Eis o que tinha acontecido no Cajueiro, ao escurecer do dia anterior.

Lourenço, que depois do que se passara no samba esperava a cada momento ser offendido por Tunda-Cumbe ou por algum dos seus sequazes, vendo entrar um vulto desconhecido no caminho das carvoeiras, pegou da espingarda de Francisco, e, sem que Marcellina soubesse, encaminhou-se para aquelle ponto.

Detraz da palhoça dos negros existia uma cova immensa, em que um homem podia metter-se até aos peitos. Com as ultimas chuvas tomára ella muita agua, e se convertera em barreiro, donde os sapos estavam a essa hora soltando suas monotonas toadas. O rapaz avançou para ella por baixo das ramas rasteiras dos cajueiros. Na parte mais funda a agua deu-lhe pela cintura. Lourenço pouco se importou com isto. O que elle queria era saber quem era o vulto e o que ia fazer alli. Eis o que viu e ouviu.

Estavam dentro da palhoça, com os habitantes do costume, um negro do serviço domestico de João da Cunha por nome Germano e o Pedro de Lima, cabra destemido do sequito de Tunda-Cumbe, braço direito deste para assim escrevermos, que deixou nome na historia da guerra, pelas «extorsões, mortes, roubos e outras desenvolturas que commetteu em Goyanna, de que fôra o terror».

No momento em que Lourenço pôde enxergal-os através das palhas da choupana, estava Pedro de Lima, a frente voltada para o casal de negros e o Germano, justamente a dizer-lhes estas palavras:

— É certinho o que digo; podem crer que terão vocês sua liberdade. Guardarei todo o segredo.

Lourenço compreendeu logo, por estas palavras, que o cabra promettia aos negros a alforria a troco de um levante contra João da Cunha.

— Então, então, Germano, que dizes a esta proposta? perguntou Moçambique ao negro da confiança do sargento-mór. Pois a liberdade é coisa que se engeite?

— A liberdade é bôa coisa, e eu a não engeito, assim ella venha, respondeu Germano. Mas si os outros parceiros não quizerem aceitar a proposta, e meu senhor vier a saber que eu é que andei nisso, quem me livrará de ir ao carro ou á fornalha?

— És um pateta, moleque, disse Pedro de Lima. De hoje até amanhã hei de dar no engenho de teu senhor. Si acontecer o que eu cá espero, amanhã demanhãsinha o chumbo assobia nas urupemas de sua casa e a faca trabalha nas banhas da barriga delle. Si os negros que elle lá tem comsigo promptos para dar e apanhar, faltarem na hora do apuro, não haverá santos que o livrem de ir direitinho para a bagaceira servir de pasto aos urubús.

— Mas ahi é que está a historia, observou Germano. Eu sei lá se elles querem faltar ou não?

— Negros safados são todos vocês. Não prestam nem para tratar de libertar-se. Não sabem nem ao menos deixar a senzala, onde andam curtidos de fome e somno pela mata virgem. Negros de patente eram os dos Palmares. Aquelles sim. Foram quarenta os que primeiro metteram a cabeça no mato; dahi a pouco já eram não sei quantos mil. Vocês são ao pé de duzentos e tem medo do chicote do feitor. Vai, Germano, fallar a João-Congo, a Thomaz, a Januario e a Jacintho. Si elles não tiverem coragem para a tragedia, faze tu o que te vou dizer.

— Diga lá.

— Quando o engenho fôr atacado por nós, corre a botar agua dentro dos canos das armas de fogo. Isto é coisa muito facil, e que tu podes fazer sem ninguem saber, nem ser preciso que alguem te ajude neste serviço.

Germano nada disse, e pelos modos, deu mostras de que dentre differentes alvitres indicados pelo audaz bandoleiro, era este o que mais lhe quadrava. Mas subito com gesto de quem tinha tomado uma resolução decisiva, assim falou a Pedro de Lima:

— Sabe que mais, seu Pedro de Lima? Eu não faço a meu senhor isso que vosmicê propõe. Elle para mim é bem bom senhor. Até minha senhora, que é uma soberbona, essa mesma já uma vez me prometteu alforia.

— Pateta! Estás com medo, moleque ruim.

— Este moleque é assim mesmo, disse Quitéria. Promette as coisas e não faz. Quer e não quer. — Tem medo do bacalhau—disse o cabra despeitado. Não tem agora medo de minha faca, ou do bacamarte de Gonçalo Ferreira. Eu só digo uma coisa: encontrando-te diante de mim, no momento do ataque ha de ser para ti a minha primeira facada ou o meu primeiro tiro.

