O Sr. Curvelo de Mendonça estende-se longamente:

Este primeiro quesito reporta-me a um tempo já afastado, longínquo, impalpável, de que me resta hoje apenas uma consciência nebulosa, mas ainda assim caríssima ao meu espírito. Evoca-me a bucólica vida provinciana, os nobres esforços de um pai amante das letras, grande espírito de filósofo, tolhido em meio de sua carreira científica pelas necessidades da vida matéria.

Eis aí o vago e indeterminado teatro em que se me descerraram os horizontes intelectuais. Em casa fazíamos todos os irmãos os primeiros tirocínios de estudo. Era uma escola viva e espontânea, onde os nossos mestres liam conosco os livros didáticos, os romances e as revistas. Os Miseráveis, de Hugo, e os Mistérios do Povo, de Eugênio Sue, lembram-me ainda como as leituras mais decisivas na formação de meu espírito atual.

Era o mesmo pai, mestre e amigo, que nos iniciava no cultivo dos bons autores, comentando as passagens empolgantes, vivificando maneirosamente os seus ensinamentos, construindo suavemente a sua boa filosofia da vida, que se traduzia e expressava no amor dos homens, dos animais e até das coisas ambientes.

Era isso em plena roça, numa fazenda modestíssima de açúcar, no seio amplo e livre desse norte brasileiro que dá o fogo crepitante das secas e queimadas, mas que produz igualmente o mel dulçuroso das abelhas e o da cana. Esse foi o primeiro núcleo de minha formação literária, se é que tenho uma, tanto a julgo ainda imprecisa e falha. Tudo o mais quanto veio ao depois — outros homens, outros ares, outros livros — dilataram os raios da minha visão objetiva. E, como nihil est in intelectu quod prius non fuerit in sensu, daí novas idéias, novas concepções em debate, empolgando-me a alma sonhadora e contemplativa de meridional, mas prescrutando-me bem dentro do íntimo, tudo vejo partindo dali, daquela escola de amor, daquele céu estrelado e sereno, a quem atirei os primeiros anseios dolorosos de minhas rudes e prematuras meditações.

Tenho dito, pois, qual a fonte onde bebi a primeira água que me fez saltar para a vida. Os caminheiros que, pelos dias adiante, nela tenho encontrado, muitos são e de vários pensares. Cada homem, cada livro, cada acontecimento de pequena circunstância, em que me achei envolvido, constitui certamente uma nova fonte onde bebi um pouco com tal ou qual sofreguidão. Por fim, tantos foram os mananciais, que lhes perdi a conta e o nome. Com firmeza, com sinceridade, só me posso reportar a um forte elemento criador da minha desvaliosa formação: aquela fonte límpida, doce como o mel das abelhas e o da cana, fonte pura onde quisera beber sempre toda a minha vida.


Evito dizer-lhe qual das minhas obras prefiro. Seria uma coisa triste e desinteressante ao leitor acompanhar-me nessa miragem subjetiva, nessa contemplação íntima dos meus passos de escritor incipiente. Tenho publicados três livros, e se de nenhum deles me envergonho hoje, não os tenho como padrão de glória na vasta cultura literária do país. Deram-me eles a alegria extraordinária da produção, esse prazer ingênuo e simples, que independe do acolhimento da crítica e do meio.

Sou, aliás, um otimista irredutível. Por mais humilde que seja a minha parte na literatura moderna do meu país, julgo-me fartamente, sobejamente pago dos meus esforços e do meu trabalho.

Escrevendo sem ambicionar triunfos, procurando apenas enveredar pela trilha de uma literatura útil, quero dizer, de um exercício intelectual aplicado às necessidades sociais, tive a felicidade de receber a simpatia e o estímulo em proporção tal que jamais poderia imaginar. Atribuo essa generosidade ambiente à corrente de idéias que defendo e que julgo bastante espalhadas no Brasil, mesmo muito mais espalhadas do que geralmente se acredita. Quase não há dia em que a leitura ou a observação me deixe de trazer novos fatos e documentos em abono dessa verdade para mim inconcussa.

