UM LAR DE ARTISTAS


 

« Pois eu em moça fazia versos. Ah! não imagina com que encanto. Era como um prazer prohibido! Sentia ao mesmo tempo a delicia de os compor e o medo de que acabassem por descobril-os. Fechava-me no quarto, bem fechada, abria a secretária, estendia pela alvura do papel uma porção de rimas...

De repente, um susto. Alguem batia á porta. E eu, com a voz embargada, dando volta á chave da secretaria: já vai! já vai!

A mim sempre me parecia que si viessem a saber desses versos em casa, viria o mundo abaixo. Um dia, porém, eu estava muito entretida na composição de uma historia, uma historia em verso, com descripções e dialogos, quando senti por trás de mim uma voz alegre: — Peguei-te, menina! Estremeci, puz as duas mãos em cima do papel, num arranco de defesa, mas não me foi possivel. Minha irmã, adejando triumphalmente a folha e rindo a perder, bradava: — Então a menina faz versos? Vou mostrá-los ao papá!

— Não mostres! — É que mostro!

— Vai fazê-lo zangar comigo. Não sejas má!

Ela ria, parecendo refletir. Depois deitou a correr pelo corredor. Segui-a comovidíssima. Na sala, o papá lia gravemente o Jornal do Comércio.

— Papá, a Júlia faz versos! — Não senhor, não lhe acredites nas falsidades! — Pois se eu os tenho aqui. Olha, toma, lê tu mesmo...

Meu pai, muito sério, descansou o Jornal. Ah! Deus do céu, que emoção a minha! Tinha uma grande vontade de chorar, de pedir perdão, de dizer que nunca mais faria essas coisas feias, e ao mesmo tempo um vago desejo que o pai sorrisse e achasse bom. Ele, entretanto, severamente lia. Na sua face calma não havia traço de cólera ou de aprovação. Leu, tornou a ler.

A folha branca crescia nas suas mãos, tomava proporções gigantescas, as proporções de um grande muro onde na minha vida acabara a alegria... Então, que achas? O pai entregou os versos, pegou de novo o Jornal, sem uma palavra, e a casa voltou à quietude normal. Fiquei esmagada. Que fazer para apagar aquele grande crime? No dia seguinte fomos ver a Gemma Cuniberti, lembra-se? Uma criança genial. Quando saímos do espetáculo, meu pai deu-me o seu braço. — Que achas da Gemma? — Um grande talento. — Imagina! O Castro pediu-me um artigo a respeito. Ando tão ocupado agora! Mas o homem insistiu, filha, insistiu tanto que não houve remédio. Disse-lhe: não faço eu, mas faz a Júlia...

Minha Nossa Senhora! Pus-me a tremer, a tremer muito. O pai, esse, estava impassível como se estivesse a dizer coisas naturais:

— Estamos combinados, pois não? O prometido é devido. Fazes amanhã o artigo.

Sei lá o que respondi! O certo é que não dormi toda a noite, nervosa, imaginando frases, o começo do artigo. Pela madrugada julgava impossível escrevê-lo, tudo parecia banal ou extravagante. Mas depois do almoço, antes de sair, o pai lembrou-me como se lembra a um escritor: — Vê lá, Júlia, o artigo é para hoje. Tenho que o levar à noite. Havia um jornal que exigia o meu trabalho. Era como se o mundo se transformasse. Sentei-me. E escrevi assim o meu primeiro artigo... Só mais tarde, muito mais tarde, é que vim a saber a doce invenção de meu pai.

O Castro nunca exigira um artigo a respeito da Gemma..."

Estávamos na casa de Filinto de Almeida, um cottage admirável, construído entre as árvores seculares da estrada de Santa Teresa. Eu descera do tramway sob uma forte carga de chuva e, enlameado, molhado, em baixo da branca escada de mármore, não sabia como explicar tão lamentável estado. Filinto, porém, com um ar levemente imperioso, o seu ar quando começa a simpatizar com alguém, tomara-me o chapéu e D. Júlia sorria, cheia de bondade.