— Não se zangue comigo, seu Pedro de Lima, disse Germano com certa expressão e revirado de olhos, para dar a entender ao mulato que elle tinha intenção reservada.

— Pois si eu visse Germano mettido na dansa, eu tambem me mettia nela, disse Moçambique.

— Estás ouvindo? Olha lá o que perdemos. Eu porém não quero que ninguem me acompanhe contra a vontade. Nunca pensei que não acceitasses a minha proposta. Quando te vi passar de tarde para esta banda, eu logo conheci que vinhas ao sitio das carvoeiras, e disse comigo: «Vou fallar com Germano para ver si elle quer, a troco da sua liberdade, prestar-nos um servicinho.» Eu estava na mente de que havia de te chamar para nós; mas, como não queres, nem por isso te farei mal. O que eu disse ha pouco foi gracejo. De ti, pobre negro captivo, o que eu tenho não é odio, é pena. E adeus. Perdi meu tempo e minhas razões. De outra feita talvez a coisa já não seja assim.

— Eu tambem me vou embora, que já é tarde; disse Germano. Adeus, tio Moçambique. Com Deus amanheça, tia Quiteria.

— Vai-te embora d'ahi que tu não prestas sinão para chôtear de jaqueta de galão atraz de teu senhor, abrir-lhe as porteiras para elle passar, e limpar as botas delle quando vêm cheias de lama—respondeu Moçambique.

— Você tambem de que serve? Perguntou Germano despeitado. Não é tambem escravo delle, como eu sou? Não é mais que a gente se levantar contra seu senhor! Mestre Moçambique, sabe que mais? Vá contar a outro as suas valentias, que eu nellas não creio, e tanto caso faço dellas, como dos latidos de cachorro velho, carregado de rabuje, que já não morde, porque nem dentes tem.

— Está bom, está bom, vai-te embora, meu pimpão—disse o Moçambique. Amanhã, tu me dirás quem é o cachorro velho que não morde. Talvez que a esta hora tu estejas na ponta da faca de Pedro de Lima, e eu na mata virgem.

Germano deu o andar para a vereda, onde já entrara Pedro de Lima, que sahira antes delle.

Adiante, debaixo de um cajueiro, um vulto estava parado. Era o mulato.

— Eu bem te entendi, Germano. E para saber todo o teu pensamento, aqui fiquei a tua espera.

— Quando é que vão atacar o engenho?

— Para te fallar verdade, eu não sei bem quando ha de ser o ataque.

— Mas vamos cá saber uma coisa, seu Pedro de Lima: como posso ter eu certeza de que serei livre si fizer o que vosmecê propõe?

— Não ha duvida que tudo ha de ser conforme te digo. Pois queres melhor certeza do que a nossa victoria? Olha cá. Si vencermos a nobreza, o governo passará a ser outra vez dos mascates, e passando a ser dos mascates o novo governo, está bem visto que todos aquelles escravos que nos tiverem ajudado a dar com o governo da nobreza em terra, terão em recompensa a sua liberdade.

— E si, em lugar de darem a elles a liberdade os mascates ficarem com os negros na escravidão, não virá tudo a dar no mesmo?

— Mas si eu te afianço que tu pelo menos ganharás a tua alforria, que mais garantia queres do que minha palavra? Não duvides da promessa. Ajuda-nos a dar um ensino de mestre a esses senhores soberbões, e eu te asseguro que não te has de arrepender.

— Pois, sim, seu Pedro. Eu, como confio na sua palavra, estarei prompto, quando chegar o momento, a molhar as armas. Mas, olhe: todo o meu serviço não passará disso, porque eu não quero historias comigo.

— Nem eu exijo outro serviço além deste. Ficarei com elle muito satisfeito, e elle só será bastante para te forrares.

— Então, fica assentado isso mesmo, não é verdade?

— Isso mesmo. E eu vou já dizer ao Tunda-Cumbe a tua promessa, que é para não haver duvida.

Os dois tinham chegado á beira da estrada.

— Ah! Esqueci-me do sacco de batatas que Moçambique mandava lá para casa. Volto a buscal-o.

Separaram-se, Germano para tornar, como disse, á palhoça dos negros, Pedro de Lima para tomar á direita a direcção da mata.

Quando elles desappareceram, sahiu do mato um vulto com passo sorrateiro e cauteloso. Era Lourenço, que por entre o arvoredo os havia seguido, amparado pelas folhagens, quasi hombro a hombro com elles, sem que o vissem. Elle entretanto, que tambem os não vira, ouvira, sem perder uma palavra siquer, toda a conversa que tinham tido os dois conjurados desde a palhoça até a beira do caminho.