Este país é fadado a realizar o sonho do paraíso humano. Não digo que seja isto amanhã; mas digo que isso será, não porque me queira dar ares de profeta, mas porque observo em redor e vejo uma soma maravilhosa de esforços latentes que se fazem heroicamente nesse sentido. Há coisas que não vemos, porque não queremos olhar. O Sr. José Veríssimo disse uma vez que o cristianismo puro, o cristianismo sem padres nem dogmas, o cristianismo sublime à maneira de Tolstoi, não tem cabimento em nosso meio, é uma coisa que "ofende ao sentimento do real". Não é ele só que assim pensa, bem o sei eu. Alguns outros, não em grande número, subscreverão o seu juízo; mas eu acredito que estão redondamente enganados. O seu talento e a sua observação estão voltados para coisas diversas. Não reparam bem os fatos e as correntes sociais que trabalham a nossa civilização.

A doutrina de Tolstoi não é privilégio dele nem da Rússia. Se no Brasil, assim como na França e em todo mundo civilizado, toda a gente lê e aprecia Tolstoi, é porque ele soube traduzir em boa linguagem moderna a ansiedade universal dos povos. As mesmas forças sociais atuam em toda parte. Renova-se o mundo inteiro em busca da solidariedade e do amor puro nas relações humanas.

O Brasil também vai sendo há muito tempo abalado por tais idéias.

Há cerca de vinte anos, uma modesta mocinha de S. Paulo acolheu em seu coração de virgem o doce socialismo cristão. Que poderia fazer essa débil força de mulher, se o seu sonho fosse um desvairamento incompatível com o meio brasileiro?

Pois bem. Essa jovem delicada e meiga trabalhou a princípio só. Fez-se professora particular e pública, escreveu livros, abriu escolas para instruir as crianças e educar a mulher brasileira, retirando-a da confabulação miserável nos confessionários dos padres. É preciso reparar nesse fato, que é expressivo. Os sacerdotes se levantaram e moveram-lhe uma guerra estúpida de todos os dias, servindo-se da ignorância e do prestígio rotineiro das formalidades do culto católico. A mocinha fraca não esmoreceu. Lutou, persistiu, venceu. Fez discípulos e discípulas numerosas. Só na capital as suas escolas sustentam e educam perto de dois mil alunos. Pelo interior do Estado nascem e multiplicam-se escolas filiais da propaganda central tenacíssima de D. Anália Franco. Ninguém no Rio de Janeiro falou nisso. Os livros, os romances e a revista, que essa brasileira notável tem escrito e dirigido, nem um só momento apareceram em nosso meio literário, porque é próprio das coisas sérias e profundas vicejarem modesta e ocultamente. O Sr. Veríssimo e os outros críticos ignoram tudo isso. Que importa! A obra não fica sendo menor, nem menos valiosa. Quando no futuro essas coisas aparecerem, toda a gente se espantará, duvidando da realidade.

Entretanto, a coisa está ali em S. Paulo. Ninguém a vê, porque não quer ou não sabe. Há poucos anos, também, morreu na Bahia Luís Farquínio, que aí fez uma obra semelhante, diferente nos processos, igual no fundo e no pensamento dominante. Da sua imensa fábrica fez uma vasta escola de amor e trabalho. É possível que não tenha deixado continuadores entre os discípulos numerosos, por ele salvos da ignorância e da miséria? Duvido, porque acredito no contrário.

No Rio Grande do Sul, em Pernambuco, e até em Sergipe, há esforços mais ou menos vastos para um semelhante trabalho social. Que importa, se os nossos intelectuais do Rio de Janeiro fecham os olhos a essas coisas? Digo somente que a vaidade e o orgulho cegam desgraçadamente os homens de mais talento e saber.

Foi o meu justamente esquecido romance, Regeneração, que me pôs no encalço desses movimentos fecundos que agitam a sociedade brasileira. Muito mais do que poderia acreditar, toquei nessa ordem de idéias e de aspirações, que já tinham órgãos numerosos disseminados em todos os âmbitos do nosso país. Vi então que o meu trabalho era apenas o eco amortecido de uma força pujante que anima o nosso povo.

Eis porque, consciente da nulidade literária daquele romance, sou entretanto apaixonado ardentíssimo das idéias que nele pus. Por elas, tenho amigos desconhecidos que me comunicam os seus esforços e as suas impressões, embelezando-me a vida e dando-me a coragem de trabalhar com um prazer encantador, que não trocaria pelas glórias mais retumbantes no mundo da arte.

A literatura não é o meu fim. Se a faço um pouco, é como um instrumento de ação social, aliás bem menos poderosa, assim feita, do que por outros meios de propaganda e luta, que outros homens e mulheres assombrosas empregam com sucesso neste mesmo Brasil.