— Entre. Ninguém vê, estamos combinados que ninguém reparará na má ação do temporal.

Fora assim que eu ousara entrar e já trinta minutos havia que ouvíamos deliciados a dona daquele lar.

A casa de Filinto fica a dez minutos da cidade e é como se estivesse perdida num afastado bairro. Não há vizinhos; não há trânsito pela estrada, a não ser o bonde de quarto em quarto d'hora. Uma grande paz parece descer das árvores. Todas as janelas estão abertas.

A sala, de um largo conforto inglês, tem uma biblioteca com os livros preferidos dos poetas, um vasto bureau cheio de papéis e revistas, e uma porção de quadros com assinaturas notáveis de Sousa Pinto, Amoedo, Parreiras... Um perpétuo cenário de apoteose divisa-se das janelas, — o cenário do Rio com o seu estrépito de sons e de cores, o tumulto das ruas estreitas, os montes escalavrados de casas, o perfume dos jardins e a enorme extensão da baía ao fundo.

Toda a cidade, estendendo por monte e vale o formigamento dos seus bairros, trechos da Gamboa, trechos centrais, torres de igrejas, a cúpola da Candelária, tetos envidraçados de frontões, altas chaminés de fábricas, palácios, casas miseráveis, pedaços de mar obstruídos de mastros, parece cantar o ofertório da vida. Ah! A humanidade da grande colmeia!

Quantos soluços, quantas alegrias, quantas raças! A chuva passara, o mormaço ia a pouco e pouco esfacelando as nuvens baixas e o panorama aumentava, crescia, assombrava com leves tons de azul e ouro, um panorama épico de porto de mar latino...

— Este cenário lembra-me sempre aquele livro seu — A viúva Simões. Não imagina a impressão desse trabalho na minha formação de pobre escrevinhador.

Que intensidade de vida! Sempre perguntava a mim mesmo: onde foi buscar D. Júlia um tipo de tão penetrante realidade?

— Onde? Mas é uma história inventada.

— Não é um livro à clef?

— Não, não é, não há trabalho meu, com exceção dos "Porcos" e de A Família Medeiros, que não seja pura imaginação. O caso dos "Porcos" eu ouvi contar numa fazenda, quando ainda era solteira. Os homens do mato são em geral maus. A narração era feita com indiferença, como se fosse um fato comum. Horrorizou-me. A Família Medeiros tem dois ou três tipos que guardam impressões reais. Os outros não, são fantasia.

Não imagina como me aborrece a idéia de fazer romances com histórias verdadeiras. E entretanto sou vítima dessa suposição. A Viúva Simões é a história de uma senhora conhecida; A intrusa, ainda outro dia Afonso Celso perguntou a meu marido se era um romance à clef... Andava muito contente com aquele conto: "A valsa da Fome". Mandei o volume a uma das minhas primas em Lisboa e recebi logo uma carta sua. Oh! "A valsa da Fome", a verdade dessas páginas! Há dezesseis dias em Cascais deu-se um fato idêntico. Apenas o fim é que é diverso. Os rapazes levaram o pianista a jantar e ele desmaiou...

Nós sorríamos.

— Que se há de fazer? Quantos há por aí copiando a verdade, que são sempre falsos? D. Júlia tem a luminosa faculdade de criar, e trata os personagens da fantasia como educa os seus filhos. É a vida.

— Oh! Os meus personagens. Às vezes são até inconvenientes. A gente inventa-os e no meio do livro eles começam a discutir, a ter desejos, a forçar as portas da atenção. A Intrusa, por exemplo, quando a fantasiei, devia aparecer muito pouco...

Uma criança loira, de uma beleza de narciso, aparece à porta. É a Margarida. As suas longas mãos no ar, chamando a mãe, são tão finas e rosadas que recordam as pétalas dos crisântemos. D. Júlia levanta-se.