Marcellina estava na porta da casa.

Vendo o filho com a espingarda, as primeiras palavras que para elle teve foram estas:

— Que andas fazendo pelo mato a esta hora, Lourenço? Nem sabes que susto acabo de ter.

— Que foi que aconteceu, minha mãe?

— Passou por aqui mesmo, ha instantinho um homem, que, depois de passar, ficou alli de pé a olhar para cá e a fazer geito de quem queria saber ou ouvir alguma coisa de cá de casa.

— Sabe quem era? Pedro de Lima.

— Pedro de Lima, aquelle malvado?! Virgem-da-conceição. Entra, Lourenço, que quero fechar logo a porta. Ele que anda por aqui a esta hora, fazendo bem não é.

— Quer saber o que estava fazendo o cabra?

— Falla baixo, que elle ainda pode estar por ahi. Mas o que foi?

— Uma das suas. Mas o peior foi o que fez o ladrão do moleque, o Germano. Em vez de ser pelo senhor prometteu ser pelos mascates e botar agua dentro das armas, quando o engenho for atacado. Que negro ingrato e perverso! Tive desejos de lhe dar um tiro na cabeça, quando lhe ouvi as traidoras palavras. Mas eu nunca atirei em ninguem.

— Virgem Maria! exclamou Marcellina. Pois querem atacar o engenho?

— Foi o que disse Pedro de Lima. Germano não tarda a passar por aqui. Ah! Alli vem ele.

— E que queres fazer? Queres dizer-lhe alguma coisa?

— Quero, sim senhora.

— Vai para dentro, que eu fallo ao moleque. Elle a mim ha de atender mais do que a ti.

Ainda bem não tinha Lourenço entrado, quando o negro passava pela frente da casa trazendo o sacco de batatas nas costas.

— Si não me engano, é Germano que vai ahi, disse Marcellina em voz alta a fim de ser ouvida.

— Sou eu mesmo, sinha Marcellina, respondeu o negro. Quer alguma coisa?

— Eu logo vi que tu ainda havias de andar por aqui.

— Porque diz vosmecê isso?

— Si não vás com muita pressa dá-me cá uma palavra.

O negro parou á porta da casa.

— Senta-te nessa pedra que te quero dizer uma coisa.

— A pedra está muito quente. Eu oiço mesmo de pé o que tiver de me dizer.

— Pois olha; nessa pedra mesma esteve elle sentado, ha pouquinho.

— Ó xentes! Elle quem, sinha Marcellina?

— Anda cá. Pois tu não sabes quem podia ser? O Pedro de Lima.

— Seu Pedro de Lima?! perguntou o negro subitamente alterado. Ó xentes! Seu Pedro de Lima!

— Então, elle não andou por estas beiradas ainda agorinha? Quererás negar?

— Elle andou, é verdade, respondeu Germano, entre aterrado e tremulo.

— E que coisas te disse ele?

— Pois vosmecê sabe o que elle me disse?

— Chega-te para perto de mim, que eu não te quero botar a perder, Germano.

O negro aproximou-se, com passo tardo, porque em cada pé começou a sentir o peso de uma arroba depois que ouvira as ultimas palavras da cabocla.

— Queres saber o que foi?

— Diga, sinha Marcellina.

— Elle esteve comtigo na palhoça de Moçambique, e fallando-se ahi sobre os motins que tem havido na villa e a revolta dos mascates do Recife, tu te offereceste a botar agua dentro das armas de teu senhor, para ellas não pegarem fôgo, quando o bando de Tunda-Cumbe atacasse o engenho.

Não se póde imaginar a impressão de medo, dôr, arrependimento e colera, que estas palavras produziram no espirito do negro.

Sem o querer cahiu-lhe do hombro o sacco, e elle proprio, para sustentar-se de , teve de apoiar-se no ferro de cova que trazia em uma das mãos.

— Ora, dize-me, Germano, proseguiu Marcellina: isto era coisa que tu dissesses aquelle malvado? Podias tu prometter semelhante traição contra teu senhor, que te estima, e que, até já tem por vezes promettido forrar-te? És um escravo indigno de ter liberdade.

O negro não respondeu. Triste, cabisbaixo, immovel não sabia o que dizer á cabocla.

Esta prosseguiu:

— Pois não seria muito mais bonito que, em vez de seres traidor e ingrato a seu sargento-mór, fosses o primeiro a defendel-o na hora do ataque? Não terias tu muito mais segura a tua alforria, si, quando Pedro da Lima partisse contra seu sargento-mór, tu partisses contra Pedro de Lima, e com a foice, o facão, o chuço ou o bacamarte impedisses que elle fizesse mal a teu senhor ou a tua senhora?

