Encontrei o padre Severiano preocupado com a tradução de Isaías. Esse escritor realista, como ele o julga, tem tido até hoje traduções abjetas. O padre, com as suas finas mãos, trabalhava o buril da forma na vernaculização da prosa ardente.
— Já pensei na enquête, sabes?
O padre Severiano de Resende, um raro talento, fala suavemente, com a voz passada em seda. É, porém, o nosso Huysmans. São bem conhecidos os dotes violentos do seu estilo combativo e pletórico. Há páginas nas suas histórias de santos que lembram o Là-bas. Ainda ultimamente, contando a virtude de um asceta venerável, afirmava que o pobre homem se entregava a esbórnias de jejuns. São bem notáveis as suas preciosas qualidades oratórias.
Há tempo, em Niterói, tendo que pregar, e como a multidão não fizesse silêncio para ouvir a sua homilia, ergueu-se e, com voz retumbante, disse: — Meus senhores. Apresento-lhes um dilema. Ou os senhores calam ou eu me retiro!
Sei por conseqüência que vou ouvir de Severiano coisas imprevistas.
— De S. Paulo mandaram-te muitas respostas? pergunta o padre. Não mandaram. Era natural. Eu expatrio S. Paulo do Brasil. Houve um tempo que a Paulicéia era um viveiro de poetas e prosadores. Tempos idos! Hoje há na Academia uns bacharéis em germe muito bem vestidos e muito pedantes, e o escol literário vive em retiro. No entanto, em S. Paulo podia haver um grande movimento literário, havendo lá, como há, talentos raros. Não falo por exemplo de um Garcia Redondo, que é o arquétipo do imbecil relapso na sua mania de literatejar à outrance, mas se eu disser que em S. Paulo há um Freitas Vale, um Antônio de Godói, um Herculano de Freitas, que são estetas a valer, todos compreenderão que a Paulicéia podia brilhar nas letras.
E temos ainda como poeta e como cronista Adolfo Araújo, que tem sonetos que eu assinaria e prosa que rivaliza com a de qualquer bom prosador excelente.
Há poetisas também: Francisca Júlia, por exemplo, que não tem contudo originalidade e vive a imitar todo o mundo, o que não acontece com uma outra poetisa, muito bizarra criatura essa, — Atália Bianchi-Betoldi, que faz de vez em quando uns sonetos dignos de serem lidos.
Houve uma pausa. Eu estava atordoado.
— Hás de me perguntar por que é que estou esquecendo o Wenceslau de Queirós? Mas este, meu caro, é super-abominável. Pretensioso e orgulhoso, este detestável escriba é capaz de matar a quem disser que os seus versos são maus. E não há quem os faça pior, fazendo-os, com abundância, há mais de trinta anos... Hoje toda a gente o deixa versejar livremente, ninguém faz mais caso dele. A verdade é que S. Paulo possui condições para lá se criar um núcleo literário e não o cria. É hoje um povinho de rastacueiros...
Parou: a catilinária acabara. O padre apanhou a manga larga no seu gesto habitual e deu dois passos. Estava seraficamente calmo, e sorria.
Atrevi-me a indagar.
— Então, desde que começamos por S. Paulo, as literaturas dos Estados?...
Severiano interrompeu-me.
— Eu detesto tudo quanto é centro literário, como detesto tudo quanto é conciliábulo de literatos em via de perpetrações literárias. Como penso que o talento que é real tem fatalmente que se revelar na hora marcada, acho toleima essas concentrações perigosas de plumitivos que ensaiam vôos em grêmios. Os grêmios dos Estados são focos de insuportáveis esperanças das letras e acostumam o espírito à estreiteza das igrejocas em que o elogio mútuo cria irredutíveis pedantes e pretensiosos mestrúnculos de sinagogas improdutivas, em que se cultiva a flor da retórica convencional. A prova é que tudo quanto é talento aqui não se formou em centros literários. O talento aparece quando tem que aparecer, e a sua evolução por meio dos centros literários é uma ilusão. Os centros literários dos Estados são perigosíssimos e alarmantíssimos. Acho bom não bulir nisso. É horrível.
Começo a ter medo de continuar. Entretanto, tento uma perguntazinha vaga:
— Atravessamos um período estacionário para as letras?
— A prosa estacionou como um navio entre gelos, e quanto à poesia, as liras estão por aí penduradas. Não vejo nada de novo, de original e, se umas tentativas surgem, são esperanças que ainda não se corporizaram. Os representantes da prosa, entre nós, quais são? Eis o nome de Rui Barbosa. É um escritor que se deixou hipnotizar pela mole arqueológica dos bons clássicos que a gente desinfeta antes de manusear, para que o arcaico não venha agitar, no nosso estilo, os seus lenços de alcobaça. Rui Barbosa agora não passa de um Cuvier das letras, não é um revivedor de formas, é um escavador de fórmulas. Há Machado de Assis: a gente o lê confiantemente, a sua psicologia calma calça uma forma elegante, e a sua linguagem, que é dele, podia ter por divisa o in medio consistit virtus, que, se não entusiasma, não escandaliza. É o único prosador honesto que temos e o único observador de almas que possuímos. Mas não é um profundo. Aluisio Azevedo zolaizou assaz, num estilo em que eu reconheço o relampejo de um estro real.
Depois desta tirada, vulcanicamente, o padre Severiano começa a distribuir prêmios de louvor aos seus amigos e cacetadas nas pessoas com que não simpatiza.