Creio, pois, muito felizmente, em face do que fica dito, que não atravessamos um período estacionário para as nossas letras. É o contrário que sucede: movimento e vida, como jamais o tivemos em outra qualquer época. O Brasil todo se agita em um trabalho pujante de renovo e progresso. Não é só no Rio de Janeiro que a vida econômica e industrial se expande, como parece que acreditam alguns enclausurados da Rua do Ouvidor e da Avenida Central.

A novidade das coisas reflete-se nos corações e nos espíritos. Abrem-se novos horizontes aos moldes acanhados da velha literatura. Passaram os clássicos, os românticos e as pequeninas escolas realistas, naturalistas, simbolistas, e outras, mais ou menos extravagantes e precárias. O que hoje se ensaia, se esboça e já se faz, é alguma coisa de mais forte e grandioso do que essas tentativas de uma literatura em formação. É o Brasil que adquire a consciência de si mesmo e aborda as grandes correntes universais do pensamento moderno. Somos mais nacionais assim, isto é, sendo mais hábeis e mais originais na colaboração que prestamos ao movimento mundial.

Enquanto a Europa nos manda o excedente da sua população, acaso desejando retalhar-nos em pequenas colônias, o Brasil absorve essas gentes todas que lhe chegam da Itália e da Alemanha. As nossas escolas são o grande fator ativo dessa nacionalização empolgante.

É o Brasil, de todos os países novos, aquele em que o estrangeiro se sente mais à vontade, onde menos existe o preconceito de cor, de raça ou de fortuna.

A nossa jovem literatura reflete já esse sopro augusto de fraternidade. Não é só de uns três ou quatro anos a esta parte, como pensam alguns, que se faz entre nós o romance e a poesia de ação. A não ser que se queira fazer questão de palavras, menosprezando as idéias, essas coisas se encontram já, em lampejos geniais, nas poesias de Castro Alves, Gonçalves Dias e Domingos de Magalhães, assim como nos poemas de Basílio da Gama e Varela. Apenas, agora, o movimento é mais consciente e enérgico na geração de novos que nele toma parte.

Os críticos, que dessas coisas se incumbem, menoscabam orgulhosamente dos pensadores e literatos dos Estados. Cada novo dia, entretanto, vê surgir um novo batalhador. Alguns se revelam com vigoroso talento e uma capacidade forte de trabalho. É difícil e perigoso citar nomes, como pede o quesito, pelo risco de se cometerem injustiças; mas as promessas aí estão vibrantes. O Brasil é um imenso campo verde que aspira cobrir-se de flores. As sementes foram plantadas, chega a hora pressurosa da colheita.

Seria preciso uma crítica nova, partindo dessas mesmas correntes, para dar-nos conta dessa falange de trabalhadores. Não mais os críticos frios com as suas críticas frigidíssimas, pesadas e acomodatícias. Essa velha arte está agonizante. Com exceção dos conscienciosos estudos, infelizmente raros, de Araripe Júnior, dela se salvam apenas os materiais amassados no desalinho e na indiferença, que precisam ser refundidos por um espírito de amor. A velha crítica, repito, está morta. Os seus livros dogmáticos e oraculares dormem pelas livrarias em companhia das traças. E os antigos editores já lhe torcem a cara, convencidos afinal da sua inutilidade. Havemos mister de alguma coisa mais bela, mais humana, uma semelhança dos Precursores e Revoltados, de Eduardo Schuré.

Elísio de Carvalho, em um livro de crítica original, completamente diverso do que se tem feito entre nós nesse ramo da literatura, parece bem tê-lo compreendido com o seu talento agudo e a alma vulcânica de apóstolo dos novos ideais. Pelo que vi, pelo que se acha parcialmente publicado de sua formosa obra, não trepido em considerá-lo como um dos iniciadores de mais essa campanha, a investigação carinhosa das nossas correntes sociais, que o jovem Brasil pede ansiosamente.

Pedro do Couto, que é um positivista livre, desabusado e ardente, sabendo separar o joio do trigo, tem no prelo um livro congênere, cujo conteúdo desconheço ainda. Mas considero a concepção positiva da arte como a mais bela, a mais vasta e a mais grandiosa que se tem imaginado. É uma das faces mais geniais, talvez a única que se possa aceitar sem restrições, da imensa obra de Augusto Comte. Tenho, pois, que seja uma novidade auspiciosa para as nossas letras o aparecimento de um livro bafejado por essa influência, aliás perturbadora e nociva a outros respeitos. A sua crítica ampla e erudita, talhada por um largo sopro social, será mais um golpe na outra: a velha, a sediça, a fóssil, a inútil e felizmente moribunda.