Germano não era um negro bronco.

Ouvindo estas palavras, percebeu que nellas se lhe offerecia uma porta para sahir da situação cruel e desprezivel á que fôra arrastado.

Então soltou-se-lhe a voz, que estava presa.

— Eu quero contar a vosmecê a historia como foi. Seu Pedro de Lima foi quem me fez esta proposta, com a promessa de minha liberdade. Vosmecê bem pode saber que todo captivo deseja ficar livre, ainda que seja muito bem tratado por seu senhor, como sou eu na escravidão. Eu prometti fazer isso que elle disse, mas depois que ouvi suas palavras, estou arrependido; e posso jurar que não cumprirei a promessa que fiz a seu Pedro.

— Estarás tu dizendo a verdade, Germano?

— Eu sou negro, sinha Marcellina, mas não minto. Pode vosmecê crer que estou muito arrependido da minha ruim acção. Só uma coisa lhe peço: é que não vá dizer isso a minha senhora.

— Si eu quizesse fazer mal, já tinha corrido para lá a metter-lhe tudo no ouvido. Mas tu sabes que eu tenho bom coração. Antes quiz aconselhar-te, do que fazer-te a cama, mesmo porque esperava que mudasses de parecer. Tu estás muito moço; não te apresses que has de ter a tua liberdade não pela mão de Pedro de Lima, ou do Tunda-Cumbe, mas pela mão de teu senhor mesmo. Vai-te embora descançado, que nada por minha bocca se ha de saber do que temos conversado. Pela bocca de Pedro de Lima é que eu não respondo.

O negro levantou o saco, pol-o novamente no hombro, e disse:

— Pela boca delle, sinha Marcellina, respondo eu. O que elle acaba de fazer comigo ha de pagar-me com lingua de palmo e meio.

— Olha bem não te vás espetar em alguma tragedia. O cabra é malvado e traiçoeiro.

— Elle é cabra, e eu sou negro, mas porém si elle não andar muito ligeiro, eu passo-lhe o pé adiante. Elle não sabe com que negro está pegado. Louvado seja nosso Senhor Jesus Christo.

Ainda bem Germano não tinha entrado na mata, quando novo vulto se mostrava na estrada, do lado oposto.

— Não te recolhas já, Marcellina, disse o vulto de longe.

Quem fallava era o padre Antonio.

— É vosmecê, seu padre? perguntou a cabocla admirada.

— Que será isso? disse Lourenço apparecendo. Seu padre por aqui.

— Vocês admiram-se, hein? E não deixam de ter sua razão.

Os tres tornaram para dentro de casa. Marcellina, que foi a ultima a fazel-o, encostou a porta de baixo, e pois a sala era muito pequena, e d'ahi mesmo, com os olhos na estrada e nos outros dois interlocutores, alternativamente, fez-se toda ouvidos.

O padre então sentou-se em uma tripeça, ao pé da mesinha da sala, emquanto Lourenço, de pé, com as mãos sobre o espeque onde descansava a porta da janellinha, quando estava aberta, esperava impaciente que o sacerdote quebrasse os sêllos do mysterio que o levava ali.

— Venho pedir-te um serviço que, na ausencia de teu pai, só tu me poderás prestar, Lourenço.

— Vosmecê não pede, manda, seu padre, respondeu o rapaz.

— Como tenho de fazer uma viagem esta madrugada para fora de Goyanna, quero que vás agora mesmo ajudar o José a arrumar as minhas malas. Olha. Põe tudo o que é meu dentro dellas. Deixa só o que absolutamente não poder ir.

— Si vosmecê quer, vou eu, disse Marcellina. Lourenço não sabe fazer bem estas coisas.

— Sabe, sabe, respondeu o padre. Demais eu tenho que te fallar. Vai, Lourenço.

Quando se acharam sós o padre Antonio e Marcellina, disse aquelle a esta:

— Marcellina, venho fazer-te uma confissão tão verdadeira e sincera como si a fizesse a um padre do senhor.

— Uma confissão! Quem sou eu para merecer tanta honra e confiança?

— O que tu és bem o sei eu. Tu és merecedora de honras e distincções muito mais altas do que esta, porque em ti a virtude fez sua morada, e a honestidade dá seus saudaveis fructos. Todos os elogios da terra ficariam ainda áquem do teu merecimento. O lar domestico ainda não encontrou nem encontrará jámais quem o represente melhor do que tu o representas.