Assim na prosa João Luso tem fleugma e é chic, Bilac encantador, Coelho Neto vibrante e merece o nome de artista. Euclides da Cunha é vibrante. Araripe Júnior é o único crítico que se pode ler, pois tem argúcia, graça, leveza e clareza; Sílvio é redundante e labiríntico, mas em todo caso hercúleo e poderoso; José Veríssimo arqueia-se sisificamente sob as densas arroubas dos seus períodos plúmbeos, eriçados de ângulos. Na poesia Alphonsus de Guimaraens é um gênio, Bilac o primeiro, Raimundo e Alberto também primeiros, Luís Delfino é o incomparável nababo da poesia, Cruz e Sousa teve influência, Emilio de Menezes pode ser chamado o mestre boêmio do soneto, B. Lopes é adorável na sua pose, Luís Murat...
O padre Severiano não termina a lista, desanimado.
— Eu não posso evidentemente lembrar-me de todos! confessa com amargura. Há tantos poetas, tantos prosadores! Mas falas da poesia de ação? Essa poesia é tola.
— E quanto a escolas?
— Creio que não as houve no Brasil, ao menos que se não queira chamar de escolas — conjuntos de imitadores de Castro Alves, o insuportável metralhador de sílabas, os nefelibatas, etc.
De novo, Severiano faz-me o elogio do prodigioso Alphonsus de Guimaraens.
Eu indago:
— Deve ser curiosa a sua formação literária?
— Eu positivamente não sei bem como foi a minha formação literária. Não estou mesmo certo se houve ou se há em mim isso que o amigo chama respeitosamente "uma formação literária". Só sei de uma coisa: é que desde cedo tive sempre uma insaciável necessidade, ou para melhor dizer, uma intensa ânsia de cultura, que me levou a ler, ler, ler, e dessas leituras várias, mas bem orientadas, me ficaram, creio, uma estesia e um estilo — estesia ainda a corporificar em síntese e estilo ansioso de realizar a Forma. A minha formação literária é feita pois de um amálgama em que são ingredientes as obras-primas que eu admiro e que eu amo. Porque eu entendo que a coisa literária, como os diletantes a tomam, será sempre mesquinha e desinteressante se não for elaborada com o intuito de reproduzir o Belo, e o que reproduz o Belo é a Obra Prima, ou seja palavra falada ou escrita, ou seja som, cor, linha ou bloco. Por isso é que esta expressão "formação literária" me soa mal. "Formação literária" parece querer indicar pretensiosamente o quer que seja que se assemelha, verbi gratia, a "colação de grau"; há nessa fórmula de aula de retórica, um perfume de bacharelice compenetrada da sua canonização literária. Fico por conseguinte, tonto, instado para dizer quais os autores que mais contribuíram para a minha formação literária. Estou certo que o Sr. Barão de Loreto ou o Sr. Barão de Paranapiacaba, versicultores cobertos de cãs, não hesitariam, um minuto, na resposta. Eu hesito, porque, francamente, não tenho formação literária, e acho que ninguém deve tratar de ter.
A minha formação literária é isto: uma grande revolta e uma grande aspiração — revolta contra o pedantismo inativo do medalhão e a maçonaria nula das coteries, aspiração à luta sincera pela Arte e pela supremacia do Talento. A minha formação literária inspira-se pois nessa direção e a minha doutrina bebo-a nas fontes supernas que borbulham nos píncaros: Homero, Ésquilo, Virgilio, Dante, Shakespeare, Cervantes, Goethe, Balzac, e, sobretudo, a tout seigneur tout honneur, Ricardo Wagner, o mestre dos mestres, o colosso sobre-humano, o descobridor dos novos-mundos da Arte, o único a quem é imprescindível pedir licença quando se quiser dissentir de idéias.
De novo aí vulcanicamente, Severiano distribui louros aos escritores contemporâneos que mais admira. Começa assim:
— Está claro que não desprezo Hugo...
Cita Peladan, Huysmans, Lecomte, Verlaine, Mallarmé, D'Annunzio, Flaubert, Chateaubriand, Heredia, Petrarca, Poe, e termina agredindo os homens que fazem seletas de autores célebres.
— Esta exploração no terreno de Charles André pode tentar o Sr. João Ribeiro, a mim não me tenta.
Resta-me fazer uma pergunta — a da influência do jornalismo. Padre Severiano de Resende, jornalista, responde assim:
— O jornalismo no Brasil é para a arte bom e mau. No estado atual da nossa cultura, é o jornal que se lê mais, e não o livro. Quem quiser, pois, fazer alguma coisa pela arte — extensivamente considerada — há de ter um jornal em que escrever. Nem a revista nem o folheto preenchem a função do jornal, que é o que todos lêem. O poeta ou o prosador que quiser ver a sua obra passar de coisa escrita a coisa impressa tem que se submeter ao jornal. O jornal é inevitável, precisamos sofrê-lo.
É ele que abrirá caminho ao livro, ou melhor, é ele que tem aberto caminho ao livro. Entretanto, para quem vive disto, de escrever para a imprensa, não há nada pior, como meio esterilizante e dispersivo. Esterilizante, porque o trabalho au jour le jour esgota as forças desorientadas e exaure o tempo desmetodizado; dispersivo, porque não admite a reflexão, a concentração da idéia, o apuro e o esmero da Forma, que é a ambição de todo artista. Assim, o jornalismo é um fator bom, porque é só por ele que o artista se pode manifestar, e é um fator mau porque, como Saturno, devora a vida dos seus próprios filhos. Que belo não seria haver aqui no Rio um jornal em que um grupo de artistas mostrasse que é ainda pelo jornalismo que, entre nós, poderia um esteta viver e trabalhar, iluminando almas e arejando espíritos. É o meu sonho em breve realizável.
E Severiano termina com essa esperança.