Lourenço tinha tirado para o engenho á desfilada, e antes de chegar ahi nuvens de fumo já lhe tinham indicado o que elle suspeitava pelo que fôra vendo ao sahir da villa. Em seu trajeto do Cajueiro para esta, os bandoleiros de Pedro de Lima tinham posto fogo nos cannaviaes, e casas fechadas ou desamparadas, que ardiam agora como si a terra por alli, na combustão primitiva, lhes houvesse communicado o incendio.

— Não ha que duvidar—disse o rapaz. Andaram por aqui os ladrões. Estiveram no engenho, e quem sabe o que por lá fizeram?

Como tinham cortado quasi por dentro do mato os bandoleiros, pôde o rapaz chegar ao Cajueiro sem com elles se encontrar; e cêdo testemunhou com seus proprios olhos dando de face com a casa de Victorino, o estrago, o desbarato, as ruinas, que ahi deixára a horda sem freio.

Das portas algumas tinham sido arrancadas, outras postas por terra. Só as janellas estavam nos seus lugares.

Lourenço não pôde fugir de entrar, não obstante sua pressa em chegar á casa grande. O estado interior da habitação do almocreve não era mais animador do que o seu estado exterior. Tamborêtes, caixas de madeira, giráos de varas, potes, estavam despedaçados e destruidos. Lia-se ali só perversidade, porque nesses moveis e vasilhas ninguem suspeitava a existencia de objectos que podessem tentar a cobiça, e explicar até certo ponto a sua violação ou arrombamento.

— E para onde teriam fugido as mulheres? inquiriu de si para si o matuto.

Ao montar de novo, o espirito cheio de pezar e incertezas, lançou Lourenço as vistas casualmente ao chiqueiro onde Joaquina tinha o cevado, que devia dar uma fartadella á familia dia de S. Thomé. A sangueira, que cobria o chão desde o chiqueiro até á meia-agua de palha a cuja sombra as mulheres lavavam a sua roupa, fazia certo que o cevado passára pela execução capital antes do dia aprazado, e que se tinham aproveitado delle, não a familia, que devia encher de alegrias, mas os salteadores e assassinos. O banco de lavar roupa coberto de sangue, e aos pés delle uns restos de palha queimada indicavam que alli mesmo se praticara o cruento sacrificio.

Triste e colerico ao mesmo tempo, Lourenço proseguiu o caminho.

Adiante appareceu-lhe a casa de Manoel das Dores, matuto muito pegado com Victorino, de quem se dizia contra-parente. Este sujeito era solteirão do lugar. Vivia muito mettido comsigo mesmo, e só uma vez ou outra surdia sem ser esperado em casa dos vizinhos.

Ainda de longe o rapaz reconheceu que por alli passára tambem o devastador soão. As portas, ás escancaras, deixavam á mostra a destruição effectuada dentro. Não havia ficado ahi pedra sobre pedra. Pela estreita sala viam-se espalhadas esteiras e roupas velhas. O chão fóra revolvido á ponta de espada ou de ferro-de-cova. Praticando assim, os salteadores deixavam manifesta a sua intenção. Tinham procurado dar com o mealheiro em que se dizia guardava o velho a pratinha que podia ajuntar.

— Oh meu Deus! Não vejo ninguem. Onde se meteu esse povo? Nem morador nem negro do engenho! Parece que todos fugiram para o mato com medo dos ladrões.

Estas palavras escaparam dos labios de Lourenço como uma dor que não cabia no coração.

Adiante da casa do velhote, era a de Sabino, em cuja companhia morava Saturnino. Do lado de fóra, ao pé da porta da frente, via-se um volume immovel, no meio de uma poça de sangue, por cima do qual esvoaçava um enxame de moscas. Era o cão de Sabino, que por ser fiel defensor da morada de seu senhor, e ter feito fortes e repetidas investidas sobre os assaltantes, para impedir que entrassem, recebera uma bala, que o deixou por terra, com a cabeça aberta e a lingua a nadar sobre sanguinolento escumeiro.

Começou a impressionar-se Lourenço com esta solidão, este deserto cruel em que só se lhe deparavam indicios de atrocidades e carnificinas, de fraqueza e terror.

