Luís Edmundo é o mais simpático dos nossos poetas. Alto, com uma fisionomia muito pálida, onde branquejam os dentes e cintilam os cristais das lentes, é a figura obrigada das primeiras sensacionais, dos hotéis up to date, das partidas de campo aristocráticas, dos five-o'-clock com senhoras distintas. Não há quem não goste do seu perfil, quem o tenha visto discutir, quem o tenha atacado. O elogio envolve-o. O primeiro livro de versos que resolveu publicar esgotou-se. O segundo também. O terceiro também. Um belo dia, diante de um absinto, o poeta, cujo excesso de elegância o faz comparável ao conde de Fésansac e a Wilde, resolveu partir para Paris. Ia continuar a sua filosofia de descrença amável, ia pôr em prática e em exercício — essa alma da geração que tão bem pintou no seu profundo soneto:
Na garupa e febril desse animal possante
Que me lembra um centauro enraivecido e bruto,
Vejo o Mundo passar, veloz e palpitante,
E a voz humana e a voz da Natureza escuto.
Perguntam-me: — Onde vais, ó Cavaleiro andante?
Que ardor te leva assim, tão forte e resoluto?
Buscas acaso a flor de um sonho extravagante?
Que vai contigo? O Bem? o Mal? a Guerra? o Luto?
E eu deixo este animal de trágicos furores,
Que é o Desejo e que tem as asas dos condores,
Na corrida veloz que me tira do Mundo.
Pouco importa saber onde me leva a Sorte,
Corra embora, febril, para as portas da Morte,
Para o profundo Céu, para o Inferno profundo!
Cheguei, entretanto, ainda a tempo de lhe exigir antes da partida a resposta ao questionário.
— Cinco perguntas? indagou ele. Mas são as Vogais do Rimbaud! É uma questão de estado d'alma. Eu posso sentir A branco, quando outros o sintam vermelho ou amarelo.
— Isso é que seria interessante.
O poeta pensou.
— Mas é difícil. Não tenho cores simples, tenho nuanças da mesma desilusão.
— Manda-mas em verso.
— Mando-tas em prosa.
Alguns dias depois eu recebia cinco tiras de papel.
Desdobrei a primeira.
Eis o que dizia:
A
editarUm monsenhor Frutuoso, cura em terras mineiras, chegado aos meus por parentescos distantes, senhor de grande saber e muita moral e de quem trago de memória a figura sempre irrequieta e biliosa que lhe vinha de anos passados em rixas políticas e perseguições de partido, foi quem me pôs primeiro entre as mãos os livros que me ensinaram a amar a arte com o ardor com que ele entendia e amava.
Monsenhor, que tinha poucas predileções, parecia ter, na vida, duas, decisivas, fatais e sérias: a caça às pacas e o amor aos clássicos. Ora, quanto à sugestão da caça eu me podia furtar, porque então habitava um sobrado na rua da Alfândega, lugar de poeira e não de pacas, mas quanto aos clássicos a coisa era outra; eu estudava latim e monsenhor me inundava de Horários, de Ovídios e de Virgílios.
Phoebus volentem proelia me loqui
Victas et urbes, increpuit lira...
Tudo isso me vem à memória numa evocação suave, onde vejo o gesto de monsenhor, o seu nariz de ave rapace, a sua mão esquelética e a sua barba mal feita.
Eu adolescia e nessa idade, em que eu todo era um rebento de aspirações e espinhas carnais, comecei a ter, então, pelos clássicos, a noção do que era literatura. Mas apesar das palavras de monsenhor não os amava, mais por uma idiossincrasia especial que por uma razão fundada.
Foi como comecei. Depois veio o internato com os livros em voga nos colégios urbanos daquela época e que líamos à socapa pelos dormitórios e recreios — Júlio Verne, Hugo, Boisgobey, Eça e Balzac, num caos profundo de onde a literatura picaresca, às vezes, surgia numa brochura de Rabelais ou num opúsculo de versos pornográficos, sempre de autor desconhecido. Isso apenas prova o meu início incolor e apagado como o de quase toda gente, que vem desde o padre que ensina os clássicos e prega moral até ao livrinho obsceno de literatura de alcova, que a gente põe nos forros e cavas da manga, na ânsia importante de escondê-lo aos bedéis.
Liberto dessa primeira e caótica leitura entrei noutra ainda mais caótica e tremenda. Lia, lia muito, tudo que me caia entre as mãos com o cachet das edições da Plume Mercure, Stock, Charpentier ou Lemerre.
