seu pai!...
TODOS — Seu pai!...
CHICO INÁCIO — Ela!...
LAUDELINA — Meu pai!...
DONA RITA — Sim, esta é a filha da pobre Florentina, que morreu nos meus braços, abandonada pelo Ubatatá!
CHICO INÁCIO (Dramático.) — Oh! Cale-se!...
DONA RITA — Agradeça-me! Fui eu que a eduquei.
CHICO INÁCIO — Minha filha! (Abraçando Laudelina.) Havia não sei o quê que me dizia ao coração que eu era teu pai!
PANTALEÃO — A voz do sangue!
CHICO INÁCIO — Desta vez não sairás da minha companhia... A Madama consente...
MADAMA — Avec plaisir.
CHICO INÁCIO — Foi mesmo uma condição do nosso casamento.
LAUDELINA — Perdão, meu pai, mas eu sou noiva de seu Eduardo... (Vai tomar Eduardo pela mão.)
CHICO INÁCIO — De um ator...
EDUARDO — Perdão, não sou ator, sou empregado no comércio do Rio de Janeiro. Estou com licença dos patrões.
CHICO INÁCIO — Pois peça uma prorrogação da licença, porque desejo que o casamento se realize aqui. Mandarei vir os papéis.
CENA III
editarOS MESMOS, FRAZÃO
FRAZÃO (Entrando, preparado para a viagem.) — Os nossos companheiros estão todos na praça à nossa espera. Vamos!
LAUDELINA — Sabe, senhor Frazão? Encontrei meu pai. (Apontando para Chico Inácio.) É ele!...
EDUARDO — Ele!
DONA RITA — Ele!
MADAMA — Ele!
PANTALEÃO — Ele!
CHICO INÁCIO — Eu!
FRAZÃO — O senhor é que era o Ubatatá?
CHICO INÁCIO — Era e sou!
FRAZÃO — Pois, senhores, para alguma coisa serviu tê-la trazido no mambembe.
PANTALEÃO (À parte.) — Perdi-lhe as esperanças...
LAUDELINA (Triste.) — Mas devo deixar o teatro...
FRAZÃO — Não te entristeças por isso, filha: o nosso teatro, no estado em que presentemente se acha, não deve seduzir ninguém. Espera pelo Teatro Municipal.
TODOS — Quando?
FRAZÃO — O edifício já temos... Ei-lo!... Falta o resto... (Aponta para o fundo. Mutação.)
Quadro 12
editarO futuro Teatro Municipal
(Cai o pano)