Tinha já descoberto o oitão da casa grande e ia passar para ella por entre a capella e o pomar, quando um vulto se lhe apresenta do lado dos cannaviaes. Affirmando a vista, reconheceu Marianninha.

Correu para ella tomado de subita alegria. As antigas reservas e aborrecimentos não lhe lembraram nesse momento. A presença da moça fora como um raio de luz que atravessara as densas sombras que enchiam o espirito do rapaz.

— Você por aqui, Marianninha?! Estou cansado de ver solidão, estragos e sangue. Onde está sua gente? Não ouço nenhum rumor, nem vejo ninguem na casa grande. Que quer dizer isto?

A primeira resposta da moça foram as lagrimas. Depois, em rapidas palavras ella contou toda a desgraça, ou antes a serie de desgraças de que o engenho fôra theatro momentos antes.

Ouvindo a funebre narração, Lourenço não soube o que dizer por alguns instantes. Ficou a modo de privado do uso da razão. O pezar, a colera, o desejo de vingar-se o tiveram entre o idiotismo e a loucura. O estado melindroso de suas faculdades augmentou ainda mais quando elle soube que no engenho não havia ninguem com quem contar para ir em soccorro dos que estavam precisando delle na villa. Alguns corpos sem vida era só o que restava das forças que tinham ficado para defeza da casa grande. Os negros que no combate não tinham cahido mortos ou feridos, esses haviam fugido para o mato, determinados a não voltarem segunda vez para a escravidão.

— Para contar o acontecido, Marianninha parára ao pé da ingazeira centenaria que se levantava de um dos lados do caminho, e que com outras formavam uma como galeria por cima do braço de rio que cortava por dentro do cercado. Foi ahi na sombra e no retiro, que davam mais solemnidade ás suas palavras, mais gravidade a seus prantos, que ella desfiou o rosario dos episodios de que tinha conhecimento. Quando chegou ao da morte de Victorino a pobre rapariga entrou a chorar como louca.

— Vamos para fóra, Marianninha, disse Lourenço, vencendo a custo sua commoção. Quero ver sua mãe.

— Vamos, sim, disse a moça. Eu tinha vindo em busca de Saturnino para ajudar minha mãi...

— Ajudal-a a que...?

— Você vai já saber, Lourenço—respondeu a moça, deixando-se banhar cada vez mais em suas afflictas lagrimas. Do lado de fora da galeria, á luz livre da manhã, luz graciosa e tepida que parecia um sorriso de noiva, luz que patenteava os minimos accidentes da natureza, pôde Lourenço ver melhor Marianninha.

Trazia ella os cabellos revoltos, avermelhados os olhos do muito chorar, crestada a macia pellucia das faces, que não obstante mais accesas se mostravam de natural rubor. Mas esses olhos, postoque chorosos, tristes e affligidos, eram ainda tão matadores, tão ternos, que parecia concentrarem em si toda a suavissima belleza, esparzida pelas varzeas, pelos valles distantes, na luz que cahia do céo como chuva de ouro, nas fluctuações da folhagem, na frescura das vastas sombras, atiradas como leitos de paz e tranquilidade no meio da solidão rica de esplendores e cantos.

Entraram na capella pela portinha da sacristia.

Ao penetrar na estreita e sombria nave, o espectaculo, que a Lourenço se mostrou, foi o seguinte:

No meio da igreja, ao lado de um monte de terra fresca, jazia um cadaver; era o de Victorino. Entre esse cadaver e o monte uma mulher tirava do chão onde estava abrindo uma cova, pás de terra, que atirava sobre a que havia fóra. Era Joaquina.

Lourenço quasi a não conheceu, tão demudado estava o resto da infeliz. A dor envelhecera-a em poucas horas. A dor tem mais violencia e rapidez na sua obra do que o proprio tempo.

Joaquina só se deixava ver da cintura para cima. A outra parte do corpo estava mettida na cova. Os cabellos, em sua maior parte embranquecidos pelas necessidades usuaes da vida do pobre, e agora pelo sopro da adversidade que lhe enregelára os ultimos alentos, cahindo sobre as faces murchadas e macilentas, davam-lhe uma feição que gerava vexame em quem a via.