— Vou ver o Albano, coitadinho... Já não o vejo há muito tempo.

Ficamos sós um instante.

— Há muita gente que considera D. Júlia o primeiro romancista brasileiro.

Filinto tem um movimento de alegria.

— Pois não é? Nunca disse isso a ninguém , mas há muito que o penso. Não era eu quem devia estar na Academia, era ela.

Esse sentimento de mútua admiração é um dos encantos daquele lar. Filinto esquece os seus versos e pensa nos romances da esposa. Leva-a a certos trechos da cidade para observar o meio onde se desenvolverão as cenas futuras, é o seu primeiro leitor, ajuda-a com um respeito forte e másculo. D. Júlia ama os versos do esposo, quer que ele continue a escrever, coordena o volume prestes a entrar no prelo. E ambos, nessa serena amizade, feita de amor e de respeito, envolvem os filhos numa suave atmosfera de bondade.

— Tens no teu questionário uma pergunta a respeito da influência do jornalismo. Nós todos somos um resultado do jornalismo. Antes da geração dominante não havia bem uma literatura. O jornalismo criou a profissão, fez trabalhar, aclarou o espírito da língua, deu ao Brasil os seus melhores prosadores. Não é em geral um fator bom para a arte literária, e talvez no Brasil não o seja muito em breve, mas já foi e ainda o é. Falas também das literaturas à parte. Tivemos a Mina da Bahia, a Padaria do Ceará, temos os ocultistas decadentes do Paraná, mas tudo isso mais ou menos desaparece ou tende a desaparecer. A literatura centralizou-se no Rio. Os rapazes de talento abandonam a província pela capital, e quando lá estão são sempre reflexos daqui. Não existirá nunca a arte regional.

Mas aparece a Lúcia, a outra filha, uma beleza brasileira, morena, redondinha, acariciadora.

Filinto abandona a arte regional, a Mina, a Padaria, os decadentes, para cobri-la de beijos,

— Sabes como eu a chamo? Sinhá Midobi. Ai! A minha filha! E faz versos. Esta casa está perdida, fazem todos versos, são todos poetas, o menos poeta sou eu...

D. Júlia volta.

— Então o Albano?

— Bem, está direito. Sabe o Sr. que é muito difícil responder ao seu inquérito? Tem tanta cousa! Começa logo com uma pergunta complexa a respeito de formação literária. Tive duas criaturas que a fizeram, — meu pai e meu marido. Em solteira, meu pai dava-me livros portugueses, — o Camilo, o Júlio Diniz, Garrett, Herculano. Já publicara livros quando casei, e só depois de casada é que li, por conselho de meu marido, os modernos daquele tempo — Zola, Flaubert, Maupassant.

— Maupassant causou-lhe uma grande impressão. A Viúva Simões...

— Eu li Maupassant depois de publicada A Viúva Simões. Sou de muito pouca leitura. Era capaz de passar a vida lendo, mas uma dona de casa não pode perder tanto tempo. E até fico nervosa quando vejo livros por abrir. Seria tão agradável gastar a existência lendo!... Quem entretanto cuidaria dos filhos, dos arranjos da casa?

— Como faz os seus romances, D. Júlia?

— Aos poucos, devagar, com o tempo. Já não escrevo para os jornais porque é impossível fazer crônicas, trabalhos de começar e acabar. Idealizo o romance, faço o canevas dos primeiros capítulos, tiro uma lista dos personagens principais, e depois, hoje algumas linhas, amanhã outras, sempre consigo acabá-lo. Há uma certa hora do dia em que as coisas ficam mais tranqüilas. É a essa hora que escrevo, em geral depois do almoço. Digo as meninas: — Fiquem a brincar com os bonecos que eu vou brincar um pouco com os meus. Fecho-me aqui, nesta sala, e escrevo. Mas não há meio de esquecer a casa. Ora entra uma criada a fazer perguntas, ora é uma das crianças que chora. Às vezes não posso absolutamente sentar-me cinco minutos, e é nestes dias que sinto uma imperiosa, uma irresistível vontade de escrever...