— Seu padre está exagerando.

— Não estou, não. Ha quatro annos que moro no Cajueiro. Estou por isso habilitado a conhecer as tuas qualidades, a saber os teus sacrificios, a admirar a rara belleza de tua alma. Mas venhamos já ao que importa. De duas partes se compõe a minha confissão. Começarei pela segunda. Estou-me vendo em uma collisão cruel. Avalia por ti mesma. Não viste entrar hoje em minha casa o sargento-mór?

— Vi, sim senhor.

— Veiu pedir-me, antes impor-me que eu partisse hoje até amanhã para Goyanninha, a fim de por meio de praticas publicas, chamar ao partido dos nobres o povo que se declarou e tomou armas pelos mascates. Si o pedido fosse exclusivamente delle, eu acharia logo meios de escursar-me, posto que são muitos os obsequios e as attenções que me prendem ao sargento-mór. Mas infelizmente não é assim; e o sargento-mór foi portador de uma carta em que o bispo supplica que eu vá pacificar os animos daquelle povo; e de lá siga até os limites da Parahyba com o mesmo fim. Alguem no meu caso recusaria este favor ao seu prelado e ao seu amigo? Ninguem. Pois eu acabo de recusar, quando já estava determinado a pratical-o. Sabes porque recuei? Escuta lá, Marcellina. Não viste hoje de tarde sahir de lá de casa um frade carmelita?

— Não vi, mas Lourenço me disse.

— Era o prior do convento do Carmo. Veio de proposito—vê lá tu como as coisas se ajuntam—com uma carta, antes ordem da recoleta do Recife, exigindo que eu sem perda de tempo me dirija a Parahyba a fim de levantar os animos do capitão-mór João da Maia, que começam a resfriar. Esta providencia foi resolvida pelo padre João da Costa, a quem devo grandes beneficios, e pelos drs. Ferreira Castro e Mendes de Aragão, conselheiros do governo dos mascates. Não contentes com incumbir-me deste gravissimo mister, exigem que eu me ponha a caminho de hoje para amanhã. Neste sentido recebi, á entrada da noite, nova carta de frei José de Monte Carmelo, que Antonio Coelho me mandou trazer por Pedro de Lima. entre as tres e as quatro horas da madrugada hão de estar por aqui os meus companheiros de jornada á Parahyba. Oh, que collisão cruel, Marcellina?

— E seu padre vai fazer este serviço aos mascates? Perguntou a cabocla.

— Eu deixo o Cajueiro, mas aqui em particular, que ninguem nos oiça, devo dizer-te: não vou nem para Parahyba, nem para Goyanninha. Vou para... Nem sei para onde vou eu. Vou fugindo de mascates e de nobres.

— Mas, meu Deus, como ha de ser isso? Pois vosmecê nos deixa assim?

— Nem uns nem outros tem razão, Marcellina. São exagerados ambos em suas paixões. Cegou-os a vaidade, o interesse, o capricho condemnavel. Deviam estimar-se e auxiliar-se mutuamente como dantes; mas não; hostilizam-se, como se fossem dois povos barbaros e inimigos, como si não tivessem laços communs—a mesma nacionalidade, a mesma religião, a mesma lingua, as mesmas leis. Porque é que brigam elles? Por um pedacinho de governo? Por uns vinténs de mais ou de menos? Por uma villa? Mas em uma terra immensa, como esta, que ainda por muitos seculos ha de ser um mundo universo, onde poderão aposentar-se todas as nações da Europa, brigar por uma villa, por um engenho, um armazem, uma loja, um assento no senado da camara, é dar testemunho de ter o entendimento obscurecido pelas trevas da ignorancia ou da loucura. Querem destruir-se os dois loucos? Pois destruam-se, como querem; eu é que não hei de ir metter-me entre elles dois. Ambos são meus irmãos; mas como não posso nem mesmo com um só delles, quanto mais com ambos juntos, o recurso que tenho é deixal-os pegados até que, pela dôr physica, pelo sangue derramado, pela fome criem ambos mêdo á luta e volte um para a loja e o outro para o engenho a tratar, já com as paixões castigadas e o juizo claro, dos seus interesses particulares.

O padre inclinou a cabeça, como quem meditava, e, passado um momento, voltando-se para Marcellina, disse-lhe com evidente desprazer e tristeza:

— Vou passar ao segundo ponto de minha confissão.

— Seu padre póde fallar, que eu estou ouvindo com toda a attenção, respondeu a cabocla.

E sentou-se para escutar melhor.