Trabalhos assim feitos deixam de ser superfetações livrescas, porque têm os seus lugares previamente indicados na nossa moderna literatura.


Não creio que esteja na índole dos brasileiros tentar a formação de literaturas estaduais ou provincianas. Ao contrário de muitos outros, penso que fora do Rio de Janeiro se fazem muito belos trabalhos literários; mas todos esses movimentos particulares se prendem ao movimento geral das nossas letras. A formosa língua de Camões e o sentimento inato da unidade nacional, que todo o bom brasileiro em regra possui, salvam-nos dessas veleidades ridículas de literaturas divergentes. Nem há entre nós razão histórica que assim o determinasse. Nenhuma das nossas antigas províncias realiza no Brasil o caso da Polônia que, oprimida e esmagada pela Rússia, conserva por isso mesmo a sua literatura e as suas tradições particulares.

Quase todos os nossos grandes Estados tiveram, ou vão tendo, as suas épocas mais ou menos importantes de atividade literária: Bahia, Minas, Maranhão, Pernambuco, São Paulo, e até um pouco também o Rio Grande do Sul, o Pará e outros. Todos esses movimentos, porém, passam ou se deslocam, e o seu acervo aproveitável se incorpora afinal no patrimônio comum da literatura brasileira. Não vejo sintomas que nos façam recear fenômeno diverso para um futuro próximo.

Nos recantos do interior, pois que tenho viajado um pouco, hei visto muitos letrados desconhecidos devorando ansiosamente as últimas novidades da casa Garnier. Os romances de Machado de Assis, as gramáticas de Maximino Maciel, Hemetério dos Santos e João Ribeiro, até as Páginas de Estética deste último, penetram as populações ribeirinhas do São Francisco.

É inacreditável, diante disso, que essas mesmas gentes abandonem os seus mestres, os seus ídolos queridos, para fundar literaturas sertanejas.


Mais algumas palavras para satisfazer ao último quesito. O jornalismo é uma força, o grande instrumento de ação social nas sociedades modernas. Ora, de que uma força é mal empregada ou dirigida, não se pode nem se deve concluir que ela seja ruim.

Acontece isso, muitas vezes, com a imprensa. Mercantilizam-na, exploram-na os vendilhões do templo. Mas é necessário reconhecer os seus serviços prestados à literatura brasileira.

Quase todos os nossos homens de letras, os mais eminentes, os mais ativos, passaram pelo jornalismo. Coelho Neto viveu e vive nele, e daí mesmo retira os seus romances e os seus contos finamente lavorados. O mesmo se pode dizer, mais ou menos, de muitos outros. Quem pode negar a influência civilizadora do jornalismo nacional, conhecendo os grandes talentos que aí afiaram as suas armas e, por ele, exerceram tão poderosa ação na vida intelectual brasileira? Evaristo da Veiga, Patrocínio, Rui Barbosa, Alcindo Guanabara, falando somente daqueles que rapidamente me ocorrem, pode ser que tivessem feito alguns livros a mais, se não fora a absorção da imprensa. Duvido, porém, que houvessem sido mais úteis.

O trabalho diuturno e exigente do jornal conduziu esses e outros espíritos a acompanharem de perto a vida nacional. Batendo, insistindo, ensaiando, sondando o terreno e apalpando as idéias, fizeram o que não cabe fazer aos isolados, que escrevem pachorrentamente no conforto dos gabinetes domésticos. Sem a imprensa, o Brasil não seria o que é hoje, as nossas letras não poderiam ter chegado ao que são agora.

Não acredito, portanto, que o jornalismo seja inimigo da literatura, sobretudo se não se quiser circunscrever e limitar essa palavra ao domínio restrito de romances e poesias. Muitos romances, aliás, escreve um grande publicista nas páginas dispersas dos jornais. É a vida do país, em suas variadas faces, que ele ausculta todos os dias. Se o faz superiormente, com amor e a sede ardente do progresso, muitos erros se lhe devem perdoar.

São agentes mais poderosos do nosso movimento literário do que os egoístas que, insensíveis ao meio, de quando em quando se apresentam, vaidosos, de ponto em branco, com um livro na mão. Esses livros, algumas vezes, são tão úteis ao Brasil... como à China.

Assim respondo eu, sem suspeição, porque não sou jornalista.