Sem dizer uma palavra siquer Lourenço que aprendera de Marcellina a ter para os cadaveres pias demonstrações, ajoelhou-se aos pés do corpo de Victorino, rezou em silencio sua oração, e, erguendo-se, aproximou-se de Joaquina, tomou-lhe a pá das mãos e poz-se em lugar della a proseguir o ultimo trabalho que o morto exigia dos vivos na terra. A mãi e a filha, mudas e taciturnas, acompanharam com suas lagrimas as que o rapaz verteu, abrindo o leito final do seu vizinho, amigo de seu pae e quasi seu parente a quem votava estima e prestava respeito.

Chegou em fim o momento de ser entregue á sepultura o corpo do finado. O pranto das mulheres redobrou. Marianninha fazia exclamações de cortar o coração. Joaquina carpia-se inconsolavel, envolvendo com o nome do marido o da filha mais velha que lhe fôra arrebatada momentos antes da perda do primeiro. A mão tremula, o braço hesitante, começou Lourenço a impellir para dentro da cova, depois de se haver sumido nella para sempre o seu mudo habitador, com a pá que lhe pezava como barra de ferro, a terra acumulada nas bordas. A tristeza era profunda, solemne o momento, indescriptivel o espectaculo.

— Que será de mim sem meu marido? exclamou Joaquina soluçando.

— Que será de mim sem meu pai? accrescentou Marianninha, desfazendo-se em lagrimas e suspiros.

Lourenço tinha posto na cova a ultima pá de terra. Sua mão descahira sobre o cabo do instrumento.

Por impulso irresistivel de espirito, elle voltou-se para as mulheres, ouvindo aquellas palavras, e disse-lhes:

— E onde estão os outros filhos de Deus? Onde está meu pai? Onde está minha mãi? Onde estou eu? Deus é Deus em toda a parte, e quando tira um arrimo ao necessitado, já tem posto outro diante dos olhos delle.

Ouvindo estas palavras, Marianninha sentiu descer-lhe ao intimo do coração um como balsamo reparador e divino. Ergueu os olhos ao rapaz. Estavam inundados de um clarão suave. Havia alli talvez um agradecimento que lhe dirigia pela doce esperança que, depois de tantas contrariedades, penas e agonias, muitas dellas occasionadas por elle proprio, resurgia agora, posto que banhada em prantos, no solo crestado, que de repente se tornava fresco e fecundo ao calor dessa bemdita consolação.

Nesse momento ouviram bater a porteira do engenho, e logo após o estrepito das pisadas de um animal que corria á toda a brida. Lourenço lança-se á porta da igreja a fim de ver quem era o cavalleiro e dá com os olhos em Marcellina.

O conforto no coração de Joaquina e de Marianninha augmentou com a chegada da cabocla, e especialmente depois que souberam que Francisco estava na villa, e que os mascates naquelle momento deviam ter já perdido a mão.

Lourenço quiz voltar immediatamente a Goyanna, mas Marcellina não consentiu que o fizesse, dizendo-lhe que em pouco tempo Francisco se acharia com elles.

De feito não se metteram duas horas que o matuto se reuniu á familia, trazendo a importante nova da victoria. Para Marianninha a victoria maior foi a que o matuto exprimiu nestas palavras:

— Não chores, Marianninha. Perdeste teu pai, mas alli tens teu marido.

E indicou Lourenço que, com os olhos pregados na imagem do Crucificado, se mostrava nesse momento diante do altar, inteiramente alheio ao que se fallava a seu lado.

Eis em que estava absorvido o rapaz.

Quando viéra de Goyanna horas antes, encontrára cahido entre a casa de Victorino e a de Manoel das Dores um bandoleiro do Pedro de Lima á sombra de uma arvore. O malfeitor tinha passado a noite em claro, e na adega do senhor-de-engenho fôra dos que mais entraram pelo vinho generoso, o qual, dando-lhe na fraqueza, o impossibilitou para preencher o seu officio naquelle dia. Em uma das mãos tinha ainda um sacco, de que marejava sangue.

Lourenço saltou do cavallo abaixo, tirou o sacco das mãos do dono que estava resomnando, e abriu-o para ver o que continha. Era a cabeça do cevado de Joaquina, com que o salteador tencionava augmentar o almoço que por elles devia estar esperando, segundo calculava, em casa de Coelho ou de Paes.