— E apesar disso, diz Filinto, tem doze volumes publicados e começa a escrever um grande romance.

— Oh! Um livro muito difícil, apenas esboçado, sobre a vida das praias, dos pescadores.

D. Júlia está sentada na sombra, fala dos livros e dos filhos ao mesmo tempo. Estou a crer que os confunde e pensa nos personagens da fantasia criadora como beija os meigos frutos da sua vida. É calma, repousada, doce a sua voz, como são maternais os gestos seus. Qualquer coisa de suave e de simples aureola-lhe o semblante, impõe a veneração. Uma grande sinceridade, tal que decerto, ao ouvi-la, as almas mais retraídas lhe devem confessar a vida e pedir-lhe conselhos, como se pede aos bons e aos misericordiosos.

— E que me diz das escolas em luta, do socialismo, do nefelibatismo, do feminismo?

— Há tudo isso?

— Pelo menos parece. A Regeneração, o Ideólogo, Tolstoi, e logo depois Stirner, Nitzsche, o naturismo; o simbolismo...

— Deus do céu! É verdade que eu leio pouco. Algum desses senhores entretanto (creio que os nefelibatas) são por demais complicados. A arte, para mim, é a simplicidade. Ser simples e sóbrio é um ideal. Eles, ao contrário, confundem, torturam, torcem.

— A verdade é que nós atravessamos um período estacionário, intervém Filinto. Esse mesmo nefelibatismo passou. A geração vitoriosa é ainda a de Bilac, Alberto, Raimundo na poesia e Machado de Assis, Neto, Aluísio na prosa.

— E o feminismo, que pensa do feminismo?

Parece-me ver nos olhos de D. Júlia um brilho de vaga ironia.

— Sim, com efeito, há algumas senhoras que pensam nisso. No Brasil o movimento não é contudo grande. Acabo de receber um convite de Júlia Cortines para colaborar numa revista dedicada às mulheres. Descanse! Há uma seção de modas, é uma revista no gênero da Femina...

Já passa de duas horas o tempo em que eu, numa causeuse de couro, interrogo inquisitoriamente os dois artistas. Levanto-me.

— Vai-se embora? Tão cedo?

— Duas horas! Há lá embaixo, naquela fornalha, uma outra fornalha que me espera — o jornal. Despeço-me.

— Ainda uma pergunta: dos seus livros qual prefere?

— Vai ficar admirado.

— É A Falência?

— Não.

— O primeiro?

— Não, é A Casa Verde, porque foi escrito de colaboração com meu marido. A Casa Verde lembra-me uma porção de momentos felizes...

— Imagina eu fazendo romances! Era porque ela queria. Também só me sentava à mesa depois que me dizia: tem que fazer um capítulo hoje com estes personagens, dando-lhe este desenvolvimento.

D. Júlia sorri. Como o tramway passe, precipito-me, e, ao tirar o chapéu, já dentro do carro, vejo no terraço os três airosos perfis dos três petizes de Filinto, que adejam no ar as mãozinhas de rosas.

Então, enquanto o tramway descia a montanha, com a visão daquelas duas horas embaladoras, eu pensei que o adeus perfumado das crianças fora como um resumo e um símbolo do espírito daquele lar. Filinto dividiu o tempo entre o esforço material e o verso, para lhes dar o conforto. D. Júlia, a criadora genial, tem a doce arte de ser mãe. E os seus livros não são outra coisa, na sua intensa verdade, que a evocação do Amor, do Amor multiforme, fatal como o viver, o Amor em que se desnastra como um harpejo de alegria, como a esperança mesma da vida presente, crendo no futuro, o riso cantante das crianças...