Devorava brochuras francesas com ânsia e a febre intelectual que absorve os espíritos para um país fora do mundo. Li parnasianos, românticos, decadentes, simbolistas, satânicos, naturalistas, naturistas e magos, mas sem entanto reler um autor por predileção, sem a preocupação do proselitismo, do apostolado.
Como sou um pouco cheio de arrebatamento e paixão, é natural que já dissesse, ou mesmo escrevesse — X é o meu autor predileto, é o molde do gênio ou a bandeira de arte que tenho que defender, — mas com sinceridade hoje afirmo — nunca tive modelador de arte que me fascinasse.
Não posso, portanto, meu caro João do Rio, dizer-te a fonte onde fui beber a fantasia com que eu, mais por boa intenção que por maldade, malho, pelos jornais e pelo livro, a minha arte tão sem expressão e sem cor.
E
editarNenhuma. Digo sem pseudomodéstia ou preocupação de originalidade. Sou dos que não se satisfazem jamais com o que produzem e vivem sempre na febre ansiosa de escrever coisa que preste. O meu livro será o de amanhã. Isto é o que digo hoje e certamente o que hei de dizer aos trinta, aos quarenta ou aos sessenta anos.
Tenho três pesadelos n'alma, profundos e inapagáveis, tais os de ter dado em letra de forma três livros de versos que, mau grado a sua feição melosa e vazia, obtiveram da crítica indígena aplausos que mais tarde me fizeram uma reputação rasteira e manhosa com caricaturas em jornais ilustrados e citações nos retrospectos literários da terra.
Não que eu desame esses pobres versos que me brotaram d'alma como flores ao sol, mas porque não vejo neles esse toque que eu sonho como o brilho que deve irradiar da boa e sadia arte. Demais, a minha bagagem literária é curta, é curtíssima; venho de há três ou cinco anos apenas, na turbamulta de uma geração que ainda não se firmou e que ainda deve ser a promessa risonha dos artigos de crítica nos jornais.
I
editarNão creio que haja entusiasmo como desânimo entre os que escrevem no Brasil. O que há é indiferença. O ardor das velhas pugnas literárias é coisa que já não existe entre nós. A não ser o Sr. Medeiros e Albuquerque, que se diverte, às vezes, com a leviandade de certos escritores novos e que transforma as suas crônicas literárias em teatrinho Guignol, onde os desgraçados que lhe caem nas mãos dançam o velho desengonço do Pai João, nada mais se ouve ou se vê. Porque, em tirando o Sr. J. dos Santos, quando o poeta B. estréia com os Cantos do fundo d'alma ou a Lira do meu sofrer, o jornal entre um anúncio de pílulas e uma prisão em flagrante nunca deixa de avançar: O livro do jovem estreante é dos que não se confundem com a vulgaridade; 'o artista que espere o lugar que lhe compete entre a plêiade ilustre dos que formam os homens de letras desta terra.
E os poetas fervilham.
O jornal de polêmica, o panfleto literário, desconhecemos por completo. As célebres bengaladas de Camilo fazem rir às barrigadas escritores e críticos, como uma história sobrenatural e engraçada.
Chegamos mesmo, às vezes, a acreditar que somos todos boas e inofensivas pessoas.
Já não se diz mais: — Fulano é uma besta.
Velhos e novos são saldunes que passeiam pela trilha literária, bras dessus bras dessous, risonhos, calmos, indiferentes...
E dessa santa e pacata união nada avulta que impressione ou que fique: os velhos abandonam as letras e os novos dizem com ar de enfado, isto aos vinte anos, com bonitas cores no rosto: — Já não tenho veleidades...
E vão ser empregados públicos.
O
editarCentros literários dos Estados parece pilhéria, quando o próprio país não pode criar ainda um centro de literatura à parte. Nós temos, é verdade, no Paraná, em Minas, em S. Paulo, no Maranhão, e na Bahia, facções literárias com moços de bastante talento; mas não é crível que eles formem núcleos característicos capazes de determinar centros de literatura à parte. De resto, os olhos estão todos voltados para o Rio, onde a Academia assenta quarenta imortais que oficializam a Literatura Nacional.
U
editarÉ péssimo, e penso como toda gente.
Nós temos nesta terra duas instituições fatídicas para os homens de letras: uma é a política, a outra é o jornalismo.
O desgraçado que tem talento, ou cai na coluna diária a matar a sua arte a trezentos mil réis por mês ou vai apodrecer numa cadeira de Congresso a ganhar setenta e cinco diários entre os discursos sobre a lei do orçamento e sobre o imposto do gado.
Talvez isso ateste soberanamente a nossa fraqueza intelectual; mas como o país é de analfabetos os desviados desculpam-se dizendo — que não podem morrer de fome.
E em parte eles têm uma forte e pensada razão.