Teve então o rapaz a idéa de tomar uma vingança original. Com cordas do seu cavallo suspendeu por baixo dos braços o bandido ao alto da arvore. Ligou um pé ao outro, para que não tivesse meios de passar as pernas no tronco, e desprender os braços que atou pelos pulsos na altura da cabeça da victima, porém affastados. Emfim o todo figurava uma crucificação.

Planejava Lourenço queimar vivo o infeliz. Além de ser de seu natural máo, acabava de ver os males trazidos pela horda, de que o malfeitor fazia parte, á inoffensiva propriedade de pessoas de seu conhecimento e estima. Apanhára-o mesmo com o roubo na mão, praticado na casa a que mais se sentia preso por gratos élos dentre todas as casas das vizinhanças. Emfim, vinha da villa trazendo o coração repleto de fel e chamma pelo que ahi faziam desde a noite anterior os companheiros do malfeitor. Por tudo isso não hesitou em levar a effeito a abominavel inspiração do seu odio e da sua maldade. Quem o visse então, o acharia outro do que era. A brandura de coração, obra de Marcellina, tinha cedido o lugar, que não era ainda exclusiva propriedade sua, á paixão animal, que o acompanhava do berço. A educação póde muito, quando ajudada de muitas lições e exemplos e ao cabo de tempo bastante a converter, pelo processo que em physiologia é ainda um mysterio, o espinho original em rosa filha do artificio, da delicadeza e da perseverança.

Como tinha pressa, Lourenço deixára ahi bem segura a sua presa calculando sujeital-a ao repugnante supplicio depois de vencidos os inimigos.

Agora, porém, casualmente erguendo as vistas ao crucificado lembrára-lhe a crucificação, de que um momento o tinham feito esquecer-se os ultimos acontecimentos.

Francisco aproximou-se do rapaz, bateu-lhe no hombro e perguntou-lhe a causa do seu enleio.

— Vosmecê não viu suspenso na gameleira do caminho o cabra que matou o porco de sinha Joaquina? tornou elle.

— Vi, sim. Sabes quem era? Leonardo, sobrinho de Gonçalo Ferreira. Quem foi que lhe fez aquella crueldade? Coitado! Por um pouquinho não morreu.

— Pois eu estava agora mesmo pensando em ir acabar de matar aquelle ladrão, aquelle assassino.

— Quem? Tu, Lourenço?

— Eu mesmo, sim senhor.

— Não digas isto. Estás já um homem e deves pensar melhor. Até onde quererás levar o teu máo natural?

— Mas então eu não devia ter feito o que fiz? O ladrão não botou portas abaixo, não poz fogo nos cannaviaes e nas casas dos outros, não tirou o que não era seu?

— Fez tudo isso, mas tu não és juiz, não és Deus para julgar os homens.

— Eu pensei—replicou o rapaz com ironia—que qualquer homem podia por suas mãos vingar-se de um malfazejo, matar um malvado que tivesse tirado a vida a muita gente.

— Estás enganado. Nem eu te quero para palmatoria ou espada do mundo. Sabes o que fiz quando vi o pobre gemendo e esperneando pendurado sem saber o que fazer para soltar-se? Subi-me ao páo, cortei as cordas e disse a Leonardo que corresse, que fugisse para não cahir no poder dos soldados do ajudante-de-tenente. Foge dessas maldades, Lourenço, foge dellas. Deus não hade permittir, por esta hora, em que estou fallando, que pratiques ainda acções como essa. Olha. Eu te quero para bom, e não para máo. Quero-te para servires de arrimo aos teus na velhice. Quero-te para casares com esta pobre menina, que hoje mais do que nunca precisa de quem olhe por ella, e que está morrendo de te querer bem.

E indicou a filha de Victorino.

Lourenço que tivera os olhos postos no chão durante todo o tempo em que Francisco discorria com tão boa moral, levou-os á cova, a Marianinha, ao Crucificado, ao templo—morada de Deus, seja o templo catholico, judaico, chinez ou arabe—e não disse nada.

Marianinha cruzou os della. ainda rasos de lagrimas, com os do rapaz, e enrubesceu.

Mais córada não se mostra fresca rosa de maio, aljofrada pelo orvalho da madrugada.


FIM DO MATUTO.